Fez deve fazer parte de qualquer vista ao Marrocos. Não só tem a maior e mais antiga medina de todo o mundo árabe, mas provavelmente também a mais louca e labiríntica de todas. Pelos becos você passa de um artesão a outro, do herborista ao ferreiro, cruzando arcos mouriscos e ao lado de fontes d’água ornamentadas com ladrilhos árabes. As crianças te olham enquanto brincam, e você se sente como transportado a um cenário medieval. É medieval, só que real, e atual.
Quando cheguei a Fez, Abdel Salam foi encontrar-me perto do Portão Azul, um dos marcos da cidade. Abdel Salam me havia sido descrito como o “guardião” da pousada onde fiz uma reserva, e eu estava imaginando um gênio da lâmpada, quase. Na verdade, Abdel Salam era um senhor tímido e reservado, já com seus 70 anos, daqueles vovôs tranquilos que a gente vê jogando damas na praça. Cabelo curto branco, rosto enrugado, e suéter de lã. Sem ele, a chance de encontrarmos a pousada era zero.
Google Mapas neste labirinto aqui não vale de nada, pois os becos não estão marcados e, de qualquer modo, quase tudo está marcado errado. Silenciosamente, Abdel Salam foi nos guiando pelos becos e cumprimentando um e outro por quem passávamos até chegarmos à pousada. Era uma casa de dois andares com um jardim de bananeiras e laranjeiras no meio, bem ao estilo mouro — um riad. Procure por um quando vier ao Marrocos — é bem melhor que hotel.



Fez el-Bali, como é chamada a parte mais antiga da cidade, foi fundada no ano 789 d.C., e é patrimônio mundial tombado pela UNESCO. (A parte “nova” da medina é dos idos de 1200 d.C.). Aqui se encontra a mais antiga instituição educacional do mundo ainda em funcionamento, a escola islâmica Al-Qarawine, em atividade desde 859 d.C.. Ela é séculos mais antiga que qualquer universidade europeia.
Não à toa, Fez foi tomada para muitas cenas de O Clone, sobretudo os curtumes (onde se processa o couro cru) do Tio Ali. O tingimento manual do couro em poços redondos você vê aqui igual na novela, e o processo é o mesmo há séculos. (Infelizmente, as condições de insalubridade também continuam as mesmas. Os homens ficam enfiados até os joelhos nos poços de tinta, como se aquilo não fizesse mal). Mas deixem-me primeiro contar como cheguei até lá, e os meus percalços na cidade.

Um belo café da manhã é sempre um bom começo para qualquer cristão — ou muçulmano, ou seja o que for. Os marroquinos gostam de entupir você de comida, sobretudo carboidrato (açúcar e massa). Aqui há o típico crepe marroquino, que é essa massa passada na chapa e no óleo. É gostoso, ainda mais com uma bela manteiga derretida por cima pra ficar mais saboroso (e oleoso). Há ainda outros pãezinhos chatos que você come com geleia, tomando suco de laranja, café e/ou chá de menta. Barriga cheia, era hora de zarpar.
O primeiro marco perto dali era o tal do Portão Azul (Bab bou jeloud), construído em 1913 para servir de entrada ornamental à medina Fez el-Bali. É também onde a muvuca começa, e onde os carros não entram mais. (Diz-se que, de todas as cidades do mundo, Fez tem a maior área livre de carros).


