
Era chegada a hora de adentrar pra valer o Grande Deserto de Thar, o deserto do Rajastão, na fronteira entre a Índia e o Paquistão, onde por milênios transitaram caravanas e mercadores que iam aqui das Índias ao Oriente Médio.
Lá há basicamente uma cidade, Jaisalmer, e é pra onde que eu fui. Saí de Jodhpur para cinco horas e meia de ônibus, que dessa vez pareceram durar o dobro. Como a Índia é hiper-povoada, há gente e vilarejos por toda parte, então os ônibus param a todo momento.
O cobrador, um rapaz de seus 20 anos com jeito de garoto da roça e ar de “dono da situação”, gritava pra passageiros em potencial do lado de fora e havia me arrumado uma armadilha pega-turista — uma das mil formas criativas que os indianos, pouco dados a assaltos violentos, encontram para retirar-lhe o dinheiro. “Levar bagagem tem custo extra. Tem a taxa de bagagem, que são 20 rúpias.” Claro, 20 rúpias a serem entregues diretamente pra ele, sem recibo, assim por debaixo do pano.
Você vai dizer o que? Afinal, isso dava menos de um real. Deixei passar, por mais que desconfiasse que era picaretagem, mas disse que só pagaria na chegada — e que minha bagagem chegasse em ordem. “Eu ga-ranto“, respondeu ele mui seguro, dando um tapa na lataria do ônibus pra dar efeito. Não sabia de nada.
Em Jaisalmer, o cara do hotel estava lá na parada final me aguardando, e deu um esporro no cobrador do ônibus quando ele veio tentar me cobrar a tal “taxa de bagagem”. O meu novo amigo fez uma cara e disse em hindi coisas que podem bem ter sido “Taxa de bagagem o seu c…“, disse-me que isso era trambicagem e que eu nem me importasse. Subimos na moto dele, eu de mochilão e tudo, e demos o fora com o cobrador gritando pra mim em inglês “A taxa de bagagem! A taxa de bagagem!“. Cena de filme.
Eis Jaisalmer, uma cidade toda feita em pedra, arenito amarelo, portanto cor de areia mesmo. A cidade é toda cor-de-deserto. No meio, um imponente forte de 1156.





Instalei-me num pequeno hotel-boutique com Joshi (o que me deu carona na moto, um indiano gordinho da minha idade) e sua noiva, vinda de Mumbai. A família da moça a excomungou por ela ter vindo morar com um rapaz que não foi quem a família escolheu pra ela, e Joshi me diz que, como eles ainda não são casados, não é aceitável que ela ande na garupa da moto com ele. Coisas da Índia.
Ajudando-os, Khamis, um garoto de seus 8 anos, além de um cozinheiro caolho de bigode. (Coisa de filme.) Quando eu lhes disse que Kamis, em árabe, quer dizer “camisa” (de onde a nossa palavra em português veio), eles me corrigiram dizendo que seu nome era Khamis, não Kamis. Aparentemente esse H se pronuncia, meio raspado na garganta.
Fui passear. Jaisalmer é uma cidade divertida de se conhecer andando. Parece um video game. Há poucas ruas onde passa carro, e a grande maioria são becos em que há touros/vacas, cachorros, cabras e pessoas circulando. Me perdi várias vezes, mas como a cidade não é tão grande você acaba se achando (embora isso possa levar tipo uma ou duas horas batendo perna à deriva).






(Os indianos dizem aqui que tudo é couro de camelo, pra atrair o interesse dos turistas, mas é mentira, viu pessoal? É couro de bode ou de boi mesmo, o que mostra uma situação muito curiosa, pois os hindus — que são 90% da população aqui — não comem carne bovina, mas prontamente vão lá pegar o couro quando um morre. Nada se perde.)
Foi curioso que, caminhando ao forte, um garçom de restaurante, apesar da minha roupa e da minha cara, me dissesse que sabia que eu era ocidental — não pelo sotaque, mas pelo meu jeito de andar. Eu pedi a ele que explicasse como era isso.
“Vocês ocidentais andam como quem quer chegar a algum lugar. A gente aqui, não, a gente anda tranquilo, devagar, olhando pra um lado e pro outro, vendo o que que há“, respondeu ele dando uma demonstração no restaurante vazio, andando feito um desocupado procurando algo com que se inteirar na rua. Tomei nota pra usar isso em meus disfarces. Tudo pra escapar do assédio constante dos vendedores na Índia.
O Forte de Jaisalmer, se você imaginou ser uma ruína vazia, enganou-se. Como boa parte dos fortes medievais, este é uma verdadeira cidadela. Amplo, ele costumava abrigar tanto os aparatos defensivos quanto ruelas e espaços onde as pessoas moravam dentro das muralhas. Na verdade, ainda moram (o que tem criado dificuldades para a conservação do forte, já que hoje há esgotos, água encanada, e uma série de desafios modernos à sua estrutura medieval.)
É um lugar fascinante de visitar, onde passear e mesmo se perder, passando dos mercados movimentados às áreas quietas onde não há ninguém, só o som do vento e o calor do sol.








Se esta cidade já parecia deserto, agora era chegada a hora de entrar no deserto propriamente dito. Hora de concretizar o meu plano de passar três dias no lombo de um camelo no deserto, deitando na areia e vendo as estrelas. Começava na manhã seguinte.