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India

O Rio Ganges em Varanasi e Sangam: Um aniversário inusitado na sagrada confluência de três rios na Índia

Hoje eu acordei para o meu aniversário. Na Índia. Meu primeiro e único aniversário celebrado na Ásia até agora. 

Eu me programei a propósito para estar na sagrada cidade de Varanasi para a ocasião. Em meus sonhos mais audaciosos, eu nadaria no célebre Rio Ganges para me livrar das impurezas. A realidade, é claro, quando eu vi o rio, foi de que eu me poluiria como nunca antes na vida se o fizesse. (Uma amiga chegou até a me zoar, enviando-me a música dos Titãs – O Pulso, cuja letra é uma sequência de nomes de doenças seguidas de “o meu pulso ainda pulsa”.) O dia prometia.

Na noite anterior, eu havia participado duma celebração hindu com fogo, cânticos e incenso à margem do rio, onde inúmeras barquinhas com velas boiavam na água. Aproveitando-me do momento, peguei um pouco daquela água sagrada e molhei a cabeça — aproveitando-me de que à noite todas as águas são pardas e de que o que os olhos não veem o coração não sente. O local ficou coçando um pouco, o que me fez questionar a minha meta para o dia seguinte.

Às 5:30 da manhã lá estava eu, sonolento porém preparado, pronto para o passeio de barco no Ganges ao nascer do sol — considerado o passeio mais importante a se fazer aqui em Varanasi. Reservei com o próprio hotel, e os barqueiros indianos vieram buscar a mim e a Monica, uma moça argentina que eu acabava de conhecer, além de um grupo antipático de franceses. 

Os barqueiros, como sempre, são da mesma trupe de golpeia-turistas que habita o setor informal de serviços da Índia. Desta vez tínhamos um indivíduo que atendia pelo nome de Babú. Do hotel fomos todos seguindo Babú, que já era um homem de meia idade, e eu queria ver como é que ele ia remar esse povo todo no braço.


Chegando ao rio eu descobri. Babú era uma espécie de agenciador (os remadores, depois de certa idade, evoluem para remador manager, que na verdade não rema mais, só delega quem vai remar que grupo e controla a grana). Os coroas franceses bateram o pé querendo ir sozinhos (graças a Deus), então segui só eu e a argentina junto com um dos boys de Babú.


As vistas do rio ao amanhecer são fascinantes. Logo pela manhã já há bastante gente à beira d’água fazendo desde rituais religiosos até escovação de dentes (com o dedo em lugar de escova).

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O raiar do sol nascente sobre o Rio Ganges em Varanasi, Índia.
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Do outro lado, o oeste, as pessoas já se amalgamavam aos barcos em busca de espaço na água.
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A cidade toda de Varanasi fica à margem oeste do rio.
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Multidões aproximam-se por em meio aos templos para chegar à água do Rio Ganges e se banhar de manhã.
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Muita gente nas escadarias (os ghats, como eles chamam). A grande maioria são indianos, mas havia o ocasional ocidental hippie nadando com aquele ar de “não estou vendo problema nenhum”.
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Os indianos usam o Ganges pra tudo.
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Não tive apetite nenhum pra entrar naquela água suja com lixo boiando, mas não faltavam pessoas entrando.
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Nosso remador levou a argentina e eu a ver toda a extensão da cidade de Varanasi neste amanhecer.
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Os ghats crematórios que eu havia visto de perto (em meio à fumaça das cremações) na tarde anterior.
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Vistas da cidade a partir do rio.

A podridão da água fazia você contrair os seus músculos mais íntimos. Dava até medo de o bote de Babú virar.


Como diz minha amiga Letícia, ali há também uma “bagunça de auras” muito grande, oferenda na água por toda parte… parece a praia de Salvador em noite de Ano Novo. Mas o pior nem é isso: são as saídas de esgoto que você vê vindo da cidade e despejando no rio (não sei como é que permitem uma coisa dessas num rio que eles têm como sagrado, mas enfim). Entrar naquela água ali estava fora de cogitação (a menos que o bote virasse). Mas havia um outro lugar de que eu havia ouvido falar.

No trem, um homem havia me falado. “Vá para Sangam. Fica a 3h de Varanasi, nas vizinhanças de Allahabad, onde os três rios se encontram. Lá você achará o que procura.“, declarou ele naquele to cheio-de-si que é tão comum aos indianos. Eu decidi nesta manhã de aniversário que iria conhecer Sangam.

Voltei do bote de Babú, tomei café com a argentina, e a nós se juntou uma brasileira que nos ouviu conversando (primeiro compatriota que eu achei nessa viagem, depois de mais de 1 mês). Matei a saudade do bom humor latino-americano. Ficamos os três tirando sarro das coisas e falando de lugares interessantes pra visitar.


