“Cá no Irã, quando lhe perguntarem de onde você é, diga que não sabe, porque não é casado ainda. É um ditado aqui. Afinal, a gente sempre vai parar onde a família da mulher está. Veja eu, sou aqui de Shiraz e acabei indo morar em Kashan“, disse-me o senhor iraniano idoso que nos acompanhou no passeio.
Era um senhor simpático, quieto, de seus 70 anos, daqueles que andam no seu próprio passo, com as mãos para trás e olhando tudo. Daqueles que sabem muita coisa e não puxam muita conversa, mas se você começar a conversar com ele, a coisa vai longe. Imaginem comigo.
Ah! Ele corrigia o guia sempre que necessário, para desespero do mesmo. O nosso guia fazia um tipo Enrique Iglesias versão persa, com cabelo lambido pra cima, anel de bruxo com uma pedra preta para fazer estilo, e aquele jeito descolado “this is wonderful“, “that is really beautiful“, com uma camiseta roxa mostrando os cabelos do peito. Nos disse que havia passado 15 dias acompanhando um coroa carioca pelo Irã. Eu quis brincar dizendo que isso no Brasil levantaria suspeitas acerca da sexualidade dele, mas fiquei quieto. Sáti, era o nome dele. Legal. Parecia frequentador de Miami Beach, se você o visse e o ouvisse falar, e fiquei surpreso quando ele me disse que jamais havia viajado para fora do Irã.
De Shiraz, cá no sul do Irã, é um passeio curto (vai e volta no mesmo dia) até Persépolis e/ou Pasárgada. Facilmente você acha agências e hotéis que fazem esse passeio. O nosso incluiu ambas, além de um curioso almoço sentado no chão na casa de um músico.


Persépolis, hoje sítio tombado pela UNESCO, são ruínas fascinantes. A cidade foi erguida no reino de Dario, por volta do ano 515 a.C., para ser a capital cerimonial do império dos Aquemênidas.
Seu professor de história talvez tenha lhe ensinado que “persas” e “medos” (e daí vem a palavra médico, em referência às práticas de saúde deles) são sinônimos. Só que não. Os persas eram povos do sul do atual Irã, onde ainda hoje existe uma província chamada Fars, onde estamos agora, do seu nome antigo Pars. A Média era um outro reino um pouco mais ao norte, com outro povo, os medos. Foi o rei persa Ciro, o Grande, quem por volta de 550 a.C. conquistou as terras vizinhas, submeteu os outros povos, e assim fundou a primeira grande dinastia do império persa, os Aquemênidas — em referência a um suposto rei ancestral chamado Aquemenes.
Ciro (Kurosh, em persa) conquistou a Média, a Lídia (na atual Turquia), a Babilônia, expandiu seu império da Índia ao mar mediterrâneo, e proclamou-se Rei dos Quatro Cantos do Mundo (de onde vem a expressão). Em verdade, o hábito de ter uma corte, de haver audiências com o rei, de prostrar-se diante da autoridade, etc., muito desse cerimonial depois adotado pelos europeus, surgiu aqui. Alexandre, o Grande, foi o primeiro a adotá-lo, e depois viriam os romanos, as igrejas, os reis medievais, e hoje em dia o que a gente vê na ficção. (Contraste, por exemplo, com o costume de outros povos, como o chinês e o japonês, onde a tradição era diferente e as pessoas jamais sequer viam o imperador).
Ciro fundou Pasárgada, a primeira capital. Seu filho, Cambyses, reinou brevemente e a transferiu para Susa, até que Dario o sucedeu, fundou Persépolis, e expandiu o império até o seu apogeu.






Outro mural recorrente aqui em Persépolis, e na simbologia persa de maneira geral, é o leão mordendo o touro. O touro era símbolo de força, fertilidade, e da lua (daí muitas das deidades antigas dessa parte do mundo terem sido deusas da fertilidade ou divindades com cara de touro, e de os romanos depois consumirem testículo de touro para ter virilidade).
Já o leão é o sol, que irradia na primavera e cuja constelação (que já havia sido reconhecida pelos mesopotâmios antes dos persas) aparece brilhante no céu do hemisfério norte durante sua primavera, março a junho. Não é à toa, portanto, que os iranianos até hoje celebram o ano novo (aqui chamado de Nowruz) no dia 21 de março, início da primavera — e gostam de perguntar aos ocidentais “Por que é que vocês celebram no dia 1 de janeiro? Não acontece absolutamente nada pra se dizer que o ano é novo em 1 de janeiro“. E eu acho que eles têm certa razão.

