A Índia às vezes faz você se sentir um marajá. Mas não sem antes você navegar pela esculhambação.
Hora de mais uma etapa “família” da viagem. Um dos propósitos do tour pelo Rajastão era visitar os pais de um amigo meu lá de Amsterdã, indiano. Conheci os pais dele nesse verão passado e prometi dar um pulo quando viesse aqui à Índia. Voilà, cá vim eu a Ajmer, uma cidade no caminho entre Jaipur e o sul de colinas-e-lagos do Rajastão. Do lado, Pushkar, uma cidade sagrada hindu com um dos poucos templos dedicados ao seu deus criador, Brahma.
No ônibus povão cheguei eu. 1h da tarde. Solzão a pino. A rodoviária, um desbunde. Mal merece o nome de rodoviária. Na prática um terreno, daqueles em que sobe o cheiro de urina seca na poeira, com lixo por toda parte e plástico amassado pelas rodas dos ônibus e já grudado no chão.


Mal eu havia descido do ônibus e já vi o carro buzinando pra mim.
A família se tratava dos Mathur, um vô boa praça (e relativamente jovem, na casa dos 70 anos e bastante ativo) e a pesada senhora esposa dele, menos liberal, daquelas que ri pra você mas que no fundo são igual avó nordestina conservadora (não é o caso das minhas, mas eu conheço o tipo).
No caminho até a casa dos Mathur, tive um recorde de vacas na pista por km rodado. Nunca tinha visto tantas. O trânsito, uma completa zona mais uma vez, só que agora com muitas ruas estreitas, em que motoristas de outra parte do mundo provavelmente jogariam a toalha. (Ah, aqui na Índia não existe o hábito de construir calçadas, então todo mundo anda na rua; da porta da loja você já está na rua).


Chegamos à casa dos Mathur e fui acomodado confortavelmente (a foto do início não me deixa mentir). Dona Mathur, que eu já havia conhecido em Amsterdã, recebeu-me com um sorriso imenso. (Eu não a quereria como sogra, mas como não havia nada muito em jogo entre nós, fiquei só no oba-oba gozando da sua hospitalidade sincera.) A empregada, uma moça da roça, ela só me apresentaria no dia seguinte.
Na casa, móveis simples mas de bom gosto. Num clima parecido ao do Nordeste do Brasil, uma casa muito arejada, cortinas coloridas e muitas almofadas. A diferença é que, em vez de imagens cristãs nas paredes, havia imagens hindus com guirlandas de flores amarelas ou laranjas —além de, como em toda casa hindu, fotos dos ancestrais da família em lugar de destaque no alto da parede. Seu Mathur depois me contaria que eles fazem 1h de puja (do sânscrito, algo como louvor, com orações) todos os dias.
À mesa, o almoço. Comida indiana é uma das minhas favoritas no mundo. Como vegetariano, não há lugar melhor nem mais saboroso pra mim. Queijos no molho com espinafre, lentilhas temperadas, pão macio, e mais. Como sempre, o chai (chá preto com especiarias no leite) pra acompanhar. E de sobremesa, khir, um arroz doce com leite e açúcar.
Menos interessante pra o meu gosto, eu aqui testemunharia mais vezes a enorme segregação de gênero indiana. Dona Mathur não se sentava à mesa conosco, e só comia depois que eu e Seu Mathur terminávamos. “Não quer mais nada? Posso pegar pra mim então?“, me perguntaria ela certa vez, em que fiquei completamente sem jeito.
Seu Mathur num desses dias me levaria para visitar o belíssimo colégio vitoriano Mayo College, inspirado nos colégios internos britânicos. Ele foi criado em 1875, durante a época colonial para os filhos dos ingleses que moravam aqui ou da aristocracia local, os rajputs. Aqui, claro, tudo com arquitetura indiana.





O que você não deve esquecer é que, tradicionalmente, esses colégios internos eram só pra homens. Há desde 1988 um “Mayo College para meninas”, mas é separado. (O Eton College na Inglaterra continua a ser exclusivamente para garotos, só para constar.)
Eu veria ainda mais um pouco da segregação de gêneros indiana aqui, neste mesmo lugar, à noite. Viríamos eu e os Mathur a um aniversário de criança, de um filha de uma professora. Cheguei conversando algo com Dona Mathur e, prontamente, fui alijado da minha interlocutora e levado à roda dos homens.
Duas rodas de cadeiras brancas (daquelas que empilham umas sobre as outras) estavam formadas no gramado, uma pra cada gênero. Eu estava conversando algo com Dona Mathur sobre a família dela e, de repente, me vi conversando com um major aposentado sobre os militares e as relações da Índia com o Paquistão.
Às vezes, como eu costumo dizer, a Índia me lembra o que eu imagino ter sido o Brasil do século XIX. Eu fui também a um debate interescolar com Seu Mathur, onde ele era jurado. Antes de começar, um belo ritual com música religiosa e incenso e vela acesos a Sarasvati, a deusa do conhecimento, para iluminar a cabeça dos participantes. Meninos e meninas competindo misturados, mas sentados em áreas separadas. Todos de uniforme, as meninas de cabeço trançado — nada de balangandans. Me fez lembrar as histórias de minha avó sobre como era a escola no tempo dela.


No fim, a vencedora final foi uma menina. Eu achei justo. Seu Mathur, no entanto, no comportamento à là século XIX típico dos homens indianos, depois se encontraria com o garoto que foi o favorito dele e me diria na frente do menino: “Você se lembra deste, Mairon? Ele claramente foi o melhor.” Não importa que eu tivesse uma opinião diferente; os homens indianos dificilmente dão margem para você divergir. Eu sorri.
Caso você tenha ficado curioso acerca dos aniversários na Índia, saiba que aqui eles todos cantam o “Happy birthday” em inglês, importado dos tempos de colônia. Cortam o bolo, tudo igualzinho. Me disseram que, tradicionalmente, não havia propriamente uma celebração de aniversário; ia-se ao templo, fazia-se uma oração ou ritual pra aquele dia, e talvez algo em casa.
Eu volto a seguir com os lugares turísticos aonde Seu Mathur me levou aqui em Ajmer.