Finalmente, as duas tinham coisas a fazer, e eu também. Operação Sangam. Peguei o tuk-tuk pra a estação de ônibus. Por sorte de aniversário, esse tio do tuk-tuk foi legal e me botou numa dessas vans lotação em que fica o cara do lado de fora gritando “Quem vai! Quem vai! Bóra, Allahabad saindo agora! Tchalô, tchalô!“. Eu jamais teria conseguido o mesmo preço que os indianos na lotação estavam pagando, mas como foi o tuk-tukeiro que negociou pra mim, acabou saindo o mesmo preço do ônibus — e bem mais rápido.

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O inesquecível trânsito de Varanasi, visto do tuk-tuk. (E você aí achando que o Brasil é o pior dos mundos.)

Poucas caras indianas são mais engraçadas do que aquela do cidadão que queria estar se aproveitando de você e, por força da circunstância, não conseguiu. O motorista ficava me olhando com uma mistura de risada e apreensão, de como quem diz: “Pô, esse turista aqui e eu tô deixando passar, não estou faturando nada em cima dele”.


A van tinha duas enormes suásticas dos lados do pára-brisa, então me senti num veículo patrulha nazista do tempo da Segunda Guerra. A van era tipo camburão, com a entrada no fundo e assentos onde eu e uns outros 11 homens (e nenhum segredo) íamos apertados, metade de frente para a outra metade. Não havia mulheres por razões óbvias, nesta terra onde assédios são ainda mais corriqueiros que no Brasil.

Depois de umas 2:30h no aperto, nós chegamos lá. Ou, melhor, perto. Me largaram no centro de Allahabad, cidade feia e fedida. Uma zona. Só a estrada era asfaltada, espaço para um veículo ir e outro vir. O resto todo era terra molhada com poças grandes ou pequenas aqui e ali, semelhante à zona rural do Brasil quando chove muito. Não havia um cara-pálida; só indianos. Várias pessoas pra lá e pra cá, barracões de lona vendendo coisas à beira da pista e crianças a brincar com filhotinhos de porco na lama em frente às casas. Era uma daquelas tardes quentes e úmidas, de sol fraco por entre um céu branco de nuvens e poluição, tão comum na Índia.

Um ciclo-riquixá (igual ao tuk-tuk, só que o cara vai pedalando; é usado pra distâncias mais curtas) ofereceu-se para me pedalar até a confluência sagrada dos três rios. 

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Uma grande várzea lamacenta se estendia à minha frente. Mais adiante, uma água parada onde o Rio Ganges, o Rio Yamuna e o Rio Sarasvati se encontram. Lugar extremamente auspicioso, dizem. (Mais auspicioso ainda em certos dias a cada 6 anos em que há uma certa conjuntura astral e nada menos que 70 milhões de pessoas vêm pra cá, as maiores aglomerações humanas já registradas na história. Você não vai ficar fora dessa, vai?)

Veio um velho me oferecer barco, ao perceber que eu me demorei espiando a bagaça. O negócio é ir lá pra o meião, onde as águas se misturam, então navegar é preciso.

— “São 350 rúpias! Venha.
— “500 rúpias!“, anunciou um outro velho, o movimento em torno de mim já começando a crescer, para o meu desconforto.

(Depois eu me liguei que o velho do lado ficava repetindo “500” só pra eu achar que 350 estava barato. Na realidade, ambos os preços são um roubo.)


— “Eu paguei 100 rúpias no Ganges hoje de manhã, meu tio! Você quer me cobrar 300 aqui?“, indaguei.
— “Um rio, 100 rúpias; três rios, 300 rúpias“, esclareceu ele com muita naturalidade. 

(O detalhe que eu descobri depois é que o Rio Sarasvati não existe. Quer dizer, ele não está lá; a mitologia é que diz que ele existe. Boa sorte tentando convencer um indiano de que ali só passam dois rios e não três. A versão varia, alguns dizem que ele passa no subterrâneo, já outros dizem que ele passa no céu — rola de tudo. A versão mais coerente ao meu ver, mas que o povão indiano não vai concordar, é a de que Sarasvati era um rio que existiu há milhares de anos atrás, quando os textos sagrados hindus foram escritos, e que desapareceu. Há uns estudos indicando registros geológicos disso. Mas pra todos os efeitos, ali, três rios.)

— “O preço aí são 100 rúpias, não vou lhe pagar 300, não.“, disse eu.
— “OK, 100 rúpias pra ir.
— “E eu por acaso vou ficar no meio do rio, meu tio?
— “Pra voltar, outras 100 rúpias.

Eu vi que não iria conseguir muito além disso. Vamos lá, 200 rúpias. Novamente, não era o velho que remava. Ele chamou um rapaz lá que encasquetou que eu entendia hindi e ficou me dando explicações em hindi. Daqui a pouco vai querer cobrar por explicações que eu não entendi.

A água nesse lugar era melhor que em Varanasi, embora não fosse fantástica. Pelo menos não dava nojo.

