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Japão

Kamakura e o festival do arremesso de feijão

Era um belo domingo de sol, apesar de ser inverno. E não era um domingo qualquer: era dia de Setsubun, a festa anual do arremesso de feijão. Essa festa celebra o final do inverno e o começo da primavera — e, portanto, o começo de um novo ano. Nesse dia os japoneses lotam os templos para assistir a rituais, para beliscar comidas em barraquinhas montadas, ou simplesmente para saber a sorte (os japoneses ADORAM mexer com a sorte: adoram um joguinho de azar, amuletos protetores, ver as previsões para o futuro… essas coisas).


E é claro que eu não ia ficar de fora. Minha sorte, no entanto, já estava traçada. Não era preciso mais papelzinho: aquele de Tóquio que já havia previsto a “melhor sorte”, e hoje eu ia começar a ver os resultados.


Para participar deste festival, em vez de ir novamente ao Templo Senso-Ji em Tóquio, resolvi ir vê-lo em Kamakura, uma cidade histórica não muito distante. Levantei cedo e fui ao 7-Eleven (rede japonesa de lojas de conveniência) mais próximo. Tomei a minha dose matinal de “Irashaimaseeeee” [Bem vindo!] e “Ohayô Gozaimaaaaaasu” [Muito bom dia!] dos atendentes da loja, e peguei meu sushi nori-maki com ovo doce e legumes dentro, para o café da manhã. (Lembrete: ovo e omelete no Japão são quase sempre doces, assim como feijão. Não se esqueça disso na hora que estiver pedindo algo). Comi na própria loja, que tem um espaço pra isso, e me fui.


Com o transporte público fabuloso do Japão, você vai de qualquer lugar a qualquer lugar sem grande dificuldade. Em uma hora e meia e apenas uma troca de trens eu estava em Kamakura, cidade que foi o centro político do Japão (apesar de não ter sido oficialmente a capital) entre 1185 e 1333, época conhecida como o Período Kamakura na História japonesa, época do primeiro xogunato (uma situação em que há um imperador mas em que quem manda mesmo é um xogum, um líder-ditador militar).


E esse primeiro xogum japonês foi Yoritomo Minamoto, o fundador de Kamakura. Yoritomo foi um nobre de Kyoto, então a capital, que teve sua família toda exterminada nas guerras e disputas por poder que eram tão comuns entre as famílias poderosas no Japão medieval. Aí foi aquela coisa que se tornou clichê em filmes de ação (e até em novela): a família que mata quase todo mundo da outra, mas deixa vivo o menino, e esse menino desaparece no mundo e depois volta para se vingar.


Com a família toda executada, Yoritomo aos 13 anos foi banido de Kyoto e enviado à zona rural. Aos 30 anos, se casou com a filha de um poderoso e começou a levantar armas contra os aliados daquela família inimiga (os Taira). Quando os amigos da família Minamoto viram que o descendente ainda estava vivo e na ativa, o apoiaram. E assim fundou-se Kamakura, como um refúgio entre as colinas e o mar. Daqui, Yoritomo e seus aliados foram gradualmente ganhando terreno, e pouco a pouco conquistaram o poder, eliminando toda a família rival.


Diz-se que Yoritomo era um samurai excepcional, e que levava tão à risca os códigos de honra que mandou matar até o primo e o meio-irmão quando estes saíram da linha. Quando venceu, o imperador o nomeou Comandante Supremo, e portanto xogum. Mas seis anos depois, em 1198, caiu do cavalo e morreu (essas coisas da vida, hein?). Mas até 1333 o poder continuou centrado em Kamakura.


Oito séculos depois, cá estava eu em meio aos japoneses.

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Visitantes caminhando para o Tsurugaoka Hachiman-gu, templo xintoísta em Kamakura.

Por sorte as coisas hoje no Japão são muito mais pacíficas. Não encontrei nenhum samurai pelo caminho; em vez disso, encontrei Sayako, Mayuko, Yumi e Yuka. Calma que eu explico.


