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India

Bangalore: Diwali, templo Hare Krishna, e os cristãos da Índia

Eu não acho que nenhum país do mundo seja um mosaico de religiões tão grande quanto a Índia. A gente costuma agrupar tudo sob “hinduísmo” — um nome deveras genérico e que esconde particularidades regionais importantes —, e nos esquecemos de que aqui há cristãos, muçulmanos, budistas, jainistas, e tantas outras gentes de denominações diversas vivendo juntos. “A gente não tem problema nenhum com o cristianismo. Por que teria? A gente já tem tantos deuses. Jesus é só mais um.“, disse-me certa vez um indiano hindu que morou comigo.

Óbvio que para um cristão Jesus não é “só mais um”, mas não entremos aqui em questões teológicas. A questão é notar como os indianos estão habituados a uma pluralidade religiosa, talvez mais que em qualquer outro país. (Eles se riem dos Estados Unidos e da Europa, que se dizem o berço do liberalismo mas entram em polvorosa com umas meras pequenas porcentagens de religiosos não-cristãos. Como tantos no Brasil — supostamente laico e liberal — também ficam, com seus preconceitos em relação às religiões indígenas ou de matriz africana.)

Neste périplo pela Índia eu já havia visto bastante, e aqui no sul o Cristianismo aparece bem mais — o que não o impede de ter seus festejos hindus como o Diwali, “festival das luzes”, ou um dos maiores templos Hare Krishna do mundo. Eu veria um pouquinho de tudo isso.

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O grande Templo Hare Krishna em Bangalore, sul da Índia.
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Bangalore e o Estado de Karnataka, na Índia.

Bangalore (ou Bengaluru na língua local, “a cidade dos feijões fervidos“, devido a uma lenda antiga de um rei perdido que encontrou aqui uma velhinha que lhe serviu os tais feijões), é uma das maiores cidades do sul da Índia. Ela é a capital do estado de Karnataka, cuja língua oficial é o kannada (nada a ver com o país Canadá).

Eu cheguei de trem após uma viagem noturna desde Hyderabad. Pela manhã na estação fui logo avistado pelos famintos motoristas de tuk-tuk. Um senhor escuro de olhos claros, com vestes simples e jeito de taxista veterano (incluso na “sabiduria” pra enrolar os outros), foi quem fez o melhor preço e disse que sabia onde ficava o meu hotel. Fonseca, disse-me ele ser o seu nome (os indianos se apresentam pelo sobrenome). Fez-me lembrar que os portugueses estiveram aqui por séculos casando-se com as indianas e deixando-lhes os seus sobrenomes.

— “Eu acho que essa é uma distância longa, a desse seu hotel“, declarou Fonseca no meio da corrida, espertamente.
— “Nada de distância longa”, fui logo cortando. “Eu lhe avisei que era nessa rua e você disse que faria por esse preço. Você me disse que sabia onde ficava o hotel

(Mal tem uma história minha da Índia que não inclua alguém tentando me passar a perna.) 
Ele ficou quieto. Num dado momento, parou pra perguntar alguém na rua onde o hotel ficava. Era umas quadras mais além de onde estávamos, na mesma avenida.

— “Está vendo? Longa distância“, disse-me ele apontando didaticamente com o dedo a extensão da avenida diante de nós. (Vou ficar velho e não me esquecer da cara sonsa dele me dizendo “long distance” enquanto apontava pra a pista.)

Não teve “longa distância” certa. Ao contrário do que ele queria (mais), dei-lhe o que tínhamos acertado no começo da corrida, e entrei para o meu hotel business onde uma indiana bonita me atendeu na recepção. (Pena as indianas estarem todas já casadas aos 20 anos, e todas as da minha idade já serem, em geral, mães de dois filhos. Como aqui pouca gente se divorcia, restam-me apenas as viúvas.)

O café da manhã aqui era uma maravilha, com muitos idlis (uns bolinhos típicos aqui do sul da Índia, feitos de massa de arroz e lentilha preta), caldos com leite de coco e pimenta-do-reino (a milenar rainha das especiarias da Índia), sopa de lentilhas amarelas, e outras delícias de levar o vegetariano ao céu. Aqui, como por toda a Ásia, se faz uma refeição inteira de manhã — não tem essa de pão com geléia.

