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Ucrânia

Quem é a Ucrânia: Identidade, Revolução Laranja, e a Praça (Maidan) da Independência em Kiev

A Ucrânia é um país que muitos conhecem, só que não. Sabemos que fica no leste europeu, perto da Rússia, mas pára por aí. Poucos sabem, por exemplo, que a Ucrânia tem idioma próprio (o ucraniano), que é o maior país da Europa após a Rússia (e dos mais populosos, com 45 milhões de pessoas), e é uma das identidades nacionais que mais se afirmam neste século XXI.

Eu tive uma breve passagem por aqui em abril, minha primeira experiência neste país, para agora no verão retornar com mais tempo. Tive oportunidade de provar e ver algumas das muitas pequenas coisas que, juntas, compõem esta nação.

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A Praça da Independência, coração da capital Kiev. Chama-se Maidan Nezalezhnosti em ucraniano, ou simplesmente a “Maidan” (a Praça), como é apelidada. (“Praça Maidan”, portanto, como traduzem alguns jornalistas, não faz sentido pois seria dizer “Praça praça”.)
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No alto do pilar de 61m de altura está uma imagem de Berehynia, “a mãe protetora”, uma figura mitológica eslava pré-cristã. Seu resgate fez parte do ressurgimento da identidade cultural e do nacionalismo ucraniano no século XX.

Kiev, hoje a capital ucraniana, é na verdade uma das mais importantes cidades históricas para os povos eslavos. Foi aqui, na Idade Média, que pelos idos do século entre 880-980 d.C. o povo eslavo dos Rus aproximou-se de Constantinopla e decidiu adotar o cristianismo. Foi também a época em que São Cirilo e São Metódio, teólogos gregos do Império Bizantino, criaram (baseado no grego) um alfabeto para escrever as línguas eslavas das regiões onde eram missionários — alfabeto que veio a ser chamado de cirílico, usado hoje pelas línguas russa, bielorrussa, búlgara, ucraniana, sérvia, entre outras. 

O Principado de Kiev (882-1240) foi dos estados mais poderosos da Europa à sua época. Sofreria, no entanto, por disputas políticas internas e seria devastado pela onda invasora mongol de Batu Khan (neto de Gêngis Khan) e a sua Horda Dourada no século XIII.

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As várias tribos eslavas da Idade Média em seus 3 grandes grupos: Eslavos do Sul, Eslavos do Oeste, e Eslavos do Leste. Neste último grupo estão os russos, os bielorrussos, e os ucranianos.

É importante notar que, superada a dominação mongol, os vários povos eslavos desta região (chamados de eslavos orientais, em contraste aos eslavos ocidentais das atuais Polônia, República Tcheca, e Eslováquia, e aos eslavos do sul, da Bulgária e dos países que compunham a antiga Iugoslávia, atuais Eslovênia, Croácia, Sérvia, Bósnia, Montenegro, e Macedônia) passariam a ficar espalhados em impérios distintos.

Os príncipes de Moscou organizariam o seu próprio estado com sucesso, clamando para si a identidade Rus — e posteriormente também o legado de Constantinopla, adotando o título de Czar (“César”) para os seus monarcas. Quando Constantinopla caiu para os turcos em 1453, Moscou decretou-se “a terceira Roma”. 

Já os atuais bielorrussos e ucranianos, mais a oeste, ficaram séculos divididos entre dominação pelos Habsburgo da Áustria, poloneses, moscovitas, ou pelo Khanato da Crimeia (um estado hoje extinto, que foi herdeiro dos mongóis e veio a ser conquistado pela Rússia). Eles só reveriam soberania em 1991, e a duras custas.

O Império Russo, que veio a conquistar a maior parte da atual Ucrânia, adotou um forte processo de russificação e supressão de identidades locais conforme expandia os seus domínios. Temendo a aurora do nacionalismo no século XIX (inspirado pela Revolução Francesa e pelos bem-sucedidos movimentos independentistas nas Américas), e querendo forçar a construção de um nacionalismo russo, os czares proibiram o uso da língua ucraniana e ordenaram o fechamento de todas as instituições que a ensinavam. 