A camisa branca não foi por acaso. Estava um calorzinho violento. Apesar disso, os árabes circulavam cheios de roupas no corpo. E não é só questão de cobrir a pele: eles tinham pulôver, casaco, às vezes três camadas de roupas apesar do calor. “Parece que tá tudo de malária. Febre de malária é que faz a pessoa ficar assim“, comentou a minha mãe, que me acompanhava.
Segundo me disse depois uma amiga marroquina, as pessoas — sobretudo os mais velhos — receiam ficar doentes pelo sobe e desce de temperatura na primavera, já que as noites são frias, então preferem se guardar quentinhos o tempo inteiro. Ao menos os becos da medina são frescos, já que as construções aqui não são de concreto (se fossem, seria um forno).
A medina aqui em Fez é um tanto mais claustrofóbica que a de Marrakech. Se a de Marrakech é em ruelas por onde passam burros e motos, a de Fez é quase sempre em becos mais fechados e espremidos, às vezes cobertos, e frequentemente entupidos de gente. Parece um formigueiro. Como eu disse, é a maior e mais antiga medina do mundo árabe, e também a mais “hostil” a turistas. Os vendedores podem lhe seguir até os confins do universo — um caminhou uns 10 minutos comigo querendo vender um tapete. Perder-se é facílimo, e contar com a ajuda das pessoas é, infelizmente, uma roubada. Tudo ladino, como você verá a seguir. O segredo é manter-se nas ruas principais e, até onde possível, seguir as placas. (Ou chute o balde logo e se meta nos becos, aí boa sorte).
Seguem fotos dos becos e lojas pra dar uma ideia. Embora haja ouro de tolo, enganações e produtos industriais sendo vendidos como “costurados pela minha avó”, os becos são, sim, ricos em artesanato. Há muitas casas onde você vê fabricarem os seus próprios produtos, além de muitos quituteiros e outros. É muito do que no Brasil está se perdendo, já que aí quase todo o comércio hoje é de coisas sem arte (e quase sempre da China). Poucas regiões, como o Ceará, ainda mantêm fortes as tradições de artesania. Elas aqui no Marrocos são em geral bem fortes.




A grande atração de Fez é a medina de forma geral, mas vale a pena checar lá o museu de arte em madeira. Além disso, dê uma espiada pela porta da mesquita e escola Al Qarawine, cuja entrada só é permitida a muçulmanos.


Numa das várias pausas, sentamo-nos para tomar um suco de laranja numa bodega. Ao nosso lado, um cara passava a mão na língua e usava a saliva pra lustrar a sandália preta, daquelas emborrachadas, de dedo, estilo havaianas mas sem ser havaianas. Poucos minutos depois eu, desmemoriado, apertaria a mão dele. Foi o começo.
O cidadão me perguntou se eu e minha mãe não queríamos ver as tanneries [em francês], a tal parte dos curtumes onde dão cor ao couro. Segundo ele, o pai dele tinha uma loja. (Sei. E o meu também tem). É o tipo de jogada que você sabe que é mentira, mas aparentemente só se chega nesses curtumes se levado por alguém de uma das lojas. E é algo icônico aqui de Fez, que eu não queria deixar de ver. Então topei, embora tenha deixado bem claro que não ia dar gorjeta a ele por isso. “Nããão, nãão, que nada, não precisa nada não. É só pra vocês verem a loja e, se quiserem, levam algo. Mas sem compromisso“. Tá, tô sabendo…
Lá fomos, caminhando uns 10 minutos por uns becos quietos, com túneis, curvas aqui e ali, até darmos com um cidadão de braço quebrado e quem nem idade de ser pai dele tinha.
”Esse é o meu pai“, disse o guia. “Ele vai mostrar a vocês a loja“. O homem mais velho, de ar suspeitíssimo, estava com braço direito quebrado numa atadura por dentro da roupa e meteu a mãozinha para o lado de fora para eu apertar. Apertei.
Entramos na tal loja, lá subimos, e ele me mostrou um monte de artigos em couro (cintos, jaquetas, bolsas, etc.), e subimos mais ao terraço, de onde dá pra ver a favel… digo, as casas simples onde as pessoas trabalham o couro à maneira tradicional. São muitos homens carregando pedaços grandes empilhados uns sobre os outros como se fossem pedaços de lona, pra lá e pra cá. Outros tacam as “folhas” de couro nos poços redondos onde há tinta, e onde o couro vai ganhar cor. Eles ignoram quaisquer medidas de seguranças, e passam horas de trabalho enfiados nos poços de tinta.
Eis. Se você viu O Clone, vai se lembrar das cenas.


