
Jambi, interior da Sumatra. Estamos no miolo de uma das maiores ilhas da Indonésia.
Mas se você assistiu a algum filme americano e acha que aqui estamos no meio da floresta, enganou-se (ou melhor, o enganaram). Jambi é uma cidade de médio porte, e — tal como no nosso “arco do desmatamento” no norte do Brasil — o que há décadas atrás era selva rica em biodiversidade, hoje é área devastada usada para plantações e cada vez mais urbanizada.
Eu vim passar 10 dias a trabalho nesta parte do país.

Desembarcamos eu, Jubi (a minha intérprete indonésia de trabalho e, a esta altura, também amiga), o nosso chefe Fahmuddin, e um time de outros pesquisadores sênior vindos de Bogor, onde venho residindo. Eles arranjaram tudo, e alguém foi nos apanhar de carro no aeroporto (a ausência de um bom transporte público, como sempre, caracteriza os países subdesenvolvidos).
A ilha de Sumatra é menos desenvolvida que Java, e Jambi tem aquele ar de cidade do interior movida a agronegócio. Ruas comerciais feias, sem grande elegância ou história. Nosso hotel, contudo, era muito bom. Depois soubemos à boca miúda que havia sido financiado com dinheiro de desmatamento ilegal.
(Esqueça a floresta equatorial que havia aqui, nesta região ela já quase toda deu lugar a plantações de borracha, eucalipto e palmeira oleaginosa [dendê], que alguns aí no Brasil estão doidos para espalhar na Amazônia e chamar monocultivo de “reflorestamento”, engana-trouxa.)



Após os primeiros dias de reuniões e contatos, foram todos embora e ficamos apenas Jubi e eu. Teríamos algumas reuniões antes de ir à zona rural conversar diretamente com agricultores, mas não hoje.
Hoje era uma despretensiosa tarde de quinta-feira, e eu estava sentado no lobby do charmoso hotel feito com dinheiro de desmatamento. De um lado, o muezim chamava “Allaaaah” (igual em O Clone) para lembrar aos fiéis a quarta oração do dia. Do outro, alto som de Lady Gaga na festa de casamento rolando no salão do hotel. Eu dava aquela risada silenciosa com o choque de culturas. (Não, a música do casamento não era Bad Romance.)
Estamos num país de maioria muçulmana, em verdade o da maior população muçulmana do mundo (a Indonésia tem 260 milhões de habitantes, mais que qualquer país árabe), e os muçulmanos têm de rezar 5 vezes ao dia, com hora mais ou menos marcada: (1) Ao levantar do sol, (2) ao meio-dia, (3) no meio da tarde, (4) ao pôr do sol, e (5) à noite antes de ir dormir.
Os horários exatos dos chamados variam de acordo com o país e a estação do ano. Aqui na Indonésia, como o clima é equatorial e a duração dos dias não varia muito, eles seguem esse esquema básico aí. Várias vezes quando estou com Jubi num shopping ou algo assim, rola um “Peraê que agora eu tenho que rezar.“. Todos os prédios públicos aqui na Indonésia tem mushollas, que são salinhas de oração com tapetes etc., algo menor e mais simples que uma mesquita, como seria uma capela para os cristãos.
Em casa ou no trabalho, normalmente todo mundo tem seu tapete que estende no chão em direção a Meca (assisto às rezas de Pá Harry, meu colega de escritório, todos os dias lá em Bogor). Mas é uma oração silenciosa, de uns 10-15 min. Ajoelha, encosta a testa no chão, e balbucia as orações em voz baixinha.

O que eu não previ foi que essas orações fossem interferir na minha rotina. Não tente marcar nada pra sexta-feira ao final da manhã, pois é o dia das orações principais para os homens na mesquita. Então às sextas de manhã eu só marco entrevista com mulher.
Outra coisa é o horário do café da manhã. No segundo dia no hotel em Jambi, me acordaram às 6 da manhã com batidas na porta. Eu achei que Jubi precisava de algo urgente, mas eram os funcionários do hotel trazendo um engana-estômago para quem se levantou para rezar ao nascer do sol e tem que esperar até o café da manhã começar às 7:30. (Quando eu atendi à porta só de calção, a servente reagiu como se tivesse me visto nu e ela, cometido um pecado imperdoável por me ver assim.)