Quando as revoluções socialistas de 1917 derrubaram a monarquia russa, iniciou-se a Guerra de Independência Ucraniana (1917-1921), mas tudo o que ela obteve foi certa autonomia dentro da nascente União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (a União Soviética). Esta era uma das várias repúblicas que a compunham, a República Socialista Soviética Ucraniana

Embora o começo tenha sido permissivo em relação ao uso e à instrução escolar na língua ucraniana, logo viriam os anos 1930 de Stálin e suas perseguições; entre elas, às liberdades nacionais ucranianas. Quando os alemães invadiram esta região na Segunda Guerra Mundial foram tolos, pois devastaram os ucranianos em vez de recrutar suas frustrações a seu favor contra Moscou. A União Soviética reconquistou tudo, e foi apenas com Nikita Khrushchev, após a morte de Stálin em 1953, que repressão aos ucranianos se amenizou. E somente em 1991, com o fim da União Soviética e o estabelecimento da atual república independente, que os ucranianos adquiririam soberania.

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Estátua mítica na Praça da Independência, dos quatro irmãos que, segundo a lenda, teriam fundado a cidade de Kiev no começo da Idade Média.
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Crianças ali brincando, num dia de verão.

Hoje a Ucrânia é um país complexo. Embora independente, ela continua a sofrer influência econômica e política da vizinha Rússia — inclusive em questões de corrupção. Em 2004, essa mesma praça se encheria de manifestantes protestando contra uma fraude nas eleições presidenciais em favor do candidato mais amistoso à Rússia. Foi a chamada Revolução Laranja, que adotou a cor da bandeira do candidato derrotado — ou melhor, vitorioso, mas cuja vitória havia sido fraudada — e que através de ocupações, greves e desobediência civil conseguiu reverter a fraude.  

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Foto da Praça da Independência à época da Revolução Laranja de 2004.

Anotação posterior (Set. 2016) 

Esta praça viria a ver muito pior nos anos a vir. No final de 2013, o presidente ucraniano amigo da Rússia Victor Yanukovych — o mesmo que havia sido declarado vitorioso com fraude em 2004, mas que conseguiu eleger-se em 2010 — abandonou um acordo de aproximação com a União Europeia, em favor de receber mais um empréstimo russo. A juventude aqui favorável a uma independência maior, com o sonho de vir um dia a integrar a União Europeia, então ergueu-se contra o governo. Os confrontos custaram centenas de mortes, mas levaram ao impeachment do presidente Yanukovych, que fugiu para a Rússia. (No seu patrimônio pessoal deixado para trás incluíam-se um zoológico particular e um iate chamado Bandido).

A Rússia, em retaliação, invadiu e anexou a região estratégica da Crimeia, onde desde sempre a Ucrânia lhe alugava o direito de manter bases navais no Mar Negro — e que o novo governo revolucionário, pró-Europa, certamente revogaria. No leste do país, movimentos separatistas emergiram também em resposta, com apoio russo.

O fator complicador é étnico. Tanto na Crimeia quanto no leste da Ucrânia, a maioria da população de fato é etnicamente russa, fala sobretudo a língua russa, e naturalmente preferem que a Ucrânia tenha laços mais fortes com a Rússia do que com a Europa. É uma minoria que não se sente representada por um governo ucraniano pró-Europeu em Kiev, e que a Rússia usa como justificativa para interferir nas questões internas da Ucrânia.

Os conflitos persistem no leste ucraniano; a Crimeia se tornou de fato parte da Rússia; e a Ucrânia continua a aproximar-se da União Europeia. Em 2014, uma parte do acordo de aproximação — que visa a harmonizar as políticas e leis ucranianas em acordo com os padrões europeus — começou a ser aplicada, e mais uma outra parte em 2016. A direção que as coisas estão tomando atualmente parece clara; no entanto, com o recrudescimento das relações entre a Rússia e o Ocidente e o surgimento do que alguns chamam de uma “nova Guerra Fria”, o futuro segue incerto. Venha o que vier, a Ucrânia está no miolo das disputas.