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E vamos nós.

No meio do rio, atracamos o barco a um outro onde estava um sacerdote. O barco do sacerdote parecia mais uma jangada. Operação a ser cumprida: tomar uma bênção de aniversário lá no lugar auspicioso. Simbologia bonita. Incluiu a reza de um mantra que ele dizia e eu repetia, derramar leite com pétalas no rio, e comer um bombom de amendoim. Oferendas com pétalas de flores a serem deixadas para a água levar, junto com pedidos, etc. O banho foi de gato, com os pés pra fora do barco e a mão pegando água.

Eu não me joguei no rio. Por outro lado, o ritual incluiu beber daquela água (muito mais hardcore). Não tive como dizer na cara do sacerdote “Vamos pular essa parte”. É certamente a mais auspiciosa de todas. Então vem lá a caneca, que é na verdade uma cumbuca de metal grande, e você toma uns bons três goles cheios. Pronto, eu estava purificado (ou não).

Passei o resto do dia a me perguntar se eu iria morrer. Qualquer sinal no estômago, achei que seria o início de alguma constipação.

Dei uma gorjeta gorda ao sacerdote (que foi quase uma extorsão, pois estávamos praticamente numa jangada no meio da água), e remamos de volta à margem. Lá se vão as outras 100 rúpias acertadas com o velho agenciador de canoas, e um ciclo-riquixá para me levar de volta ao ponto de onde saíam os ônibus de Allahabad para Varanasi. 

A volta foi uma loucura completa. Não tinha van nazista dessa vez, então fui no ônibus público mesmo. Já falei antes do muvucão que são esses ônibus públicos aqui na Índia. Esse foi o cúmulo disso, e de quebra ainda foi de noite pois já tinha escurecido. Vai uma lâmpada incandescente amarela no teto do ônibus pra iluminar enquanto ele fazia loucuras na estrada de mão dupla.

Um senhor gordo foi sentado do meu lado. E ainda era desses assentos em cima da roda, em que tem menos espaço para as pernas. Mas ele na verdade foi a salvação, pois estava indo pro mesmo lugar que eu. Esse ônibus ia pra um sem-número de lugares, e Deus é que ia saber qual era a parada de Varanasi àquela hora no escuro. Eu estava vendo a hora é de estar à deriva em plena noite de aniversário no coração de Uttar Pradesh.

De qual cidade você gostou mais, Allahabad ou Varanasi?“, me perguntou ele.

Ambas cheiram a banheiro público, eu quis responder. Em vez disso, disse-lhe que não tinha tido realmente tempo de circular muito por Allahabad.

Varanasi é melhor, muito melhor“, continuou ele, seguro.

(Os homens indianos frequentemente não têm uma veia democrática muito forte. Não fazem muito o estilo ‘cada um tem uma opinião, é questão de gosto’, nada disso. Fazem mais o estilo da pessoa que tem uma opinião formada pra tudo, e se você pensar diferente, ele diz que você está errado. Além disso são mandões, adoram tomar a frente das coisas e lhe dizer o que fazer. Às vezes me lembram aqueles homens do Brasil Império ou de novelas de época da Globo do início do século XX).

E continuou. “Varanasi é uma cidade muito boa. É uma excelente cidade“.

Santa Maria… imagina se não fosse…

Depois de quatro horas de sacolejo no ônibus — e de muitos outros ônibus com a luz alta vindo perigosamente na direção contrária —, chegamos de volta a Varanasi. Lá o tio me apresentou ao lanka-lanka, que nada mais é do que o tuk-tuk lotação. Seria o meu transporte até o hotel.

— “Já tá cheio, onde é que eu vou?“, indaguei ao motorista.
— “Aqui“, respondeu ele apontando pra o pequeno pedaço entre ele próprio e a rua (tuk-tuks não tem porta). Pronto, fui com metade do corpo pra fora. Do lado de dentro uma perna, meia polpa da bunda, e um braço. Isso de noite, no trânsito indiano de mão dupla, deixa adrenalina de montanha-russa no chinelo. A bênção do Ganges foi providencial.

Cheguei ao hotel já lá para as 23h, em tempo de pegar as mensagens que me chegavam do Brasil e dos meus amigos na Europa. Se esses diziam que eu era louco, os meus amigos indianos me perguntavam (com seriedade) se eu havia tomado o meu “banho sagrado”. Ah, como o mundo é uma coisa interessante. Depois deste aniversário pra lá de inusitado, era hora de retornar a Nova Délhi para eu conhecer mais.

Mairon Giovani
Cidadão do mundo e viajante independente. Gosta de cultura, risadas, e comida bem feita. Não acha que viajar sozinho seja tão assustador quanto costumam imaginar, e se joga com frequência em novos ambientes. Crê que um país deixa de ser um mero lugar no mapa a partir do momento em que você o conhece e vive experiências com as pessoas de lá.

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