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Marrocos

No Deserto do Saara: Camelos e muita areia em Merzouga

Areia, vento, calor. O que você se esquece de imaginar é o silêncio. Na cidade há sempre barulho de algum tipo; no campo há pássaros e outros sons da natureza; já no deserto não há nada — às vezes nem o vento faz ruído. Conforme você trota no camelo, entre um grunhido ocasional e outro, parece que você saiu do mundo e se encontra num espaço paralelo. A sensação é de sossego e serenidade, se você souber aproveitar a quietude.


Como a camelada é feita ao fim da tarde, não é quente. Pelo contrário, rapidamente esfria, e prepare-se para uma noite de bater os dentes se você não estiver agasalhado. Nossa tenda foi das mais vagabundas, cheia de areia e piolho.


O ponto de partida para passeios de camelo no deserto no Marrocos é Merzouga, uma vila já quase enfiada no Saara e já perto da fronteira com a Argélia. Não imagine um vilarejo idílico; é mais uma cidade pequena com pistas e hotéis, apropriada para o turismo intenso de estrangeiros. Mas mal nos detivemos lá, e não acho que haja mesmo muito a ver. Quem chega aqui quase sempre já vem com pacotes comprados de Fez ou Marrakech, e o motorista simplesmente nos deixa num hotel à beira do deserto onde os cameleiros (os guias locais que fazem o percurso com você no deserto) já nos aguardam. A bagagem fica na van esperando você voltar no dia seguinte.

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Mustafá o motorista, de preto, nos passando ao cameleiro, de azul. A paisagem aqui ainda mistura areia com algumas plantas e rochas. A visão alta é porque eu já estava em cima do camelo quando tirei a foto. (Sinta a altura).
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Eles facilitam um pouco a vida do turista. Há umas colchas sobre o dorso do camelo, um guidão amarrado pra você se segurar, e os camelos vão em fila amarrados por uma corda uns aos outros pra que nenhum saia em disparada com você em cima.

Pra quem nunca montou num camelo, a primeira sensação é de cagaço. O bicho é alto pra caramba, bem mais que um cavalo (sua bunda fica a uns 2m de altura), e sem um lugar muito firme pra segurar você tem a sensação de que pode cair e quebrar o braço a qualquer momento.

Por sorte eu já tinha andado de camelo antes, na Índia, onde a coisa é menos organizada e mais hardcore. Lá não havia lugar de segurar e o camelo ficava livre para trotar (ou galopar) com você, e só havia uma cordinha presa ao meio das narinas do camelo e que servia de rédea (e que, se você puxasse demais, arrebentaria o nariz dele). Ao final do dia, com as pernas abertas e o bater de bunda, parecia que eu tinha sido estuprado. Já aqui em Merzouga os camelos vão mais docemente, em fila, na paz, com um guia que vai caminhando à frente da linha e segurando a cordinha. Bem tranquilo.

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Éramos duas filas de seis, com os guias indo a pé à frente.
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Eu era o último das duas filas.

Como o trajeto é tranquilo e num período do dia que não é quente, dá pra você apreciar a paisagem e a paz — enquanto que na Índia o que dominava era o instinto de sobrevivência de não cair.


Trotamos por cerca de uma hora e meia. A vegetação desaparece por completo depois de um tempo, e tudo o que resta é a areia. É lindo. Por sorte não estava ventando, ou tomaríamos areia também na cara. Tal como na praia, de repente você percebe areia entre os dentes, nos bolsos, e na lente da câmera.


Conforme o sol ia se pondo, as sombras da nossa fila de camelos iam se estendendo no chão. Trotamos até pararmos para ver o pôr-do-sol do alto de uma duna. Subir é menos fácil do que parece. Você escorrega toda hora e o pé afunda. Além disso, as dunas às vezes são íngremes e enormes.

