Era o meio da noite quando eu adentrei a Ucrânia desta vez. Após uma breve visita aqui meses atrás, eu agora chegava para pouco mais de uma semana realizando um evento sobre meio ambiente com jovens de toda a Europa.
Desta vez eu vinha da Bielorrússia, em pleno verão europeu. Trem noturno, com checagem de passaporte pelas polícias bielorrussa e ucraniana às 2:30 da manhã — uma delícia. Trem até razoável, diga-se a verdade. A chatice foi apenas ficar duas horas acordado de madrugada pra a checagem dos seus papéis de imigração. [A Ucrânia depois passou a isentar os brasileiros da necessidade de visto.]
Kiev, a capital ucraniana, no verão se transforma em outra cidade, distinta daquela que eu havia visto antes.


Eu e meus colegas de trabalho desta vez nos instalamos fora da cidade, num hotel de campo onde era possível realizar o evento; mas viemos a Kiev para ver e visitar algumas das atrações que mostrarei aqui.
Afora a Praça da Independência, retratada no post anterior, o que mais caracteriza Kiev são as suas igrejas ortodoxas, como as do lindo “Mosteiro de Lavra”, aqui fundado no ano 1051. Se você abrir o portal TripAdvisor, verá que todas as cinco atrações mais populares de Kiev são igrejas, e isso não é sem razão.
Acho que esta é também uma boa oportunidade para tratar do Cristianismo Ortodoxo, tão desconhecido no Brasil, mas tão fundamental para a identidade dos ucranianos — e de outros povos do leste europeu.



Esse mosteiro, como praticamente todos os demais templos cristãos em Kiev, pertencem à Igreja Ortodoxa. Para quem ainda está confuso ou não sabe muito sobre o Cristianismo Ortodoxo, deixem-me esclarecer.
Antes de haver a divisão entre Católicos e Protestantes (nos idos de 1500), houve uma cisão anterior, entre a Igreja de Roma e a Igreja de Constantinopla, depois que o Império Romano se dividiu. Chama-se O Grande Cisma do Oriente. Por tradição não havia Papas; o líder da igreja era o próprio imperador romano — tradição iniciada por Constantino no século IV. Com a queda de Roma e a transferência do trono imperial para Constantinopla (atual Istambul), no entanto, o poder religioso se dividiu. Diz a História que no ano de 1054 um contingente de bispos ligados a Roma foi a Constantinopla solicitar que reconhecessem Roma como a igreja principal, mas a reunião acabou em excomunhão mútua, e as tradições se dividiram. De um lado, Constantinopla e a Igreja Católica Apostólica Ortodoxa (nome oficial); do outro, a Igreja Católica Apostólica Romana.
As diferenças estão presentes em todos os campos, desde o linguístico (grego de um lado, latim do outro) até o arquitetônico e o teológico. Não é preciso adentrar todos detalhes aqui, mas vão aqui algumas diferenças ilustrativas:
- Os padres ortodoxos precisam estar casados antes de se ordenar, pois eles argumentam que você não pode servir de guia às famílias se você próprio não sabe o que é gerir uma família. Bispos e monges, por outro lado, precisam de dedicação integral à religião.
- Na tradição ortodoxa não há hóstias, o sacerdote serve pão com vinho mesmo, e cada um come/bebe um pouco.
- Os ortodoxos fazem o sinal da cruz da direita pra a esquerda; já os católicos romanos, da esquerda pra a direita.
- Nas igrejas ortodoxas normalmente não há bancos, todo mundo assiste à missa em pé, e é tradição que as mulheres cubram a cabeça com um lencinho ou véu enquanto permanecerem lá dentro.
- Os sacerdotes ortodoxos em geral vestem hábitos pretos e usam barba, como no primeiro milênio depois de Cristo, e nunca aderiram às vestes coloridas adotadas pelo clero de Roma.
- A igreja romana veio a instituir ideias que a igreja ortodoxa nunca adotou, como as da existência do “purgatório” e da “infalibilidade papal” (i.e. o que o papa fizer, está correto). Os ortodoxos têm patriarcas, mas há vários, e não um só; o mais respeitado ainda é o de Constantinopla/Istambul.
Como Constantinopla foi conquistada pelos turcos em 1453, rebatizada de Istambul e agora é de maioria muçulmana, o centro da Igreja Ortodoxa se dividiu, então cada país tem o seu patriarcado (Rússia, Ucrânia, Grécia, etc.). Portanto, as igrejas ortodoxas não são politicamente unidas como a romana. O patriarca em Istambul — com a diminuta comunidade cristã que ainda há por lá — por tradição ainda é o mais respeitado, mas não é um líder para toda a igreja como é o papa para os católicos romanos.
Já no que se refere à veneração a Maria e aos diversos santos, católicos e ortodoxos são muito parecidos, embora os santos preferidos variem sempre de região para região.
Por fim, vale saber que há várias vertentes do chamado cristianismo ortodoxo, pois houve outras divisões antes de 1054. Na Etiópia ou na Armênia, por exemplo, países que foram dos primeiros a abraçarem o cristianismo (ainda nos idos do século IV), eles mantiveram tradições que Constantinopla viria a modificar e as quais eles não seguiriam. Enfim, para ficar claro que o mundo é grande e que há uma enorme diversidade de igrejas cristãs para além do dualismo “católico x protestante” com que estamos acostumados.