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Comida do sul da Índia. Idli é aquele bolinho branco à direita. Aquele atrás parecendo um crepe dobrado é dosa [dôssa] São os dois mais típicos elementos da vasta culinária do sul indiano.
Eu, como vim a trabalho, faria boa parte das minhas refeições no próprio hotel, onde havia um (bom) restaurante quase sempre vazio. Me dava pena olhar o garçom-chefe circular pelo lugar de paletó e gravata, todo arrumado, sem clientes à vista. Como todos os homens indianos, ele era ótimo em dar recomendações e querer determinar o que eu ia fazer: sempre me sugeria as opções mais caras do cardápio.

Take prawn, sir. Very good prawn.“. [Peça o camarão, senhor. Muito bom camarão.]

Take fruit salad with ice cream, sir.” [Peça salada de frutas com sorvete, senhor.]

Chegava a ser engraçado. Jamais me esquecerei do seu seu bigode preto sobre a pele morena e da sua pose de mordomo do século XIX.

Foi neste mesmo hotel que um dos rapazes funcionários veio me pedir emprego. Eu disse a ele que de nada adiantaria se ele não falasse português, mas ele estava irredutível e quis o meu telefone e o meu endereço no Brasil assim mesmo. (Vê se eu ando dando o meu telefone assim.)

Todo dia de manhã ele me servia o meu café preto, ao ponto de passar a trazê-lo antes mesmo de eu pedir — o que, a bem da verdade, me incomodava um pouco, pois eu não gosto dessa servilitude. Mas nesta sociedade mega estratificada (muito mais que no Brasil), os indianos facilmente entram em relações de subserviência com você — não confunda com amizade, ou você vai depois perceber o equívoco, pois eles sempre esperam uma certa patronagem da sua parte em retorno (em geral gorjetas, mas como você pode ver pelo pedido de emprego, nem sempre se limita a isso).

Mas deixa eu sair do hotel e ver a cidade.

O local da cidade onde fiquei era uma badalação só, mas pelo menos havia calçadas, sinais de trânsito, e até faixas de pedestres (ainda que os carros ficassem parados em cima delas). E só na minha rua havia três igrejas, as primeiras que eu via em toda a minha estadia na Índia.

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A rua do meu hotel em Bangalore, nos agitos de um fim de tarde. Numa dessas, tomei um suco de sapoti (aqui chamado de chikku) que não me desceu muito bem. A infraestrutura no sul da Índia é melhor, mas a má qualidade da água é praticamente a mesma. Cuidado. 
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A Igreja de São Patrício (St. Patrick’s Church), uma das principais de Bangalore.

Entrei certa vez numa dessas igrejas (não, não teve a ver com a agrura provocada pelo mau suco de sapoti), e estava havendo missa em inglês. Muitos fiéis, praticamente todos indianos. Os sapatos acumulados do lado de fora como num templo hindu, e muitas pessoas descalças na igreja, embora isso não seja obrigatório. É interessante também ver as guirlandas de flores que são postas sobre Jesus, Maria ou nos pescoços dos santos nos altares, como a maior parte dos indianos está habituada a fazer com as figuras religiosas hindus.

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Jesus na Índia com guirlanda de flores. Esta foto é da internet, pois não me deixaram fotografar nas igrejas aonde fui. (Esses gestos com as mãos que Jesus faz, chamados de “mudras” em sânscrito, derivam de intercâmbios do cristianismo dos primeiros séculos com o budismo e o hinduísmo na Ásia, viu gente? Não é coincidência, não.)

O Cristianismo surge na Índia muito antes de os portugueses chegarem aqui. Nem vou entrar na polêmica de que Jesus teria vivido aqui alguns anos de sua juventude, como supõem alguns teólogos. Crê-se que São Tomé, o apóstolo, veio para cá e aqui fundou a sua igreja cristã em 52 d.C. Havia intercâmbio com os cristãos da Pérsia e outras terras que seguiam os dogmas da chamada Igreja do Oriente. 

Antes do surgimento do Islã em 622 d.C., a religião cristã era a que mais ganhava tração na Ásia. Ela era fiel à sua origem na Ásia Menor e espalhava-se muito mais no Oriente que no Ocidente. Só quando o Islã se difunde é que os bastiões cristãos em Roma e em Constantinopla ganham relevância — e, como consequência disso, as suas versões do cristianismo, hoje refletidas nas igrejas Ortodoxa e Católica/Protestante, dominantes.

Na Índia, esta terra plural, os chamados Cristãos de São Tomé permaneceram vivos por todo o medievo. Marco Polo, que teria vindo à costa de Malabar aqui no sul da Índia em 1292, fala de cristãos. Portugal, que chega à Índia em 1498 e que aqui tinha uma colônia mais relevante que o Brasil até os idos de 1700, procurou então ampliar o cristianismo e difundir os ritos latinos no lugar dos que havia. Veremos mais disso na minha visita a Goa, que foi capital do “Estado da Índia” português aqui por séculos. 

