Já é o terceiro banho que tomo para vestir a mesma roupa. Estamos na Península Arábica — não na Arábia Saudita, mas no seu pequeno vizinho, o Catar. Estamos à beira do mar do Golfo Pérsico, e o abafo é úmido como se eu estivesse no verão da Bahia. Eram 31 graus quando eu cheguei à meia-noite, e durante o dia subiu para 37. No verão chega a 50. Há vento, mas ele traz toda a poeira do deserto e das muitas obras pela cidade. Doha, a capital, está em constante construção.
Vim parar aqui para fazer uma conexão de voo (que perdi) entre a África do Sul e a Indonésia. Como a culpa foi de atraso da companhia aérea, colocaram-me num belo hotel com tudo pago. Nada mau; o problema foi a bagagem ter ficado no aeroporto, e eu ter que me virar só com a roupa do corpo. A roupa já estava até meio mole de ter absorvido tanto suor.
Eram 5:00 da manhã quando finalmente saí do aeroporto, meu o voo remarcado para a noite seguinte. Eu teria então um dia inteiro em Doha.

Eu já estava no aeroporto desde a meia-noite, então capotei na cama, tentando não pensar que já estava amanhecendo. O quarto era escuro, com cortinas pretas e ar condicionado, e dava para eu me insular do quente mundo árabe lá fora.
Acordei ao final da manhã. Nesta parte do mundo é costume se fazer a siesta — provavelmente foi dos árabes que os espanhóis e portugueses aprenderam. O calor é demais, então as lojas fecham para almoço e só reabrem umas 4 da tarde, para então ficarem abertas até altas horas, lá pelas 10 da noite ou mais. Almocei 0800 no hotel, patrocinado pela cia aérea (comida genérica de buffet, nada muito árabe), e às 3h da tarde eu saí pra ver qual era, e começar o meu bordejo.
As ruas ainda exalavam aquele calor de tarde de verão no Brasil, aquelas tardes luminosas e abafadas em que a luz do sol no asfalto lhe dói na vista e você quase vê miragem. Às vezes passavam carros, mas parecia que eu era o único maluco saindo a pé àquela hora. Perguntei no hotel qual a direção do centro, para confirmar, e como de costume nestes países tradicionais da Ásia e África, me responderam o que eu deveria fazer em vez de me responderem o que eu havia perguntado. (Aqui é comum que, sobretudo os homens, julguem saber o que é melhor pra você e lhe digam o que fazer). O cara me explicou que o centro era longe, que estava calor, que eu devia pegar um táxi… tudo menos o raio da direção que eu perguntei. Insisti, fiz que ia embora, e perguntei novamente se era pra aquele lado, e ele confirmou.
Você deve imaginar o Catar como as imagens que vê daqui e de Dubai com aqueles arranha-céu reluzentes, que aparecem em filmes e novelas. Saiba que aquilo está longe de ser representativo. Aqueles prédios existem, mas são só o centro financeiro e empresarial. O grosso da cidade é muito menos glamuroso, e repleto de lojas da e para a classe trabalhadora imigrante (aqui sobretudo árabe e indiana). Eis a realidade:




Em meio ao concreto quente, você vê algumas palmeiras e muitos bancos. Haja banco. Afinal, aqui é um centro de circulação de dinheiro.
O Catar é um país estranho. A população catarense (ou qatari) não é mais que 15% — todo o restante são trabalhadores imigrantes. Parece uma nação fantasma, pois a coisa mais difícil é encontrar um qatari. Eles são a classe rica, dominante, dona dos empreendimentos mas raramente vista. Na Qatar Airways, por exemplo, os tripulantes são romenos, chineses, indianos, egípcios… “Ninguém é do Catar“, me disse sorrindo um funcionário do Sri Lanka, quando perguntei.
O país tem o segundo maior PIB per capita do mundo, atrás apenas dos Emirados Árabes Unidos. O dinheiro, é claro, fica todo concentrado na classe rica. São bilhões em reservas de petróleo e gás natural, e mais em investimentos ao redor do mundo, como no Banco Santander no Brasil. Aqui é uma monarquia absolutista à moda antiga, com a família do emir (Tamim bin Hamad Al-Thani) mandando em tudo. São eles os donos da Al Jazeera, o maior canal de notícias do mundo árabe, e agora sua menina dos olhos é a Copa de 2022, a ser realizada no Catar. Tudo aqui faz referência a essa conquista de sediar a copa (certamente comprada da FIFA com muitos petrodólares).



Depois de caminhar uns 40 minutos debaixo do sol de lascar, cheguei à beira-mar, a charmosa orla de Doha chamada de corniche, do francês. Lá há souqs, mercados tradicionais árabes (como as medinas) no centro antigo e também o Museu de Arte Islâmica, patrocinado pelo emir. A entrada é franca, e foi lá que passei boa parte da tarde enquanto sol abaixava. O museu é lindo, e eu recomendo a visita. (Além das exibições, o legal foi ver os funcionários falando comigo em árabe, achando que eu era da região).







O centro financeiro, como você deve imaginar, são prédios e mais prédios com escritórios de empresas. Não há muito o que fazer, muito menos a pé. Preferi ir o centro antigo, bem conservado.
Caído o sol, fui circular nos souqs, os mercados. Quando cai a tarde as ruas ganham vida, e de repente elas se enchem de árabes em suas túnicas brancas, de imigrantes indianos com suas calças compridas empoeiradas, e de alguns poucos turistas. O mais difícil de ver são mulheres. Os imigrantes aqui são sobretudo homens que vêm sem suas famílias. (De acordo com o censo de 2013, 73% da população do Catar é masculina). As poucas mulheres que você vê estão em geral de preto e bem cobertas.




Nas ruas do centro antigo também chamam a atenção as aves. Há lojas de falcoaria por toda parte, e até mesmo um hospital de falcões que, ao menos na fachada, faz inveja a muitos hospitais brasileiros de gente. Há dezenas de aves coloridas à venda nas ruas, como papagaios e araras trazidos das Américas Central e do Sul (de onde são nativos). É uma sensação estranha de ilegalidade, essa venda assim descarada às vistas de todos. Claro que aqui é legal, pois o emir permite o que quer, mas dá aquela sensação de que a qualquer hora vai haver uma batida do IBAMA. Só que não.


Com o anoitecer, as pessoas vão deixando seus trabalhos e você começa a ver muitos fazendo cooper na orla. O calçadão, antes quieto, fica bem movimentado. Também presenciei a chamada para a quarta oração do dia, das cinco que os muçulmanos devem fazer. Veja o movimento na rua e o chamado do muezim no vídeo. 1 minuto da vida em Doha. (O chamado não é gravado, é sempre feito na hora).
Quanto a mim, era quase hora de voltar ao hotel para jantar. À meia-noite a van me levaria novamente ao aeroporto, para desta vez voar — inshallah! Fiz o caminho de volta, a noite ainda quente. Portanto, 24h depois da conexão perdida estava lá eu para pegar o mesmo voo no dia seguinte. Acabou sendo um daqueles males que vêm pra bem, pois me permitiu ver mais um país. Agora, vamos ao destino: Indonésia, aí vou eu.
Deixo vocês com a bela vista do mar e do centro financeiro de Doha à noite.



Adorei! Obrigada!!