Normalmente eles não permitem fotos no interior, mas lhes digo que os interiores são relativamente simples, bem menos amplos que os grandes vãos das igrejas católicas, e com praticamente todas as paredes cobertas com iluminuras sacras, como aquelas de São Cirilo e São Metódio ali acima.
E o mais importante a ver em Kiev em termos de cristianismo ortodoxo — e provavelmente a mais bela atração dentre todas da cidade — é o chamado Mosteiro de Lavra, do século XI.
No entanto, pra chegar lá é preciso tomar o metrô, um dos mais profundos do mundo. Você será transportado para o outro lado de Kiev, o lado moderno-soviético, dos profundos túneis de concreto e dos vendedores pobres aqui e ali.
O metrô de Kiev parece ponto de ônibus ou estação rodoviária, só que subterrâneo. E quando eu digo subterrâneo, leve a sério: as estações de metrô de Kiev foram construídas no começo da Guerra Fria (nos anos 50 e 60) e preparadas pra servirem também como abrigo anti-bomba. Algumas delas estão a mais de 100m de profundidade, e você leva minutos e minutos na escala rolante. Não é para os claustrofóbicos.


Mas você pode reemergir para uma vista como essa abaixo, para o caudaloso Rio Dnipro (ou Dniepre), que cruza a cidade.

Todos os turistas se referem a este lugar como Mosteiro de Lavra (Lavra Monastery), embora o nome verdadeiro seja Kyiv Pechersk Lavra, ou “Mosteiro das Cavernas de Kiev”. Lavra, na verdade, é o nome grego para os mosteiros da Igreja Ortodoxa.
Este mosteiro foi fundado em 1051 por monges gregos, quando os eslavos rus aqui do Principado de Kiev (ver post anterior) ainda estavam começando a adotar o cristianismo. Como de hábito, os monges bizantinos buscavam uma vida afastada do centro urbano, autônoma, vivendo apenas entre si.
Desde 1990 o mosteiro é reconhecido Patrimônio Mundial da Humanidade pela UNESCO. Hoje são muitas igrejas e jardins — um passeio muito tranquilo, bonito e histórico para um dia de verão em Kiev.




Como se ainda precisasse de mais, eu lhes digo que a Ucrânia é um país bastante barato, então se você é do tipo que gosta de comprar lembrancinhas, vai fazer a feira. (Arte sacra aqui é muito mais barata que na Europa Ocidental, ou mesmo no Brasil.)
Era hora de partir, curiosamente rumo a outro país de maioria ortodoxa, mas desta vez não um eslavo, um latino (embora a maior parte dos ocidentais não o saiba como tal): a Romênia.