A Cidade do México hoje repousa sobre a antiga capital do império asteca, Tenochtitlán. Se você acha esse nome difícil, ainda não viu nada. Diz a lenda que o deus Huitzilopochtli deu uma visão à tribo Mexica (você nunca havia se perguntado de onde vem o nome do país?), que buscassem um certo sinal e, ao encontrá-lo, ali fundariam uma grandiosa cidade. O tal sinal seria uma águia com uma cobra no bico pousada sobre um cacto — imagem hoje imortalizada no meio da bandeira mexicana.
Segundo esse mito de origem que ninguém sabe até que ponto foi verdade, os Mexica eram uma de várias tribos Náhuatl (a língua comum) que viviam numa terra ao norte chamada Aztlán. Daí vem o nome “azteca”, que na verdade os indígenas não usavam, e que passou a ser corriqueiro só a partir do séc XIX, adotado por geógrafos europeus e daí popularizado. Diz-se que os Mexica foram a última tribo Náhuatl a emigrar de lá, e que vagaram por mais de 200 anos em busca do tal sinal. O encontraram numa pantanosa ilha do Lago Texcoco, onde fundaram Tenochtitlán no ano 1325.

Havia pontes que ligavam a ilha à terra firme, como vocês podem ver na ilustração. Além disso, nos arredores os Mexica aproveitavam-se do lodo nutritivo para fazer agricultura sobre terraços flutuantes entrecortados por canais. Ali plantavam milho, feijão, abóboras, tomates, goiabas, abacates e outros — todos esses, portanto, eram desconhecidos do resto do mundo. No centro de Tenochtitlán ficava o Templo Mayor (em espanhol), e enormes praças abertas onde ocorria o comércio e a vida diária. A cidade era mais populosa que qualquer cidade da Europa à época.

Temos o depoimento ocular de Bernal Diaz de Castillo, acompanhante de Hernán Cortés, que publicou o livro História Verdadera de la Conquista de Nueva España em 1568. Vou deixar no original espanhol, pois dá pra entender:
“Y después de bien mirado y considerado todo lo que habíamos visto, tornamos a ver la Gran Plaza y la multitud de gente que en ella había, unos comprando y otros vendiendo, que solamente el rumor y el zumbido de las voces y palabras que allí había sonaba más que de una légua. Y entre nosotros hubo soldados que habían estado en muchas partes del mundo, y en Constantinopla, y en toda Itália y Roma, y dijeron que plaza tan compasada y con tanto concierto y tamaña y llena de tanta gente no la habían visto”.
Imagine aquela cena social vibrante, com circulação de produtos que vinham desde o norte da América até de partes da América do Sul, como o império inca (na região do Equador e do Peru). Jades, pedras outras, pérolas, pigmentos, alimentos, e algodão, que também é nativo daqui. Há quatro espécies principais de algodão no mundo, mas hoje 90% do usado é a espécie mexicana. O algodão aqui foi domesticado e cultivado desde pelo menos 3.500 a.C., portanto milênios antes de os persas e indianos fazerem o mesmo com suas espécies nativas. Já os europeus só tomariam conhecimento do que é algodão a partir das campanhas de Alexandre, o Grande, na Ásia em 300 a.C., mas seriamente mesmo só ao ele ser trazido da Pérsia pelos árabes na idade média sob o nome de al-qutn.
Os Mexica aqui se assentaram para o que viria a ser um império. Eles se tornaram a tribo mais forte da região e compuseram uma “tripla aliança” com outras duas cidades Náhuatl: as vizinhas Texcoco e Tlacopan. Daí Império Asteca, isto é, de tribos que teriam vindo de Aztlán. Eles gradualmente conquistaram supremacia na região através de guerras e extorsão de tributos. Tomavam também escravos, que poderiam ser usados para os seus notórios sacrifícios humanos que tanto chocaram os espanhóis. O típico sacrifício aos deuses era feito do alto dos templos, onde a pessoa era deitada numa mesa de pedra, aberta com uma faca de pedra afiada, e tinha seu coração arrancado à mão — o corpo deixado rolar escadaria abaixo.



