Este sou eu em meio aos indianos do sul, com suas típicas peles (mais) escuras e uma integração de gêneros algo melhor que no norte do país.

Deixe para trás os mausoléus como o Taj Mahal e outras marcas da presença islâmica na Índia, tão dominante no noroeste e norte do país. Lembre-se, em vez disso, dos portugueses e da terra aonde chegaram em 1498, com Vasco da Gama. Ele encontrou pelo mar o que árabes, persas, romanos e chineses já haviam conhecido há muito tempo: uma terra quente e de coqueirais, cheia de uma gente escura, rica em cores vivas e mercados vibrantes cheios de especiarias e misticismo. Esta é a parte da Índia que eu agora viria a descobrir.
Onde o norte da Índia fala línguas indo-europeias derivadas do sânscrito, o sul fala línguas dravídicas e que nada têm a ver com as do norte. Até os seus alfabetos são diferentes (sim, no plural, pois dentro do próprio sul há vários distintos). Enquanto no norte se come pão, no sul se come arroz — de preferência temperado com muito leite de coco como manda a tradição tropical daqui, uma tradição milenar, de muito antes de o coco ser levado à África ou de os portugueses o levarem ao Brasil. Aos poucos descobriremos mais características.
Num trem, eu vim por mais de 20 horas de Nova Delhi a Hyderabad (pronunciada Rai-deraBAD, com som de A mesmo), considerada o portal entre o norte e o sul da Índia. Fui ainda de 2ª classe, conversando com um universitário chamado Sudipto que dividiu compartimento comigo. Os funcionários, como de costume, pediam-me gorjeta para tudo: eu lhe trouxe o almoço, quero uma gorjeta; eu levo embora a roupa de cama usada, quero uma gorjeta. Não importa que isso seja o trabalho dele; agradou ao estrangeiro, pede gorjeta. Sudipto ria me vendo em apuros. (Os indianos raramente dão alguma coisa.)
Hyderabad, embora culturalmente diferente do norte, partilha da esculhambação de toda cidade indiana que se preze. Afinal, a pobreza é similar. Não importa que falem aqui uma língua diferente (o telugu).




Fui atendido, pela primeira vez desde que cheguei à Índia, por uma mulher na recepção do hotel. Aqui no sul a equidade de gêneros é mais presente que no norte. Além disso, há no geral uma percepção diferente do visitante estrangeiro: se lá no norte você é invariavelmente visto como turista a ser explorado, no sul eu era quase sempre visto como visitante de negócios. Há menos monumentos e atrações turísticas aqui, então a menos que você esteja nas áreas turísticas da beira-mar, pensarão que você é intercambista ou trabalha em alguma empresa de tecnologia e computação — áreas crescentes aqui na Índia, terra dos call centers e do outsourcing.
Apesar disso, há, sim, lugares interessantes e bonitos a visitar em Hyderabad. E, embora eu tivesse vindo aqui para fazer umas entrevistas de pesquisa, aproveitei — é claro — para ver o que pude.
Há o Birla Mandir, um belo templo hindu feito de mármore branco; há o Charminar, a mesquita de 4 minaretes bem no centro da cidade, de quando isto aqui era um sultanato; há o imponente Forte Golconda (Golconda Fort), nos arredores de Hyderabad; e há muito biryani para experimentar, um prato de arroz típico daqui (não vá embora sem provar).
Como eu já estava todo business — e Hyderabad não tem metrô —, contratei um motorista do hotel para me levar aos lugares. É a forma mais prática, e exime você de ter que ficar negociando com os enrolões motoristas de tuk-tuk.



