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India

O meu dia-dia em família em Nova Délhi: Choques culturais na Índia, coisas de casa, e até aniversário de santo hindu

Moramos eu, Seu Bhalla & Dona Bhalla (os anfitriões, donos da casa), seus pequenos filhos (dois garotos de 6 e 9 anos), e Muskan, a jovem imigrante do oeste do país e empregada na cozinha, que estes dias teve um revertério e foi substituída por outra mais alegre, que chamamos de Didi (mas não é o nome dela). Somos a família feliz. Não, não é bem assim.

Eu comentei nos posts anteriores que estou morando estas semanas na casa de uma família indiana, num bairro até bastante simples de Délhi. Tenho me surpreendido com uma série de coisas, e vivido outras de que antes só havia ouvido falar. (Há umas interessantes, outras chocantes.) Quero contar um pouquinho das coisas do dia-dia aqui, que o visitante normal (que ficar em hotel) pouco vai ver.

Meu café da manhã está incluso nas diárias que pago à família para ficar no meu quartinho com banheiro no andar de baixo, então toda manhã subo ao piso principal para ter meu desjejum. As mulheres, como comentei, jamais se sentam à mesa comigo. Ou como sozinho, ou como com Seu Bhalla. No primeiro dia, falei que empanturrei-me de prantha (às vezes escrito paratha, uma roda de massa recheada com legumes apimentados e assada na chapa com óleo). Continuo a empanturrar-me — Seu Bhalla sempre insiste para que eu coma mais, e com a cara séria —, mas a comida às vezes muda.

Hoje o café da manhã é pão e manteiga“, declarou solene o Seu Bhalla, em seu jeito indiano habitual de pai de família. (Não há aqui a descontração dos brasileiros; é tipo família do século XIX.) Além do pão com manteiga, havia “o molho”, que é como Seu Bhalla chama ketchup. Muskan, e depois Didi, trazia mais e mais do pão de forma brevemente requentado na chapa com manteiga — não tinha gosto de nada. Eu preferia os dias de prantha. Com o tempo, adquiri o hábito de esconder as fatias de pão num prato sobre o colo e levar parte pra comer no quarto depois às escondidas.

Suco, que eu achei que fosse encontrar a rodo na Índia por ser um país tropical como o Brasil, eu na casa de Seu Bhalla só tomei uma vez. Acho que foi de lima. Certa vez, numa manhã, ele ainda nos primeiros dias tentando me paparicar (pois eu havia reservado apenas metade do período que pretendia ficar, como teste), perguntou se eu estava bem e precisava de alguma coisa, se queria um suco… Eu aceitei. Ele com um gesto digno de personagens de Alladin ou fábulas árabes, girou a mão e evocou “suco!” olhando pra a cozinha. Lá, Muskan então começou a espremer as limas. E ele voltou a olhar pra mim com a cara daqueles homens que gostam de passar a sensação de que são senhores de tudo e que tudo está sob controle e pronto pra lhe atender.

Eu acho que a sua estadia aqui conosco é confortável“, declarou ele olhando pra mim com aquele ar, e me perscrutando para ver se eu tinha alguma queixa. Ainda não.

No dia em que fomos comprar as limas, eu comecei a ter uma dimensão melhor da sujeira que é a Índia. Era um sábado e, como eu não tinha afazeres do trabalho, Seu Bhalla me convidou a ir com ele para a feira. Ainda havia chovido um tanto, resíduos do período das monções que termina em setembro.

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A feira livre aonde nós fomos, em Nova Délhi, ali perto do nosso bairro mesmo.
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O lugar era uma imundície épica.

A famosa falta de higiene dos indianos é bem real. Num lugar como esses é fácil (e compreensível) atribuí-la à pobreza, mas nem sempre.

Agora na preparação dos Commonwealth Games 2010 (evento que reúne as várias ex-posses do Império Britânico), que a Índia sediará em outubro, os jornais daqui noticiaram a podridão que há na vila dos atletas — e o governo indiano reagiu dizendo que exigir os níveis de higiene ocidentais era “imperialismo cultural” (depois alguém sacou a gafe e desautorizou o cara).

Certa vez, tomando café da manhã à mesa com Seu Bhalla, o vi todo arrumado, de camisa branca (ele é advogado), e limpar as mãos de gordura da comida na própria camisa para poder atender o celular. O banheiro estava a três passos daqui, mas ele sequer se levantou.

Seu Bhalla tinha um ar professoral — que depois eu veria ser habitual nos homens indianos — que às vezes me irritava. Durante uns dias tivemos uma hóspede dos Estados Unidos, ficando num outro quarto. Garota simpática, viajada, e que queria discutir com ele sobre as formas de visitar o Taj Mahal, na cidade de Agra, a poucas horas dali. Seu Bhalla deu uma baixa nela porque, ao fim, ela optou por fazer um passeio de ir e voltar no mesmo dia. “Você vai jogar fora o seu tempo e o seu dinheiro. Quer o que? Chegar lá, encostar o dedo na parede e voltar pra casa dizendo que viu o Taj Mahal?”. Isso à mesa do café, eu ali assistindo.