Vejam a sorte do indivíduo: desci do trem, Kamakura Station, e aí começa aquele ritual costumeiro de procurar mapas pelas paredes e abrir o guia de bolso pra saber por onde ir. E é nessa que eu avisto quatro jovens garotas japonesas com uma plaquinha “Guias voluntárias: Estudantes da Universidade de Yokohama“. Hm? Oi?


— “Oi! E aí, como é isso?” — chego eu lépido e faceiro.

— “Oi! Tá precisando de guia? Nós participamos do grupo de inglês na universidade, e fazemos guia voluntária para praticar“, falou Yuka, a mais articulada das quatro.

— “Pra dizer a verdade, tô precisando sim. E como é isso, eu tenho que escolher uma ou vão todas vocês quatro de guia?

— “É. Nós quatro vamos juntas.“, respondeu.

E eu já sem conseguir segurar o sorriso, com aquela mamata sultânica de sair na rua com quatro universitárias guias.

— “Opa! Então vamos lá“, respondi eu depois de alguns segundos com aquela cara de “sério?”.

— “Vamos.”


Elas guardaram a plaquinha da chamada, e assim começava o meu dia de tratamento VIP. Aaah, que país maravilhoso!


A nossa primeira parada foi o templo Tsurugaoka Hachiman-gu, construído pelo próprio Yoritomo no século XII. Ele é o maior da cidade, e portanto onde rola a folia do festival do arremesso de feijão.

E, afinal, o que é esse tal festival? O Setsubun (“divisão das estações”, numa tradução livre) é a celebração do fim do inverno e começo de um novo ano para a natureza. As pessoas jogam grãos torrados (hoje feijão, mas originalmente soja) pela porta de casa, como que para jogar fora os “encostos” e os problemas, e depois comem feijões torrados para trazer a sorte. Nos templos há música, comidas, competições, desfiles em trajes tradicionais, e os organizadores no palco jogando pacotinhos de feijão torrado para a multidão. Dizem que em alguns pacotinhos vêm prêmios em vez de feijão. Como eu disse, os japoneses adoram essas coisas de sorte.


No caminho para o templo, a primeira paragem são as barraquinhas de comida. Aí tem de tudo, desde  galinha frita até “uva do amor” — igual à conhecida maçã caramelizada, mas com uva.

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Barraca de espetinho na festa do arremesso de feijão. Aquele cheirão. É servido?
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Na barraquinha de uva do amor. Havia maçã também, mas eu preferi algo diferente. E o gosto é aquele de açúcar mesmo.

Além disso, tomei sorvete (desses de máquina) de batata-doce roxa na casquinha. Tem gosto de creme açucarado, mas com aquela pontinha de sabor de batata-doce. Não é mau. Havia também de chá verde.


Mas como nem só de comida vive o homem (nem mesmo eu), nós seguimos para o templo. Passamos por umas pontezinhas de pedra bem bonitinhas, e fomos subindo escadarias para queimar as calorias enquanto as meninas me explicavam a história de Kamakura.

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Com dois distintos senhores em trajes tradicionais.

Abundavam também os pontos de venda de amuletos e papeizinhos da sorte, como sempre é o caso aqui no Japão. Há amuletos para tudo, desde sucesso nos estudos até para parir bem. E há os papeizinhos da sorte como os que eu havia tirado em Tóquio, dando uma avaliação de como anda a sua sorte no momento.

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Vitrine de amuletos à venda, cada um para um propósito. (50 yenes dá 1 real, para quem quiser uma ideia dos preços.)
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Balcão de vendas de amuletos e de palitinhos da sorte, onde uma menininha tira o seu.
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Menininha amarra a sua má sorte no templo, para que ela fique lá e não a acompanhe.

Como a festa em si só começaria à tarde, nós fomos almoçar ali por perto. Achamos um restaurante de donburi, arroz-numa-tigela-com-algo-em-cima. Como entrada, salada de polvo, e para beber, refrigerante de melão.