Os espanhóis puseram tudo abaixo. Mas não se iluda achando, como se normalmente pensa, que eles conquistaram os astecas devido a uma superioridade tecnológica. Primeiro: na prática o grosso do exército do conquistador Hernán Cortés eram índios de outras cidades, oprimidas pelos Mexica. Foi, portanto, um levante. Segundo: estima-se que doenças contagiosas até então ausentes nesta parte do mundo dizimaram 90-95% da população das Américas nas primeiras décadas do séc XVI. Repare novamente nos números. Só uma epidemia de varíola em 1520-1521 matou metade da população de Tenochtitlán, estimada em 200-300 mil à época. Estima-se que, na região central do México, numa questão de 60 anos 80% da população indígena morreu vítima de doenças contagiosas. Terceiro: imagine que quem restava dessas ondas de morte deviam ficar desorientados, e as estruturas sociais, econômicas e políticas, altamente danificadas.
Assim não é de se surpreender que em 1521 Tenochtitlán tenha caído nas mãos de Cortés. Ele havia sido recebido como convidado de honra pelo imperador asteca Montezuma II, mas, durante uma confusão entre seus homens e o povo, e aproveitando-se que estava infiltrado no palácio, fez o imperador refém e a cidade foi atacada. Em meio ao caos, Montezuma acabou morto por uma pedrada na cabeça. Foi o apocalipse do império asteca — embora não do povo Náhuatl, que formou o grosso do que viriam a ser os mexicanos, só que agora sob domínio espanhol. Nueva España seria o nome da região do México pelos próximos séculos. (Mais sobre o passado das civilizações indígenas das Américas e novas descobertas neste post aqui, da Bolívia.)

Com o tempo a Cidade do México expandiu-se, o Lago Texcoco foi inteiramente suprimido, e gradualmente a cidade foi retomando a sua história de grande centro populacional. São hoje 20 milhões de habitantes, 1/6 dos 120 milhões no país. Como no restante da América Latina, as riquezas do país passaram às mãos de uma classe aristocrata. Uma distribuição de terras extremamente desigual, que persiste até hoje, levou ao mesmo êxodo rural experimentado no Brasil e ao inchaço da cidade, hoje rodeada de favelas que o narcotráfico infesta (vejam quantas semelhanças). Discriminação racial, religiosa, e injustiças econômicas tornaram-se a norma e, apesar de proibidas por lei, continuam a ser a realidade social do país.

Hoje, a Cidade do México lembra São Paulo: em tamanho, população, clima, cosmopolitismo, ausência de litoral, jeitão da cidade. Só que — permitam-me — creio ser mais interessante ao visitante. Há riqueza histórica por toda parte; mais museus que Paris ou Londres (a Cidade do México é, na verdade, a cidade com mais museus em todo o mundo); belas áreas coloniais que lhe fazem sentir-se transportado a alguma cidadezinha do interior, como Coyoacán; e, de quebra, tem um sistema de transportes melhor, e por um terço do preço da passagem. (Pelo equivalente a R$ 1 você anda em 12 linhas de metrô que cobrem um total de 226km, contra os 74km das cinco linhas do metrô de São Paulo).
E como é andar na cidade? Na verdade, a minha sensação ficou longe — longíssima — da imagem perigosa que pintam da Cidade do México. Tráfico e crime existem, como em outras metrópoles latino-americanas, mas aqui não me pareceram tão à mostra quanto no Brasil. Eu aqui me senti mais seguro e à vontade do que em Salvador ou no Rio de Janeiro, por exemplo. E eu não fiquei só em áreas de turista: me meti aonde o povão vai mesmo.
Assim foi um dia para almoçar, no centro da cidade. Muitos turistas, e até mesmo mexicanos, têm medo da chamada “vingança de Montezuma”, apelido da diarréia que acomete os desafortunados aqui. Mas eu comi na rua diariamente e não tive problema nenhum. Andei por ruas lotadas de gente — à là 25 de Março em SP —, bodegas e galerias de produtos populares de quinta, dessas mesmas que têm no Brasil. As diferenças são poucas: o bafafá é em espanhol em vez de em português, e a televisão, sempre ligada, em vez de estar passando a programação da Globo, passa clipes de música pop latina com morenas de biquíni.






