Ocidental que se mete em desventuras no Terceiro Mundo, de quem você lembra?
Vai depender do seu imaginário de livros e filmes. Às vezes, me dá uma sensação de Indiana Jones quando visito as tumbas indianas, mas no dia-dia das cidades, de me meter em ônibus e barco, é James Bond (007) quem me vem à mente. E desta vez achei de visitar exatamente um lugar onde ele esteve: Udaipur, local do filme 007 contra Octopussy.
Udaipur é a chamada Lake City [“Cidade do Lago”], tida como a mais romântica do Rajastão e talvez de toda a Índia. O filme (de 1983) contribui muito pra isso, pra quem viu. Pra quem não viu, não tem problema, os restaurantes pela cidade inteira exibem o filme todas as noites. (A cara de indiferença dos funcionários nos restaurantes é hilária.)
No sul do Rajastão, Udaipur é rodeada de colinas, e com um belo lago no meio onde estão dois palácios, hoje hoteis de luxo. A cidade é também repleta de havelis, que são casas em estilo antigo, com arcos, varandas, pátios no meio, etc. Muito charmosas. Boa parte delas se tornaram museus ou hotéis com restaurantes.
Eu faria andanças memoráveis, por razões boas e ruins, em Udaipur.






A cidade é agradável de visitar e relativamente boa de explorar a pé (o que é bem raro na Índia). É também um lugar muito bom pra compras. A única chateação é a persistência dos vendedores com ofertas o tempo todo.
Como na Índia o povo fica enchendo — e muito — o saco dos turistas para comprar isso e aquilo, pra dar esmola, pra pepepê e caixa de fósforo, eu procuro sair “disfarçado de indiano”. A cara morena já ajuda; com a barba então, fica beleza.
O traje típico do homem indiano moderno é camisa listrada ou xadrez (daquelas tipo de festa junina) e calça comprida. Fácil. Nem todos caem no disfarce, mas engana a maioria. (O problema é só quando eu puxo a máquina fotográfica, aí quebra o disfarce e tenho que dar o fora. Perco o disfarce, mas não perco a foto.)
A esses meninos indianos da foto acima eu disse que era do sul da Índia (que fala outras línguas), e que por isso falava com eles em inglês. Minha imitação de sotaque indiano não é má, e eu também aprendi a balançar a cabeça como eles fazem quando conversam.


Perto do hotel não dava muito para eu fingir que não era turista, porque me viam entrar e sair. E se você vai num restaurante, é aquela coisa de “depois vá ali na loja do meu amigo“. “Venha, venha“. Os negociantes indianos ficavam feito pombos na rua, a conversar de um lado pro outro e tentar pegar quem passa.
Foi nessa que eu conheci Gopal, num restaurante. Gopal era quieto, às vezes sorria quando se comentava algo, mas não ia muito além disso. Era um faz-tudo no restaurante: recebia as pessoas na porta, trazia o menu, cozinhava e servia. Fui lá duas vezes. Da segunda havia dois rapazes espanhóis, e começamos a fazer graça, e perguntar se não tinha crocodilo no lago. E olhamos pra Gopal em busca de uma resposta. Gopal olha pra a gente, e olha, e olha… olha fixamente… de repente Gopal cai.
Convulsiona no chão. A gente dá alguma coisa pra ele morder, mas não resolve muito. E o que mais fazer? Ninguém ali era profissional de saúde. Corre alguém pra descer a escadaria e chamar alguém. Leva Gopal de tuk-tuk pra o hospital público. Eu às vezes reclamo da malacagem insistente desses indianos, mas me deu pena. A pequenina cozinha dele, de 2m x 2m, vazia. Fazia milagres ali dentro. Ficaria rico em qualquer restaurante no ocidente. Ainda estou devendo 200 rúpias a Gopal.

A vida segue.
Eu depois fui visitar o Palácio da Cidade, onde até hoje mora o marajá de Udaipur (ver neste post aqui sobre eles, também chamados de “rajputs” aqui no Rajastão). O lugar é imenso e fascinante, com sua arquitetura tradicional aqui do norte da Índia.