Você talvez não imaginasse, mas há mais cristãos que budistas na Índia. (O Budismo nunca deu muito certo aqui na sua terra de origem, prosperou muito mais em outras partes da Ásia como China, Tailândia e Japão. Ninguém é profeta em sua terra.) Os cristãos são hoje 2.3% da população indiana, o que dá nada menos que 28 milhões de pessoas — a terceira maior religião do país, atrás do Hinduísmo e do Islã. A maior parte deles estão aqui no sul do país, entre membros remanescentes da Igreja do Oriente, católicos convertidos pelos portugueses, e anglicanos ou protestantes convertidos mais tarde pelos ingleses. 

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Outra das igrejas em Bangalore. Elas são quase todas portuguesas ou inglesas.

Mas era Diwali, o “festival das luzes”, um dos maiores da Índia, quando os hindus celebram a vitória do bem contra o mal, e isso dominava os ares em Bangalore. Não que não houvesse males o bastante na forma da poluição, sujeira e agitação da cidade, mas os hindus estavam em festa, soltando fogos e realizando rituais da época. (Até os não-hindus meio que celebram. Tornou-se uma festa socio-cultural aos indianos de todas as fés, meio que como acabou acontecendo com o Natal no Ocidente.)

São fogos de artifício por toda parte, a meninada a jogar bombas na rua (acho que pra sacanear os tuk-tuks), e de vez em quando você via estrelinha e vulcão (daqueles que se acende no chão e sobem as luzes coloridas).

Nas portas de suas lojas, para além do amarrar de bananeiras como já mostrei no post anterior, vi indianos passando incensos e fazendo rituais diversos. O mais curioso que presenciei com com uma melancia. Um lojista descalços acendeu uma chama na calçada em frente à sua loja e ali acendeu o pavio improvisado de uma melancia. Pronto, agora é que essa zorra vai explodir e vai voar melancia em todo mundo. Negócio surreal. Apressei até o passo pra escapar da melancia explosiva — e fiquei olhando com o pescoço entortado enquanto andava, já que a curiosidade era grande.

Que nada, não explodiu. Em vez disso, o cara tacou a melancia acesa no chão com força e ela se espatifou toda (sim, voou em quem estava perto). Daí vem o sacerdote, que já estava dentro da loja (vestido igualzinho o pândite da novela, com aquela toga branca e a cabeça meio raspada), e passa o incenso enquanto recitava algo que o barulho da rua não me deixou ouvir. De relance fotografei o cara ainda ajeitando a chama depois de espatifar a melancia. (Vai ver foi um sacrifício vegetariano.)

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A foto acabou borrada, mas dá pra ver o cidadão descalços e ainda alguns pedaços da melancia na calçada. As pessoas passavam tranquilamente como que habituadas a isso.
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Templo hindu que vi em Bangalore. Essa arquitetura é típica aqui do sul da Índia.

Por fim, eu iria ao Templo Hare Krishna na cidade — hindu por certo, mas com suas particularidades. O que me trazia a Bangalore, na verdade, era realizar algumas entrevistas na principal universidade daqui, e foi lá que o meu passeio começou — com um sujeito sui generis chamado Siddartha.

No belo e arborizado campus, após realizada a entrevista, eu fui almoçar no bandejão. Aqui ele fica ao aberto, como muitas lanchonetes de universidade aí no Brasil. Não sabendo ao certo se primeiro era preciso pagar ou fazer o prato, perguntei a um rapaz (“Sid”, de Siddartha, o nome de Buddha). Um moreno baixinho de camisa xadrez e calças compridas como tantos indianos.

Sentei-me à mesa após o esclarecimento e não demorou ao próprio reaparecer. “Posso me sentar com você?“. Claro que pode. Puxou conversa, se apresentou, perguntou o que eu fazia, o que eu faria, e eu lhe disse que tinha planos de conhecer o Templo Hare Krishna agora à tarde.

Você se importa se eu for com você?“, perguntou-me Sid, um pouco já mais grudento do que me gusta. Eu disse que se ele não tinha nada previsto pra fazer, poderia vir. Fomos. Ele, verdade seja dita, teve a manha de localizar as linhas de ônibus que nos levariam para lá e onde descer, em vez de termos que pagar tuk-tuk.