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This combination of pictures shows Independence Square in Kiev on April 22, 2009 during a social movement called "Smile Ukraine! Smile overcomes a crisis!" organized by students (top) and the same square pictured on February 20, 2014, three months after a political crisis erupted leaving around 60 dead. AFP PHOTO/ SERGEI SUPINSKY/BULENT KILMLIC (Photo credit should read SERGEI SUPINSKY,BULENT KILIC/AFP/Getty Images)
Estas duas imagens mostram a Praça da Independência em Kiev, de um lado em 22 de abril de 2009, num evento chamado “Sorria, Ucrânia! Um sorriso supera a crise!”, organizado por estudantes; e, do outro lado, a mesma praça em 20 de fevereiro de 2014, três meses após o início dos confrontos. (SERGEI SUPINSKY, BULENT KILIC/AFP/Getty Images.)
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Eu na Praça da Independência, antes dos acontecimentos.

Dos muitos elementos culturais ucranianos, eu gostaria de mostrar dois que me impressionaram aqui — para o bem ou para o mal.

Não curti muito a comida ucraniana. Inevitavelmente, é uma culinária semelhante às dos países vizinhos como Rússia e Polônia, com bastante enfoque em carne cozida, banha de porco, e nada muito temperado. Nós vegetarianos basicamente comemos a semana inteira cogumelo com batatas amassadas e às vezes arroz.

O café da manhã era cada amarra-estômago de dar arrepios. Às vezes salsichão, ovo fervido e pão. Ou salada de repolho cozido com ameixas secas no vinagre. Nessa região da Europa se come muita batata, carne cozida, cogumelo e repolho, além de algumas sopas frias com creme de leite dentro. Não varia muito disso, e depois de uma semana você começa a imaginar como é que se pode viver anos nessa falta de criatividade culinária.

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Uma refeição típica (se não houver carne) na Ucrânia se parece assim. Passei uma semana inteira nessa base: salada crua, arroz com cogumelos, pão e sopa, além da xícara de chá preto ali.
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Esses pasteiszinhos de massa (vareniky) são fervidos, super típicos na Ucrânia. Isso aí por cima é banha de porco. O recheio pode ser batata, repolho, etc. A versão doce é gostosa, com cerejas, e troca-se a banha por creme de leite.

Além disso, eles aqui têm o hábito de servir caviar no café da manhã. Você aí que conhece caviar só de fama já deve estar “Oh meu Deus, que chique!“, e não sabe o bagulho que caviar é. Caviar são ovas de peixe, e o gosto é esse mesmo: de ovos de peixe. Parece que você está tomando um gole de água do mar.

O caviar caro é um tipo em particular: as ovas de esturjão do Mar Negro ou do Mar Cáspio (ambos próximos daqui). No entanto, nesta região comem-se ovas de salmão (na foto abaixo) e outros peixes. Que coisa horrível. Você sente o partir daquelas bolhinhas na sua boca e o despejar de água salgada goela abaixo com o pão. 

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Meu caviar do café da manhã de (quase) todo dia. (A folhinha, caso você esteja se perguntando, é endro, uma erva da família do erva-doce e que os ucranianos e russos põem em todos os pratos imagináveis.)

Como que para compensar, eu aqui fui apresentado à bela tradição folclórica ucraniana — com uma música animada, danças legais dessas de vilarejo, e belas roupas rendadas.

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Banda folclórica ucraniana em trajes tradicionais.
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Como outras danças folclóricas europeias, usa bastante o acordeon.
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Eu com a minha cara de ligadão.

Deixo vocês com uma amostra boa que encontrei dessas tradições folclóricas ucranianas. Embora a nossa apresentação não tivesse as piruetas, o espírito é o mesmo. Para vocês se lembrarem melhor da Ucrânia de agora em diante.

 

Mairon Giovani
Cidadão do mundo e viajante independente. Gosta de cultura, risadas, e comida bem feita. Não acha que viajar sozinho seja tão assustador quanto costumam imaginar, e se joga com frequência em novos ambientes. Crê que um país deixa de ser um mero lugar no mapa a partir do momento em que você o conhece e vive experiências com as pessoas de lá.

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