Embora o hinduísmo aqui no sul da Índia tenha suas distinções e seja mais visivelmente dominante que no norte (onde há uma população convertida ao Islã mais significativa), Hyderabad tem também suas marcas de sua fundação por sultões muçulmanos.
Nós temos o hábito hoje de enxergar a Índia como um todo homogêneo, e muitas vezes de pensar até “as Índias” de antigamente como uma massa só. Não eram. Isso aqui eram múltiplos pequenos reinos e sultanatos — às vezes hindus, às vezes budistas, às vezes islâmicos, às vezes até cristãos. Um mosaico complexo e rico de diversidade, ainda que haja traços culturais indianos comuns (ex. o hábito de retirar os sapatos ao entrar em lugares sagrados, que aqui eles respeitam até na igreja; você vê os sapatos na entrada e as pessoas descalças dentro).
O Sultanato de Bamani (1347-1518) foi o primeiro de fé islâmica no sul da Índia, e foi o fundador da cidade de Hyderabad. Já havia um Sultanato de Delhi desde 1206, que se estendia até esta região ao sul, mas no século XVI o então governador daqui declarou-se sultão e se tornou independente. Em 1518, esse sultanato — já então com quase dois séculos — quebrou-se em cinco. Aqui formou-se o de Golconda, que fundaria Hyderabad em 1591. Nesse mesmo ano, marcando a inauguração da cidade, o então sultão Quli Qutub Shah desvelou o Charminar (“quatro minaretes”), que ainda se encontra no centro da cidade.



As influências são mais persas que árabes, para deixar claro. Aquele arco mourisco alargado, típico persa, é uma ilustração disso. O uso do título persa de Shah (xá em português) pelos sultões indianos é outro. Eles, além disso, difundiram muito a literatura medieval persa na Índia, junto com a religião islâmica. Havia tolerância religiosa, então os indianos hindus e aqueles convertidos ao islã viviam misturados (ainda que não se casassem entre si).
Todavia, como guerras entre reinos eram algo comum, os sultões daqui protegiam-se no Forte de Golconda (Golconda Fort), que permanece como sítio de visitação hoje nos arredores de Hyderabad. O lugar é grande e impressionante. (Vale a pena contratar um guia na entrada, mas acerte direito o preço, e não se surpreenda se ele ainda pedir uma gorjeta em cima daquilo.)







Depois do dia passeando pelas atrações turísticas com o motorista do hotel, eu ainda circulei bastante pelas ruas — que estavam em polvorosa pelo festejo hindu do Diwali, o “festival das luzes”, algo da proporção do que é o Natal no Ocidente.
O comércio estava uma muvuca, com gente saindo pelo ladrão, saldões mil, e bananeiras por toda parte. Aqui é auspicioso pôr bananeiras amarradas na frente da sua loja no dia de Diwali, então a semana inteira o comércio de bananeiras na rua estava em alta. Também não faltavam bananas passadas no chão, e o cheirão incendiando. Eu cheirei tanta fruta velha que acho até que rolou uma fermentação nos meus pulmões. Eu vi a hora de expirar biogás.

Também fui a um show de luzes e sons que há no lago Hussain Sagar, um lago artificial hoje poluído no meio da cidade. Não é mau, e tem direito a musiquinha — cantada com aquela voz de falsete das cantoras indianas — enaltecendo a história de Hyderabad, do tempo islâmico ao século XXI, em que é apelidada às vezes de “Cyberabad”, devido ao seu pujante setor de informática. (Apesar dessa fama toda, a wi-fi do meu hotel era péssima.)

Para terminar, o que você não pode deixar de conferir também aqui em Hyderabad é um biryani, uma espécie de risoto típico daqui. Na real, é muito mais antigo que o risoto italiano.
Trata-se de um prato feito com arroz basmati (aquele mais comprido), alho, cebola, gengibre, pimenta-do-reino, cravo, cardamomo (como você pode ver, poucas especiarias), e às vezes até anis-estrelado. Depois, legumes, cordeiro ou frango, embora as versões vegetarianas sejam fáceis de encontrar, já que o vegetarianismo é tradicional na Índia. E geralmente, como quase toda a culinária indiana, ele é apimentado pra dedéu. Você pode o encontrar por toda a Índia, mas é daqui a sua origem.

As andanças pelo sul da Índia continuam. Hora de seguir viagem até Bangalore, no estado vizinho de Karnataka.
Olá Mairon, tudo bem?
Gostei muito da sua pesquisa sobre Hyderabad, obrigada por compartilhar o seu conhecimento e as suas experiências.