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Sombras dos camelos na areia.
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Subir e descer é na verdade a parte mais desafiadora do montar camelo. Além disso, quando ele se abaixa pra você desmontar, ele se ajoelha de uma vez, e se você bobear cai pra frente.
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Ali em azul ia um dos nossos guias, miúdo no oceano de areia.
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Ali voltou o guia. Pela posição, parecia que ia profetizar alguma coisa, ou nos lançar raios.
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Já com o sol querendo se pôr. A minha amiga tcheca ali de verde já estava se sentindo a própria Daenerys Targaryen.
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O belo pôr de sol, e a altura da duna. Os camelos nos aguardavam acomodados lá embaixo.

Sol posto, retornamos aos camelos para mais meia hora já meio no escuro, até chegarmos ao acampamento. O acampamento era algo fixo, já que quase ou toda noite há turista. São várias tendas dentro de um cercadinho e com as entradas viradas pra um espaço aberto no meio, como uma aldeia indígena. Havia espaço para fogueira, umas mesas, bancos e cadeiras, uma grande tenda restaurante, e as várias tendas de dormir. Eram todas altas, e você se abaixava só para passar pela portinhola na lona e entrar. “O banheiro é longe. Pra qualquer direção, contanto que seja longe“, foi logo explicando o guia quando chegamos.


Falando em banheiro, a área à frente da entrada do acampamento, onde os camelos passam a noite, estava cheia de fezes deles, umas bolinhas. “Olha, acho que são sementes!“, disse uma das moças, pegando uma com a mão. Acho que não havia nada verde ali num raio de quilômetros. Não demorou a alguém lhe dizer o que eram, e ela jogou fora rápido como se fosse um bicho que ia mordê-la.


Um belo jantar nos aguardava. Como de costume no Marrocos, vieram pratos coletivos de onde todo mundo se serve. (Para turista, atualmente o comum nas cidades são pratos individuais, mas o tradicional é todo mundo comer de mão do mesmo pratão). Aqui não comemos de mão (até porque não teria água pra lavar), mas todo mundo da mesa comia nos mesmos pratos: um tajine de legumes (um refogado temperado, que tradicionalmente é servido numa panela de barro), uma carne (que me disseram ser carneiro), e um pratão de arroz. Não estava mau — comemos e raspamos o tacho parecendo retirantes da seca.

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A lua crescente anunciava uma bela noite.
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A frente da tenda de dormir, iluminada só pelo flash da câmera, já no breu.
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A tenda restaurante, bem mais arrumada. Os pratos na mesa, e umas espanholas simpáticas de companhia.

Jantar terminado, ficamos ali numas rodas de conversa. Depois fui até a entrada apreciar a imensidão fora do acampamento, e lá encontrei a tcheca ajoelhada, olhando a lua. Parecia felicíssima, em contemplação. Queria agora subir no escuro a enorme duna ao lado do acampamento, para enxergar a lua mais de perto. E me chamou. Como é que você recusa um convite desses? Lá já haviam outros do grupo. Acho que quase todos tiveram a mesma ideia. Do alto da duna se via a lua acima, e lá embaixo o acampamento com umas luzes de velas e o som de batuques. Os guias trataram de providenciar a música da noite.


No acampamento havia um casal de tunisianos e um senhor francês que haviam vindo com um outro grupo, e um violão. Também animaram bastante. Começaram com umas notas que eu depois reconheci ser Aicha, um dos clássicos do nosso célebre Khaled (que é argelino). A música fica linda em versão acústica, e ela cantada e tocada pelos tunisianos à luz da lua crescente num acampamento em pleno Deserto do Saara, creia-me, é magnífico. Se não a conhecerem, vejam abaixo.

Allah.

Mairon Giovani
Cidadão do mundo e viajante independente. Gosta de cultura, risadas, e comida bem feita. Não acha que viajar sozinho seja tão assustador quanto costumam imaginar, e se joga com frequência em novos ambientes. Crê que um país deixa de ser um mero lugar no mapa a partir do momento em que você o conhece e vive experiências com as pessoas de lá.

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