É Natal. Na ausência da família, resolvi viajar — estar com a minha família global, aquela sensação de “estar por aí”, sem conhecer ninguém, mas onde qualquer um pode de repente se tornar seu mais novo amigo. Mas eu não estava sozinho. A meta era passar o Natal com minha amiga Filiz (sim, eu estou ciente do trocadilho). Após deixar Luxemburgo, nos encontramos então em Milão para o Filiz Natal em Veneza. Lá eu também encontraria amigos venezianos pra ao menos jantarmos no dia 25, mas não esperem um post muito natalino. Filiz, sendo turca, nem Natal celebra, e a cidade não oferece muito da festividade a quem vier desgarrado da sua família. Mas Veneza é Veneza, uma cidade pra lá de impressionante.
Como quase todo mundo sabe, Veneza está quase toda sobre a água. As quadras são todas ilhotas, e há canais e pontes por toda parte. Tudo é estreito, com becos em vez de ruas, e não há carros nem ônibus. Aqui o único transporte público é aquático. Impossível não se sentir naquelas cidades medievais só de pedestres. E, junto com o cheiro do mar, vem o ar mercantil da Veneza antiga e seus becos escuros por onde circulavam homens ricos, ladrões e assassinos. De quebra, a cidade está recheada de igrejas, galerias de arte… Então, transporte-se para a Baixa Idade Média e para a Renascença.



Quando chegamos de trem na tarde do dia 24 de dezembro a cidade estava cinzenta e deserta. Os italianos pareciam estar todos recolhidos às suas famílias. A primeira missão foi localizar o albergue, e localizar qualquer coisa em Veneza é uma missão hercúlea. Já andei por mais de 300 cidades em quase 50 países, e Veneza ganha fácil fácil o título de mais labiríntica de todas. Você nunca sabe quando o seu beco vai dar num canal sem ponte, ou se revelar sem saída. E como os becos são estreitos e os prédios são relativamente altos, não dá pra avistar monumentos e usá-los como referência. Então é GPS ou morte. Ou melhor, GPS ou aventura, e eu acho que você deve no mínimo uma vez aventurar-se sem a tecnologia (que eu, por sinal, não usei hora nenhuma). Mas prepare-se para andar.
Chegamos ao albergue, onde fomos atendidos por Sam, um jovem árabe pseudo-italiano, dizendo que era de Bologna mas que obviamente não era. Ainda que se vestisse à moda ocidental (como quase todos os jovens de origem árabe na Europa), o comportamento é bem diferente, e faltavam-lhe o carisma e o humor por vezes debochado dos italianos. Nos instalamos, e logo saímos para comer algo e explorar, tentando guardar o caminho.
Veneza, como toda a Itália, tem a fama da boa mesa, mas extremo cuidado aqui. Os vendedores sabem muito bem disso e o que você mais verá são bodegas vendendo comidas ordinárias ou até tristes de ruins. O que não falta é turista desapontado com cara de interrogação dizendo que comeu uma pizza horrível em Veneza. Simples, meu caro, Veneza não é lugar de pizza, pizza se come em Nápoles, e aqui na Itália o segredo é comer cada coisa no seu lugar de origem. Veneza é lugar sobretudo pra peixe ou frutos dos mar.

Em Veneza, quase todas as ruas levam à Praça de San Marco. A Catedral de San Marco é talvez o monumento mais importante da cidade, e não sem razão. A catedral, do século XI, é um exemplo maior da arquitetura ítalo-bizantina com seus mosaicos dourados e atmosfera semelhante à Hagia Sophia em Istambul. É um estilo mais antigo e diferente do gótico, que se tornaria comum nos séculos seguintes.


Na praça você encontrará também o Florian, um dos cafés mais requintados de Veneza. Está funcionando desde 1720, e dizem que até Napoleão sentou-se aqui para tomar uma xícara.

Ao final do primeiro dia, custamos a achar o caminho de volta. Demos uma volta imensa, esbarramos em dois cearenses na famosa Ponte Rialto, e seguimos por dezenas de becos escuros antes de nos acharmos novamente. Você dá graças a Deus por a cidade hoje em dia ser segura, diferente dos tempos do Mercador de Veneza.