À noite, numa das casas antigas de arquitetura tradicional de que falei (os havelis), eu assistiria a uma apresentação de música e dança típicas do Rajastão. Fiz um vídeo, que vocês podem abaixo.
No dia seguinte viria a treta.
Dado o episódio com Gopal, os “pombos” que ficavam ali perto do restaurante dele acabaram todos me conhecendo, e pra consolar eu fui à loja de um. Quer dizer, de dois: Joni e Soni. (Se diziam irmãos, mas quase nunca é verdade). Faziam roupas por encomenda. Já era o meu dia final, eu partiria de ônibus cedo na manhã do dia seguinte. “Mas a gente entrega no mesmo dia“, diz Joni, conversador fiado. Ok. Como o material era bom e o preço, barato, aceitei. Iria pegar de tardinha. Mal sabia eu que estava entrando numa furada — numa versão mais mundana de James Bond.
Fui passear. Acabei fazendo um lindo passeio de barco no lago com uns franceses.
Normalmente, os passeios de barco se encerram de tarde — ou seja, você perde o pôr-do-sol, que é o melhor. Mas na Índia não há regra que não seja flexível. Estava eu rondando o lugar de onde sai o barco, e um grupo de franceses chega perguntando se não tem mais barco. Já era de tardinha. O cara: “Não, não, é só até as 17h. Voltem amanhã“. “Poxa, mas a gente queria fazer hoje“. “Não tem mais. Quer dizer, deixa eu dar um telefonema pra ver se não tem mais mesmo.” Não deu outra, arrumaram um barco e eu me juntei. Fomos inclusive a um dos hotéis de luxo bisbilhotar.
Novamente, digo que a ideia de que o famoso “jeitinho” tem algo de particularmente brasileiro é um mito. A Índia lhe mostra isso rapidinho.











Udaipur, portanto, está apresentada.
EPÍLOGO
Sol se pondo, era hora de ir buscar minhas roupas. Chego lá, as roupas estão prontas. Mas aí é que bateu a tentação: “Vou me arrepender de não ter encomendado mais”, pensei. Eu só tinha mandado fazer uma camisa, e já tinha o meu ônibus previsto cedo para a manhã seguinte. Joni queria que eu fizesse terno, casaco, calça, cueca, o diacho a quatro. “E pelo amor de Deus, quando é que tu ia ter tempo de me entregar isso, Joni?“.
“A gente trabalha de noite“, disse ele matuto, tranquilo. Eu fiquei desconfiado, mas queria mais camisas. (Vê o que a ganância faz com a pessoa. Eu fiquei meio ‘shopaholic’ aqui na Índia, com os preços baixos). Falei que só daria metade do dinheiro antes. Aí, como sempre aqui na Índia, depois que você dá o dinheiro é que as coisas são ditas: “As camisas ficam prontas hoje de noite, mas pra botar os botões, só amanhã de manhã“. A vontade que me deu foi a de meter a mão na cara de Joni.
“Não se preocupe, não, meu irmão vai lhe levar tudo pronto de manhã no hotel. Seu ônibus é 8h, então 7:30h meu irmão chega lá, a tempo“. A essa altura não havia muito o que fazer, a não ser ameaçar dizendo que cabeças iam rolar se esse irmão, Soni, não aparecesse lá. Nisso, Soni chega na loja, “Ok ok, fique tranquilo“. Sei.
No dia seguinte, já acordei achando que iria fazer churrasco de Joni e Soni. Mas 7:30h Soni estava lá. Soni sim, as roupas, não. “Cadê as roupas, Soni?“. “Até agora não achei um lugar pra botar os botões, mas agora vai abrir. Vá pra a parada de ônibus que eu te encontro lá antes de o seu ônibus sair“, diz ele. Eu avisei que perderia o ônibus mas não viajaria sem as roupas.
Na parada de ônibus, dá 8h e nada de Soni. O motorista do ônibus interurbano me apressando para entregar a bagagem e entrar. Eu falei que estava esperando alguém, e ligo pra Soni. Aí vem a sugestão dele: “Fica mais perto pra eu alcançar o ônibus numa parada que ele faz na estrada“. Ha, essa não, meu camarada. “De jeito nenhum, venha aonde eu estou que o motorista está esperando!“. “Ok então, tô chegando, 3 minutos e eu tô aí!“.
Eu digo ao cobrador (tem sempre o figura que pega os tickets e que grita pra pegar mais passageiros na estrada). Sujeito ganancioso. “Três minutos vão custar 50 rúpias“. Bah, dois reais, eu queria era as roupas. Liguei pra Soni mais umas quatro ou cinco vezes. 8:20h ele me aparece, e o motorista já bufando com o atraso, o cobrador comprado por 50 rúpias, e as minhas roupas na minha mão. Segui viagem para Jodhpur.