A moça ficou estupefata. Naquele ar conciliador que os americanos às vezes tem, ela perguntou qual era então a sugestão dele. “Esse não é o jeito certo de ver o Taj Mahal.“, declarou ele com a solenidade de um general. “O jeito certo de ver o Taj Mahal é sob a luz da lua cheia!“, completou ele girando a mão no ar, agora misturando general e poeta.

Guardei bem a informação sobre a lua cheia, mas fiquei de cara com o jeito autoritário. Senti-me à época do meu bisavô, aquele tempo quando o chefe da família falava e os outros obedeciam, sem pestanejar. Liberalismo, Índia; Índia, liberalismo. Eu queria muito apresentá-los.  

Aquela moça americana, cujo nome nunca aprendi, acabou sendo a única pessoa do sexo feminino a sentar-se comigo à mesa este mês aqui. Dona Bhalla, que até não era antipática, só conversou comigo uma vez, quando o marido não estava. Me ofereceu até pra ficar pra almoçar nesse dia. Na presença dele, no entanto, ela não respondia nem ao meu “bom dia” — fingia que eu não estava ali.

Iam todos devidamente ao templo, e às vezes retornavam à casa com aquele ponto de tinta na testa (na altura do “terceiro olho”, meio da testa). Seu Bhalla, às vezes, solenemente declarava que naquele dia não iria comer comigo porque estava fazendo jejum. (Jejuar na cultura hindu, eu depois aprenderia, não é ficar sem comer nada, mas ingerir apenas leite e frutas.) Havia pequenos altares a Krishna, Ganesha e outros, inclusive na cozinha, do mesmo jeito que na casa de alguma família tradicional católica na América Latina.

Certa vez, Seu Bhalla me chamou para acompanhá-lo à festa de aniversário de um santo, Sai Baba. (O Sai Baba que você conhece, o guru de roupas laranja e cabelo black power, diz ser a reencarnação desse santo.) O Sai Baba original viveu no fim do século XIX, e foi reverenciado tanto por hindus quanto muçulmanos como sendo um homem de luz.

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Este é o Sai Baba original. Ele é sempre retratado nessa pose, com uma perna cruzada.

Seu Bhalla tem um motorista, que ficou encarregado de me levar nesse dia, à noite. O patrão já havia ido na frente. Chegamos lá e tivemos de parar o carro a umas duas quadras do templo, que estava cheio e iluminado. Ouvia-se a música das caixas de som e o bafafá das pessoas. Estacionamos, saltamos, e à entrada Seu Bhalla nos aguardava, pois eles haviam se comunicado pelo celular.

Seu Bhalla o repreendeu porque deixou que eu chegasse até ali de sapatos. Nas áreas dos templos hindus não se entra calçado, e ali à entrada não havia onde deixar os sapatos. Retornamos então ao carro, deixei os sapatos lá e vim caminhando descalços duas quadras naquelas ruas indianas super limpas e ainda recém-molhadas de chuva. Foi uma sensação de desprendimento.

Agora, Seu Bhalla deu-me uma guirlanda de flores laranja (marigoldas), como a que ele também portava em volta do pescoço, e me conduziu para dentro. No pátio do templo haviam montado um palco, e as pessoas se organizavam em mesas tal qual numa festa de aniversário no Brasil. No interior do templo propriamente dito, panelões de comida manejados por voluntários do templo serviam gratuitamente a todos arroz, sopa de lentilhas amarelas, e grão-de-bico temperado. Todos pareciam já ter comido à hora que eu cheguei, mas ainda havia pra mim. Seu Bhalla ofereceu e eu aceitei. Depois ele me apresentaria aos dignatários do bairro como o seu convidado estrangeiro.

Aquelas guirlandas de flores no pescoço eram para as “pessoas importantes”, dizia ele, e nos davam acesso a uma área restrita mais perto do palco onde havia cadeiras livres. Não demorou a um cantor aparecer lá em cima, um indiano animado de cabelos compridos e que parecia um pouco “líder de torcida”. Seu Bhalla disse que ele era “meio Sufi” (a vertente mística do Islã). Com o microfone, o cara entoava versos cantados a Sai Baba e começava a “puxar a galera” a cantar junto. Tinha um vozeirão, desses alegres de radialista  jovem, batia palmas e — qual foi a minha surpresa — certa hora começou a tirar notas de dinheiro do bolso e a jogar para o público. Achei aquilo surreal. O público estendia as mãos para o alto enquanto ele cantava empolgado e as notas caiam aos poucos no ar. 

Sai Baba birthday

As surpresas na Índia continuam.

Mairon Giovani
Cidadão do mundo e viajante independente. Gosta de cultura, risadas, e comida bem feita. Não acha que viajar sozinho seja tão assustador quanto costumam imaginar, e se joga com frequência em novos ambientes. Crê que um país deixa de ser um mero lugar no mapa a partir do momento em que você o conhece e vive experiências com as pessoas de lá.

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