Chegando, vimos o grandioso templo ISKCON — International Society for Krishna Consciousness, o nome oficial dos Hare Krishna. O movimento, em verdade, começou nos Estados Unidos, não na Índia. Ele foi fundado em Nova York, em 1966, por um guru hindu com seus seguidores. Hoje eles têm mais de 650 templos e centros mundo afora, inclusos escolas e restaurantes que talvez você já tenha encontrado por aí. 

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O Templo ISKCON, Hare Krishna, em Bangalore, na Índia.

O templo tem um belo altar de ouro e um chão limpo onde você pode se sentar, meditar etc. Só se entra descalços, e não é permitido tirar fotos dentro. No interior há sininhos, incenso, chamas, e enfeites vários.

Para entrar, há duas opções. Uma é a entrada normal, que eu tomei. A outra é a mais hardcore, a de quem vem orando. Nesse caso, você fica igual num jogo de ludo: há 108 quadrados no chão, e em cada um você para, recita o mantra Hare Krishna e avança, até dar a volta completa no templo. (Quando vocês vierem aqui, podem tentar essa via.)

Hare Krishna Hare Krishna
Krishna Krishna Hare Hare
Hare Rama Hare Rama
Rama Rama Hare Hare

Krishna e Rama, no Hinduísmo, foram duas encarnações do deus Vishnu. Os indianos dizem que eles existiram mesmo, e há até os lugares onde teriam nascido, etc. Porém, tal qual Moisés e os personagens da Bíblia judaico-cristã, as únicas provas de suas existências acabam sendo mesmos as escrituras das respectivas religiões.

Se você nunca ouviu o mantra Hare Krishna, aí vai ele abaixo.

Este templo eu achei deveras comercial, preciso dizer, embora o vão central seja bonito e o cantar conjunto dos sacerdotes com o povão entoando tenha um impacto. À saída, uma lojinha, como sempre.

Eu achei curioso ver que os supostos remédios eram descritos não em termos de seu conteúdo, mas de sua função. Um, por exemplo, dizia ser bom pra um milhão de coisas, uma garrafa com um líquido que Sid me revelou ser urina de vaca. Eu duvidei.

— “Urina de vaca?!“, não pude crer.
— “Sim“, me respondeu Sid muito tranquilo e confiante. “Quer ver, pergunte ao funcionário.

O funcionário me confirmou, na mesma tranquilidade, e eu fiquei a olhar pra aqueles dois como se eles tivessem se revelado que são alienígenas em meio aos humanos. (Se você, inocente, acha que eles estavam me zoando, procure por gomutra no Google, o nome de urina de vaca na medicina ayurvédica.). Nessa tradição, a urina da vaca grávida é ainda mais especial.

Nisso, Sid já havia conversado da sua vida inteira, desde os estudos à namorada que morava longe, e sobre a qual eu já sabia desde o signo (Aquário) até a cor favorita (azul). (Ele próprio era de Touro, coitado, estava fadado a sofrer.) Eu já iria embora no dia seguinte, e ele insistiu que queria me ver partir na rodoviária. Disse o quanto iria sentir a minha falta, quis saber a data do meu aniversário e o meu telefone, pra me ligar.

Os homens indianos, eu descobriria, têm um grude danado uns pelos outros. Não é que sejam gays (embora obviamente haja os que são), mas é da cultura masculina daqui um pega-pega e um achego entre homens que na América Latina é reservado às pessoas muito próximas. Já aqui é corriqueiro. [Mais sobre esse tema no post Afeição masculina nos países árabes e na Índia: O reverso da medalha da segregação de gêneros?]

Goa me esperava. Antes dela, 14h de ônibus até lá, onde o áudio de filmes indianos no último volume se sobrepunham a qualquer fone de ouvido — mas eu não sabia disso ainda. É claro que Sid apareceu na rodoviária, com direito a ‘tchau’ para a janela do ônibus e tudo. Aprendizado cultural tem dessas. Depois dos contatos humanos e da religiosidade multi-cores em Bangalore, era hora de ir ao litoral ver o que Portugal deixou aqui.

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Sid e eu em Bangalore.
Mairon Giovani
Cidadão do mundo e viajante independente. Gosta de cultura, risadas, e comida bem feita. Não acha que viajar sozinho seja tão assustador quanto costumam imaginar, e se joga com frequência em novos ambientes. Crê que um país deixa de ser um mero lugar no mapa a partir do momento em que você o conhece e vive experiências com as pessoas de lá.

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