Do terraço, o dono da loja foi logo me dizendo que ali não se usam produtos químicos, que toda a coloração é natural, etc etc. Mentira pura. O cheiro é forte a ponto de muitos turistas carregarem um raminho de menta junto ao nariz (embora não seja nada tão absurdo assim e isso seja um tanto para a pose). Absurdo é ser cada corante químico pior que o outro, e os trabalhadores — na maior parte das vezes ignorantes acerca de seus efeitos — se lascarem.
Descemos do terraço de volta à loja, por dentro. A cada andar (três ao todo), ele queria que eu visse os produtos, “admirasse a qualidade”, etc, tudo com aquela língua de serpente de vendedor cismado. Passei a vista, mas nem tanto assim de couro eu gosto. Retornei a onde minha mãe ficou aguardando, no saguão principal da loja no térreo, e fiz pra irmos embora após enrolar mais um pouco. Na saída, como esperado (e onde o “guia” também nos esperava), o lojista veio pedir gorjeta.
”E o dinheiro pro nosso chá?“, perguntou ele em tom quase ameaçador. Eu já esperava. Esses lojistas de Fes são notórios. Eu disse a ele que não via razão pra dar gorjeta por ele ter me mostrado a loja, coisa que todo lojista faz. Seguimos caminhando, e eles atrás de nós. No Brasil, a insistência por dinheiro teria sido interpretada como assalto, mas aqui eu sabia que isso normalmente não é o caso. De todo modo, fiquei alerta, e fomos seguindo. Ele foi jogando o discurso já aguardado, de que me mostrou e eu não comprei nada (e eu fui retrucando dizendo que não tinha obrigação de comprar), até ele nos largar já bem adiante. Disse alguma coisa em árabe, e finalmente ficaram para trás, lojista e guia — digo, pai e filho.
Só tinha um detalhe: eu não fazia a mínima ideia de onde estávamos. Perdi-me completamente no senso de direção, nos becos de Fez, num lugar que eu nunca havia visto.
Bom, caminhar é preciso, então caminhamos. Rodamos, viramos, subimos, descemos — por sorte não estávamos com pressa alguma, era parte da experiência da visita a Fes. As pessoas ou não falam com você ou se oferecem pra ajudar, aparentando a maior amizade, mas na ladinagem, interessados no seu dinheiro — sobretudo homens jovens. Até garotos de seus 12 anos vêm até você, em francês, dizendo que na medina é fácil se perder e oferecendo-se pra te acompanhar — só pra depois lá na frente extrair um trocado de você. (Eu suponho que existe a opção de aceitar a ajuda e depois dizer que não dá nada, mas daí eu já não sei o que acontece, se eles fazem escândalo, xingam sua mãe — e a minha estava bem ali presente pra ouvir em primeira mão — ou o que). Optamos por rejeitar as ajudas com segundas intenções, e seguimos.
Num dado momento, veio um rapaz insistindo que não quereria nada, e que ia nos levar à rua principal, onde, segundo ele, sua mãe tinha um restaurante que ele iria nos mostrar. (Aqui é sempre assim). Eu e minha mãe nos entreolhamos com aquela cara de suspeita, mas decidimos seguir o rapaz. Começamos a voltar o caminho que havíamos feito até ali, e a coisa foi ficando cada vez mais suspeita. Depois de quase 10 minutos de caminhada, começamos a perguntar a outras pessoas em lojas, e cada um começava a indicar um lugar diferente… até que as indicações ficaram mais ou menos consistentes. (Portanto, vai a dica: sempre pergunte a mais de uma pessoa, e de preferência em lojas, onde a pessoa não tem como sugerir te acompanhar).
Só que o que indicavam os lojistas passava a ser consistente mas diferente do caminho por onde o rapaz nos “guiava”. Ao nos determos pra perguntar, ele sempre vinha e atropelava falando com a pessoa em árabe. Até que perguntamos numa espécie de lan house (sim, há lan houses no meio da medina). O cara deu uma indicação diferente, e resistiu. Disse que o rapaz estava nos levando por um caminho errado, que chegaria na rua principal mas só depois de muitas ruelas, e que o caminho mais fácil estava ali muito mais perto. O “guia” ficou indignado e foi embora. Seguimos o caminho instruído na lan house, e logo chegamos à rua principal — finalmente! Ainda vi esse “guia” nos seguindo à distância, certamente pra ver se nos perderíamos de novo, só que não.
Almoço, aqui estamos nós.

À tarde, fomos à parte moderna da cidade. Diga-se de passagem, há avenidas mais bonitas que em muitas cidades brasileiras. Fiquei estupefato, pois achava que Fes era só aquela parte antiga. A área principal é a Avenida Hassan II (em homenagem ao rei anterior, pai do atual), onde você vê casais e grupos de amigos passeando. Uns guardinhas ficam de olho pra não pisarem na grama e nem arrancarem flores.