No segundo dia nos encontramos com meus amigos venezianos, pra um dia cheio de benesses inesperadas. Cogitamos ir à ilha de Burano ver o casario colorido, ou à ilha de Murano ver a fabricação local de cristais, mas por ser feriado o transporte aquático era infrequente, e optamos por permanecer na cidade. Foi aí que a sorte virou pro nosso lado.
Primeiro, não distante da Praça de San Marco, meus amigos resolveram nos apresentar um dos hoteis mais luxuosos de Veneza, o Danieli, só para uma espiadinha. Os interiores são belíssimos, remontando à época em que Veneza era uma república independente (801-1797 d.C.), uma potência marítima e uma das cidades mais ricas da Europa.
Eu acho que nos detivemos tanto apreciando a decoração lá dentro que um funcionário, um coroa risonho — este, sim, italianíssimo — se aproximou de nós. Minha amiga Stefania intercedeu e acho que a conversa deu tão certo que Elídio, nosso novo amigo, nos chamou para o elevador. Resolveu nos mostrar o hotel. Os quartos (e até os banheiros) são de cair o queixo, e do terraço do hotel há uma bela vista da cidade.





O preço da estadia? Ao descermos, passamos por um casal que, segundo Elídio (o funcionário), estava pagando 12 mil euros por noite. Vou repetir: 12 mil euros por noite. Isso dá uns 40 mil reais. O quarto do banheiro acima custa em torno de 5 mil euros por noite (~17 mil reais). (Lindo, maravilhoso, mas sinceramente acho um despedício enorme de dinheiro. Pelo preço de uma noite aqui você passa uma bela lua-de-mel em Bali ou nas Bahamas).
Meia hora depois, reencontramos do lado de fora do hotel o nosso amigo Piero, que havia ficado fumando. Está vendo os males do cigarro? Ele já estava enrugado do vento frio, e se perguntando o que diacho nos havia acontecido.
Fomos almoçar. Como se a espera no frio não tivesse sido o bastante, o pobre Piero ainda passou pela hilária cena de ter um cachorro achar que ele era poste e urinar em suas pernas enquanto ele estava distraído. O dono do cachorro ficou todo sem jeito, e até se ofereceu pra pagar uma bebida a Piero, mas ele deixou pra lá. (Piero ainda derrubaria um cálice de vinho durante o almoço. Definitivamente foi um dia difícil para ele). Mas nos divertimos bastante. Conversa foi, conversa veio, como numa boa mesa italiana, e as horas se passaram sem que víssemos. No que tange à comida, permitam-me saltar já para o jantar, pois o almoço foi bastante simples, mais um lanche. Já a janta foi das melhores refeições que fiz na Itália.
Não sei mais onde eu estava; estava perdido. Caminhávamos por várias ruelas, a ponto de nem os venezianos saberem mais onde estávamos. Com a ajuda de um senhor, acabamos chegando ao lugarejo que procurávamos, um pequeno restaurante do irmão de uma amiga de Stefania, um italiano animadíssimo de barba loura e cabelo comprido amarrado pra cima como o de um samurai. Era o chef. No meu prato, um ravioli com queijo e pedaços de pêra no interior da massa, seguido de um flã vegetariano muito bem preparado, acompanhado de polenta e de salada ao vinagre balsâmico. Jesus. O ravioli era um delírio. De sobremesa, panna cotta, o creme italiano que lembra um pouco um pudim, só que mais macio.




Ao final, nosso chef e anfitrião já não estava sóbrio. Agarrou e beijou no rosto cada um de nós, bem em estilo italiano. Só faltou dar aqueles tapinhas amistosos no rosto. Mas, apesar da alegria, ele estava preocupado porque na manhã seguinte estava previsto maré alta, e a maré quando sobe demais em Veneza alaga tudo. Quase todas as casas tem uma placa de metal que eles colocam à frente da porta para bloquear a água, mas ainda assim às vezes entra. A água em Veneza vem por toda parte, inclusive pelo ralo, de baixo pra cima.
Ao fazermos o caminho de volta ao albergue, na rua já estavam postas “mesas” enfileiradas pra as pessoas terem por onde caminhar durante o alagamento. Não ficamos pra ver o ápice da coisa, pois seria de manhã bem cedo, mas ao sairmos no dia seguinte ainda vimos gondoleiro tirando água de balde e sinais do alagamento aqui e ali.






Continua em: Andanças em Milão.