
Kerala [Kérala] é um dos estados mais simpáticos da Índia. Famoso por sua sociedade tradicionalmente matrilinear (quem herdam são as mulheres, e os sobrenomes passados adiante são os das mães); dono do idioma mais veloz que eu já ouvi na vida, o malayalam; e notável por ter governos sociais progressistas há décadas, ele fica na costa sudoeste da Índia, antigamente conhecida como Costa do Malabar. (Sim, foi a partir daqui que os portugueses criaram o nome “malabarista”, pois viam os nativos com quem comerciavam manusearem objetos com muita rapidez.)
Quando Vasco da Gama completou a sua épica viagem contornando a África em 1498 (sendo o primeiro europeu a fazê-lo), aportou em Calicute, hoje no norte do estado de Kerala. Aqui também veio Pedro Álvares Cabral em 1500, após encontrar o Brasil. E aqui nesta parte da Índia morreu Pero Vaz de Caminha, de quem a História nos conta sem contar a história inteira.

Sim, as famílias eram matriarcais e matrilineares no que hoje é Kerala, mas os assuntos de guerra, comércio etc. ficavam por conta dos homens. Samorim era o nome dado ao soberano do estado hindu que existiu aqui do século XIV ao XVIII. A partir de 1510, eles teriam que conviver com os recém-chegados europeus.
Em 1500, dois anos após Vasco da Gama estabelecer os primeiros contatos diretos de Portugal com os mercadores de especiarias indianos, Pedro Álvares Cabral esteve aqui. Sua passagem pelo Brasil foi um mero apêndice de uma expedição cujo interesse principal era mesmo o nascente comércio com a Índia.
Como bons europeus em terras alheias, esses navegadores trataram logo de tentar subjugar os governantes locais e construir feitorias na costa, como àquela altura já haviam feito pela costa da África Ocidental. A princípio, falharam. Foram massacrados em Calicute e em combate morreu o eterno fidalgo escriba Pero Vaz de Caminha, menos de um ano após se eternizar com a carta sobre o recém-descoberto Brasil.
Cabral viveu mais. Por indicação do Rei D. Manuel I, o venturoso, ele foi perscrutar um outro porto indiano 200Km ao sul de Calicute, Cochim. Cochim já era um porto notório, conhecido no Ocidente desde a época dos gregos e romanos antigos. Aqui Cabral fundou o Forte Emanuel, de onde os portugueses defenderiam seus interesses comerciais diante dos rivais árabes. Estes eram mares muito navegados, provavelmente os mais movimentados do mundo à época.
Aqui também em Cochim aportara a épica expedição do navegador chinês eunuco e muçulmano Zheng He décadas antes, de quando a Dinastia Ming quis apresentar-se ao mundo — e antes de uma troca de imperadores fazer os chineses se fecharem até o imperialismo europeu no século XIX. Crê-se que foi Zheng He quem trouxe as imensas redes de pesca (da foto inicial), tradicionalmente chinesas, que hoje são marca registrada de Cochim.

Quando eu cheguei a Cochim, cheguei suado de uma expedição de trem que, se não foi tortuosa como a dos portugueses descobridores, também teve as suas agruras. O trem noturno vindo de Goa era 4ª classe (aqui eufemizada como sleeper class, só que, apesar do nome, às vezes você não dorme). Deus me perdoe, mas me fez lembrar as fotos que eu vira de campo de concentração em que os judeus ficavam numas “gavetinhas” junto da parede.
Os trens vêm lotados, em geral com mais pessoas do que assentos disponíveis, e é uma muvuca louca dentro. Pau de arara está perdendo. De quebra, ele para o tempo todo para pegar e despejar passageiros, e o condutor parecia sofrer de amnésia, pois esquecia que já tinha visto a minha passagem e bolia no meu pé no meio da noite pra me acordar e ver de novo. (E pegar no sono no meio daquele conversê tinha me dado tanto trabalho…)
O clima em Kerala é quente como você é capaz de imaginar — isto é, se conhecer o Brasil equatorial. Aquela umidade a 1000 e o calor a fazer você pedir perdão pelos pecados. Eu nunca antes havia visitado um lugar onde os ônibus não têm janelas, são ao ar livre, mas aqui precisa ser assim. (Não me perguntem o que acontece quando chove.)

Cochim hoje é uma cidade razoavelmente grande, de 1 milhão de habitantes, com um centro histórico tranquilo e um tanto turístico. Da estação de trem Ernakulam Junction, a alguns quilômetros da cidade, um tuk-tuk me trouxe.
Apesar do calor, há belos coqueiros em toda parte, gente afável, e uma brisa que às vezes salva a pátria.

Não me demorei a sair do hotel para conhecer o centro histórico, que não é exatamente pitoresco, mas que tem algumas edificações antigas — incluso dos portugueses — e algumas lojinhas com produtos exóticos, como óleos essenciais.
Afora as redes de pesca chinesas na costa, talvez a atração mais característica de Cochim seja a antiga Igreja de São Francisco, de 1503, onde Vasco da Gama foi enterrado em 1524. Seu corpo não se encontra mais aqui, pois em 1539 os portugueses levaram os seus restos mortais para Lisboa.
Vasco da Gama chegaria mesmo a ser Vice-Rei de Portugal na Índia, pouco antes de morrer. Houve uma espécie de alternância entre ele e Cabral liderando as expedições portuguesas: o primeiro em 1498, o outro em 1500. Cabral, retornado a Portugal após o massacre de Calicute que custou a vida de Caminha, se preparava para liderar a chamada “Frota da Vingança“, mas desentendeu-se com o rei e foi afastado. Cabral se casaria e morreria em 1520 em Portugal do que parece ter sido malária (sim, até alguns séculos atrás havia malária e dengue na Europa).
Quem lideraria a nova frota seria assim, novamente, Vasco da Gama. Ele capturou navios mercantes árabes pelo caminho e, após incitar uma guerra entre o governante local de Cochim e o suserano deste, o samorim de Calicute, Vasco extraiu permissão para estabelecer uma colônia portuguesa em Cochim. O navegador retornaria mais uma vez a Portugal, para apenas em 1524 fazer a sua derradeira viagem à Índia, onde contraiu malária e morreu, na véspera de natal daquele ano.





Como estamos na Índia, há cristãos, hindus e também muçulmanos. Num dos meus bordejos de fim de tarde visitando a cidade, presenciei a marcha de fiéis atendendo ao chamado à oração dos islâmicos.
Em inglês (e, portanto, na língua que você provavelmente falará com os indianos), a cidade é conhecida de Fort Kochi, em referência ao Forte Emanuel que Cabral construiu aqui.
Não resta praticamente nada do forte em si, apesar do nome. Pela costa, vi peixes pescados, turistas meio que pescados também, e alguns vendedores ambulantes. Nessa, até tuk-tuk acompanhando-me enquanto eu caminhava na rua e oferecendo-me corrida “de graça” eu tive. Não entrei pra ver qual era o preço escondido. (Não acredite em nada de graça na Índia.)
À noite, eu iria a um espetáculo teatral muito bonito de tradições artísticas de Kerala, no Kathakali Centre. Recomendo.





Saindo daqui, mais uma jornada de trem, agora a Thiruvanamthapuram, a capital do estado, lá bem na pontinha do extremo sul da Índia.