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As minhas amáveis guias em Kamakura.
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Salada de polvo e refrigerante (verde) de melão. Tenebroso. O polvo, que eu experimentei por curiosidade, parece que você está comendo uma borracha. E o refrigerante, imagine o gosto que teria chiclete bubaloo de melão. Pronto, é isso aí, só que no copo pra você beber gelado. Maravilha, hein.

Já o donburi foi mais normal, só mesmo a tigela de arroz com legumes cozidos em cima e um molho.


Dali saímos e voltamos ao templo bem na hora em que os organizadores vestidos em trajes tradicionais estavam do palco atirando saquinhos de feijão para a galera. Não, não consegui pegar um. Os japoneses são vorazes! Vá nessa de que eles são quietinhos. Nessas horas não tem quietude certa. Mas com essa minha linda cara ocidental, uma tia me deu um pacotinho, e eu pude comer meus feijões da sorte para o ano que se iniciava.

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Espécie de procissão de saída depois do arremesso de feijão.
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Senhoras também vestidas em trajes tradicionais.
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Jovens formosas.
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Meu pacotinho de feijões torrados, que ganhei de uma senhora.

Passada a procissão e atirados os feijões, zarpamos. Ali, na verdade, não é a principal atração de Kamakura. O ponto principal é uma grande estátua de Buda, a segunda maior do Japão, um daibutsu (nome dado no Japão a essas estátuas gigantes do Buda).


Ela fica mais afastada, então pegamos o trem e em 15 minutos estávamos lá. Mais lojinhas no caminho, e ao final um pequeno parque-jardim, com a estátua de de bronze de 13m do Buda no meio. É uma sensação quase mística, tê-lo assim calmo, sereno e enorme de frente a você.

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Estátua de bronze (oxidado) do Buda em Kamakura, de 1252. Ficava dentro de um pavilhão coberto que foi varrido por tufões e tsunamis nos séculos XIV e XV. O Buda, contudo, se manteve.
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Visitante olhande o grande Buda de frente. É impressionante. Dá vontade de fixar o olhar nele e entrar em meditação.

Além do Buda em si, há também uma versão gigante das suas famosas sandálias de cânhamo. Diz a lenda que certa vez o Buda estava andando descalço, já com os pés machucados, algumas crianças o viram e fizeram de corda um par de sandálias para ele.

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Com as sandálias gigantes do Buda em Kamakura.

É uma visita rápida mas bem impressionante. Saindo dali, com a tarde já caindo, me despedi do pessoal e fui à ilha de Enoshima, a uma meia hora dali. Quando você vê o mar no Japão bate aquela sensação de: “E se desse um tsunami agora, eu corria pra onde mesmo?“. Mas graças a Deus não teve nada; nem terremoto eu senti.


A área é bem turística, e você percebe claramente de onde vem a inspiração para alguns jogos de video game que os japoneses fazem. Sério: você se sente em Super Mario Sunshine, Yoshi Island, Donkey Kong ou algum jogo assim bem colorido e bem “feliz”.

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Oceano Pacífico na costa leste do Japão, com vista para a Ilha de Enoshima ao entardecer.

Deixo vocês com algumas fotos da ilha de Enoshima e do ponto alto dessa visita a Kamakura, o daibutsu. Já era hora de voltar para Tóquio, pois no dia seguinte me esperava o trem-bala com destino a Kyoto, a antiga capital.

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Templo na Ilha de Enoshima.
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Visitantes formam fila para passar pelo portal e orar à frente do templo em Enoshima. Os japoneses creem que, passando pelo portal, você deixa as energias ruins para trás.
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E o daibutsu de Kamakura.
Mairon Giovani
Cidadão do mundo e viajante independente. Gosta de cultura, risadas, e comida bem feita. Não acha que viajar sozinho seja tão assustador quanto costumam imaginar, e se joga com frequência em novos ambientes. Crê que um país deixa de ser um mero lugar no mapa a partir do momento em que você o conhece e vive experiências com as pessoas de lá.

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