Era fim de semana, e a avenida estava cheia. Nos lados, bares e restaurantes com muitos homens sentados às mesas e TVs ligadas passando futebol ou algum programa outro. Se você achava que aqui não há bares só porque o Islã proíbe o consumo de álcool, enganou-se: os bares estão cheios, só que as pessoas bebem café.
O café aqui no Marrocos é normalmente servido em copinhos de vidro sem alça, e não em xícaras. Você toma devagarinho, como se fosse uma pinga, enquanto assiste ao movimento da rua. O mais legal é ver a vida social sendo perfeitamente possível sem álcool — o que no Ocidente às vezes parece ser inconcebível.


Outra coisa é interessante é notar como os gêneros aqui são unidos entre si. As mulheres sempre juntas, e os homens sempre juntos. Apesar de todo o machismo, é normal ver homens andando abraçados, de mãos dadas, ou até com os dedos mindinhos entrelaçados, sem que isso tenha a ver com orientação sexual.
Pra a gente aí no Brasil que não está acostumado a isso, acha estranho. Mas essa é a beleza de viajar: ver outros mundos possíveis.

Demos umas voltas por ali, tiramos fotos, tomamos suco num dos bares, e fomos então conhecer o shopping. Não pense que a classe média marroquina vai se divertir na medina. São como a classe média de qualquer outro país em desenvolvimento: querem o que é novo, o que há de moderno, mesmo que aquilo não seja necessariamente melhor. É interessante observar essas práticas sociais e se dar conta de como elas são parecidas ao redor do mundo.

Ainda passamos mais uma noite em Fez, e zarpamos no dia seguinte rumo à arrumada estação central. Se por um lado é bonita, por outro os marroquinos parecem ainda ter pouca prática em formar fila, e você tem que proteger o seu lugar com unhas e dentes na hora de comprar a passagem. Pelo menos os atendentes eram muito profissionais. Na minha fila era uma moça de véu azul, tranquila. “Esse parece que é maluco“, disse eu após o homem à minha frente esbravejar com ela antes de ir embora. “Não, isso é falta de educação mesmo“, respondeu ela sem se alterar, enquanto me vendia a passagem. O Marrocos parece estar em transição, como o mundo árabe. Eu não chamaria de ocidentalização, mas sim de modernização ao seu próprio estilo.
Enfim, o trem nos aguardava. Próximo destino: Rabat, a capital do Marrocos.

Ameiiiii! Vivi em Marrocos 3 anos e falo arabe. Ao ler teu relato revivi Fez. Inesquecivel
Que coisa boa, Denilson. Obrigado. Fico contente. E inveja de você que aprendeu árabe
Olá Mairon! Em dezembro do ano passado, visitei o Marrocos. Conheci Fez, Casablanca e Marrakesh. Te co fesso que foi uma aventura e tanto, sempre antenada! Adorei sua descrição de FEZ, exatamente o que experimentei lá. Adoro seu blog. Parabéns!!!
Obrigado, Márcia! Fico muito contente que o meu relato de Fez tenha sido representativo da sua experiência também, e que você esteja gostando do blog! Um abraço!
Fui convidada por um amigo de marrocos para ir passear la..por favor se puder me responder…e cara a viaje precisa de permussao do consulado onde fica desde ja fico agradecida
Oi Rosana! Não é necessária nenhuma permissão do consulado, nem visto. A cidade em si não é cara; somente os voos pra lá é que são, se você estiver partindo do Brasil. Se você for a partir do Brasil, vale a pena comprar voos separados para Lisboa, e depois de Lisboa para o Marrocos (se não Fez, Marrakech). Sai mais barato. Os voos de Lisboa ao Marrocos são bem em conta. Quanto a onde ficar, recomendo que você dê uma olhada na listagem do Booking.com, você achará bastante coisa :-). Ou talvez seu amigo marroquino tenha alguma recomendação específica. Sucesso!
Gradecida meu amigo…e que sou novata e minha primeira viajem fora e sozinha….vou ler e reler seus blog…amei suas informaçoes….vamos na fé…bom dia