Como agora ficamos apenas nós dois na cidade, tivemos que procurar um hotel mais barato. Eu cheguei a propor dividíssemos um quarto, com camas separadas, ao que ela reagiu rindo com um “Você está louco?“.
Sem uma internet boa, saímos de porta em porta procurando hotel, e Jubi traduzia a minha negociação com os recepcionistas.
— “Mairon, ela está dizendo que os quartos têm televisão e ar condicionado. E eles servem o café da manhã no quarto, incluso no preço.”
— “Parece legal.”
— “Entre 5:30 e 6:00 eles batem na porta pra entregar.”
— “(!!!!) O quê?! Não, diga a ela que a minha reza é flexível no horário, e que ela pode pular a porta do meu quarto.”
— “Kkkkkkk!”, Jubi se rachava de rir, me olhando com aquela cara engraçada de “como é que eu vou dizer isso a ela”. “Mas e aí, vamos ficar com esse então?”
— “Pera, quero saber mais uma coisa. Pergunta a ela se tem chuveiro.” (Eu já estava ressabiado das minhas semanas tomando banho de cuia em Java.)
Jubi pergunta à recepcionista, e me traduz a resposta.
— “Ela disse que não. Só no preço ‘Suíte’ é que tem uma banheira, mas também sem chuveiro.”
Fomos ver o quarto, um cheiro de mofo, e o banheiro dava tristeza. Fomos procurar outro hotel. A coisa foi indo assim. Numa das outras vezes, eu quis saber qual era exatamente a diferença entre os quartos “Superior“, “Deluxe“, e “Luxury“, que tinham preços muito diferentes, e a funcionária não entendia. (Estas coisas na Indonésia requerem paciência.)
O hotel onde finalmente nos instalamos (em quartos separados) não é mau. Tem chuveiro e, de quebra, internet. E aqui eles só me acordam às 6:20 pra o café na porta.
O hotel também é animado. Dois casamentos rolando aqui hoje. Não vi cerimônia alguma, só a festa. Mas esses são sino-indonésios (minoria de ancestralidade chinesa e que, em geral, não é muçulmana). Portanto, o único “ritual” que vi foi o karokê com a meninada desafinando. Dois carros enfeitados esperam na porta, onde também há painéis com os nomes dos casados escritos em flores artificiais produzidos pela Honesty Florist.
Achei irônico que numa terra tropical destas, rica em biodiversidade, as flores da “florista honestidade” fossem de plástico. Mas aproveitar recursos da região, incentivar produtores locais e tal, isso não é comum aqui. Se fosse na Holanda, isso teria todo um empreendimento, além de empresas floristas com flores tropicais, etc.
A título de curiosidade, é nativa daqui de Sumatra a maior flor do mundo — a Rafflesia arnoldii (não, não é referência ao Schwarzenegger), de até 11kg e 1m de diâmetro.
E a coisa se repete: hoje procurei sorvete pra aplacar o calor, e os únicos sabores que você encontra são: chocolate, baunilha, morango e mirtilho (blueberry nos países de língua inglesa). Provavelmente a grande maioria dos indonésios nunca viu nem nunca vai ver um mirtilho. Enquanto isso, as ruas estão cheias de vendedores pobres com graviolas, goiabas, frutas-dragão e outras delícias dos trópicos asiáticos… todos excluídos, frutas e vendedores.
Tive uma discussão com Jubi sobre por que nenhuma dessas frutas nativas aparecia no café da manhã do hotel, que só servia melão e melancia, e ela esclareceu que é porque é o que é considerado chique.

Como não há muito o que ver ou fazer aqui nas horas vagas, as saídas são mais pra comer algo.
Fui parar em lugares muito glamurosos nestes últimos dias: daqueles com a toalha plástica transparente que gruda no seu ante-braço enquanto com a outra mão você segura o garfo e tenta espantar as moscas.
Ou daquelas com mesa de madeira recoberta por uma folha de alumínio batida a prego em cima. Essa foi de uma banquinha onde Jubi e eu estávamos comendo bolinhos fritos (de arroz e de tofu, servidos com molho de soja e de pimenta) enquanto eu assistia ao cara enxugar o suor do pescoço com o pano de prato. Que maravilha!

Os sumatrenses tem um método muito particular de servir o almoço: eles trazem todos os pratos à sua mesa e você escolhe pegar do que quiser.
Há normalmente uns 12 pratinhos com porções das diferentes comidas, incluindo salgadinho de pele de boi frita, cabeça de peixe, e jaca verde cozida no molho. Você vai tirando com a sua própria colher ou com a mão mesmo. Boa parte das pessoas aqui come de mão, então eles lhe trazem uma tigelinha d’água pra você limpar as pontas dos dedos. O que você não comer ou que sobrar, volta para a panela principal pra ser servido ao próximo cliente (legal, né?). Ao final vem o garçom com o bloquinho e faz a contabilidade com base no que você comeu ou deixou de comer.


Mas isso aqui ainda não é a zona rural. Próximo fim de semana, aí sim, será hora de me embrenhar no brejo. A primeira parada será o vilarejo de Muara Jambi pra passar a noite lá. (Ontem deu um toró acaba-mundo e a estrada deve estar uma beleza.) Depois virão os povoados de Muara Bungo e Tanjung Jabung na semana que vem. Tenho certeza de que as histórias virão. Falo com vocês após.
Arrrrremariaaa. Que horror esses lugares…hahah ainda mais com calor e chuva, deve estar mesmo uma belezura hahah
A cidade tem mesmo as características daquelas do lado de cá da latinoamerica. Juliaca e Puno são muito parecidas, assim como de outras regiões ai do SE asiático. Coitado dos pobres desse mundão de Deus e dos sistemas capitalistas de periferia. Deus nos acuda.
Horrivel essa politica de desmatamento e substituição por esses plantios de enganação. Um absurdo. Uma hora dessas será a Amazonia. Aos poucos esta sendo destruída.