Foi nessa galeria que eu acabei almoçando. O corredor do andar de cima era repleto de restaurantes de altíssima sofisticação. A música dos clips latinos na televisão (alta) dava o pano de fundo enquanto imigrantes chineses misturavam-se aos mexicanos chamando quem passava. Entregavam pedacinhos de papel onde estava impresso o cardápio de cada lugar. E para assaltar-lhe o nariz, aquele cheiro de tortilha e carne fritando por todos os lados, e a fumaça subindo. Achar algo vegetariano foi pancada, mas achei uma sopa de lentilha e um engasga-gato de ovos mexidos no molho de pimenta verde, pra comer com arroz. R$ 5,50 com a bebida incluída (um refresco ralo tipo Tang de uva).



Essa realidade é ilustrativa do centrão da Cidade do México, cujo coração é a praça chamada de Zócalo, onde fica uma imensa bandeira mexicana hasteada, a Catedral Metropolitana, e o Palácio Nacional. Esta parte da cidade, embora humilde, é repleta de prédios antigos e está bem conservada.


Mas pra não pensarem que a Cidade do México é só muvuca, há muitas outras partes mais tranquilas na cidade — e todas em geral bem organizadas. É o caso do Bosque de Chapultepec, o maior parque urbano da América Latina. É lindo. Lá está o castelo onde viveram os governantes do México em sua época monárquica no século XIX. A colina onde ele fica também é conhecida como Morro do Chapulín, que na língua Náhuatl quer dizer um tipo de gafanhoto. (Sim, daí o Chapolim Colorado do Roberto Bolaños ter antenas igual ao inseto).




A cidade tem, portanto, muita cultura e charme. Há os bairros mais achegados aos turistas, como Polanco, Condesa, Roma, e a Zona Rosa (onde vi mais cafeterias do Starbucks que no Brasil inteiro). Contudo, a mim nada cativou mais que o próprio povo mexicano em suas expressões.
O metrô, por exemplo, é definitivamente o mais animado que já tomei em todo o mundo. É um verdadeiro picadeiro, embora às vezes lamentável pela condição precária de tantas pessoas. Há um fluxo constante de músicos, artistas outros, vendedores de bugigangas (desde chiclete até vassouras e cópias do Código Penal Federal), anões, cegos, aleijados que “andam” arrastando-se pelo chão com as mãos, idosos, ou rapazes pobres fazendo loucuras em troca de dinheiro — um que vi fazia um show de quebrar cacos de vidro no chão com o antebraço. Era cada coisa que desafiava a criatividade.

Enfim, uma cidade de muita personalidade, desde que a tal águia resolveu assentar-se num cacto para comer aqui. Precisa ser visitada.
Volto com o post final desta estadia no México na próxima semana.





Fiquei curiosa quanto a limpeza. Aparentemente pareceu tudo limpo. Incrível o avanço com o algodão e que rituais macabros. Acho mto rica a cultura religiosa deles, até um tabu para maioria. Você viu algo a respeito que lhe impressionou?
Obrigado, Jemima! A cidade é bastante limpa mesmo, sobretudo se comparada às metrópoles brasileiras (especialmente no centro e nos bairros principais). Quanto à cultura religiosa dos mexicanos, é mesmo bastante rica. Nas cidades grandes, o que mais se vê é aquele catolicismo tradicional mesmo. Você vê muito daquelas procissões e imensa participação popular nas festas religiosas, como era no Brasil há algumas décadas, e isso me impressionou (comentei algo mais disso no post da visita ao Santuário de NS de Guadalupe, aqui http://maironpelomundo.com/2015/03/27/na-basilica-de-nossa-senhora-de-guadalupe-mexico/)
Presenciei ainda mais disso na viagem que fiz mais recentemente ao sul do México, ainda por relatar. Na zona rural e em pequenas cidades do sul, onde há maior sincretismo entre catolicismo e as religiões tradicionais indígenas, aí você vê algumas coisas “surreais” mesmo, ainda mais impressionantes. Se você acompanhar, verá mais disso nas crônicas da minha segunda ida ao México.
Estou assistindo a série Hernán, que conta a história da conquista do México, ou melhor da destruição da civilização asteca, uma estrutura incrível, destruída pela ganância dos espanhóis!
Cláudia, onde posso encontrar essa série ?