O sol, na astrologia, continua sendo o astro símbolo do signo de leão. E, como biólogo e conservacionista, não devo deixar de indicar que o leão era comum na Ásia. Hoje ele quase que só existe na África, e a população de leões asiáticos — que é uma subespécie (Panthera leo persica) — é restrita a pouco mais de 500 sobreviventes protegidos no oeste da Índia. Uma pena que a expansão desgovernada do homem tenha feito do leão, da Europa à China, algo mais comum da iconografia do que da realidade.
Outra parte de Persépolis tem tumbas de reis persas posteriores (embora ainda da mesma dinastia aquemênida), como Artaxerxes II. Não dá pra entrar, mas você se imagina facinho em algum filme ou jogo estilo Indiana Jones ou Tomb Raider.

Saindo dali fomos a uma necrópole maior, chamada Naqsh-e rustam, onde foram enterrados Dario, seu filho Xerxes (cujo nome significa “governante sobre heróis”), e seu filho Artaxerxes, cujos reinados foram consecutivos. Estes, a esta altura, se intitulavam também faraós do Egito, que havia sido conquistado. O império persa no seu apogeu ia da Líbia às Índias, e compreendia — dizem os historiadores — aproximadamente 50 milhões de pessoas, ou 44% da estimada população mundial à época, a maior percentagem jamais alcançada por qualquer governo em toda a história da humanidade.


Shapur II, que viria depois, é até hoje o único rei na História conhecida a ter sido coroado in utero, com a cerimônia quando ele estava ainda na barriga da mãe.
Achei muito interessante ver monumentos a esse triunfos não-ocidentais dos quais pouco temos conhecimento.
Ainda ali, antes de seguirmos para almoçar, o guia nos disse que tomaríamos sorvete. Um sorvete típico da região de Shiraz, feito de leite. O mesmo que eu havia tomado no dia anterior, e que tem sabor de puro açúcar. Passe longe desse negócio.

O almoço foi na casa de um músico, um homem persa bem apessoado, que parecia o povo da História antiga, e que claramente tinha acordo com a agência de turismo para nos receber. Sentamos todos no chão, sobre o tapete, num cômodo simples da sua casa de adobe (para a turma mais nova que acha que adobe é só o programa, adobe é há muito mais tempo o nome dado ao antecedente do tijolo, material de construção feito com barro seco e palha).

A nossa refeição incluía sopa de frango, pão chato, salada de folhas, arroz, um purê de berinjela com mostarda, iogurte (que aqui no Oriente Médio é quase sempre consumido salgado, com a comida), batatas amassadas com legumes crus, e algumas verduras cozidas.
O vegetariano aqui teve que ficar nas folhas com o arroz, verdura e purê. O purê estava bom, embora minhas opções fossem muito limitadas. Falei que era vegetariano e eles ficaram sem entender. Mas o que mais me chamou a atenção foi um dos pratos de arroz, que continha o arroz queimado do fundo da panela, que eles puseram em pedaços crocantes que as pessoas saboreavam com a mão. Doido.


O nosso anfitrião depois se pôr a cantar e a tocar viola. Minto, não é uma viola, mas um instrumento de cordas da região cujo nome eu esqueci. O som é um pouco diferente, e o canto lembrava aquele pluritonal árabe. Pra quem não sabe, os muçulmanos inventaram a maioria dos primeiros instrumentos de corda e foram os que introduziram os violões na Europa, sobretudo em Portugal e Espanha, e de onde depois viria a forte tradição musical violeira da América Latina.



No carro, o senhor iraniano que nos acompanhou resolveu elogiar o meu inglês. “Você fala muito bem. É diferente de muitos outros, como os franceses, por exemplo, que falam um inglês horrível“. O mais engraçado foi que as meninas francesas estavam bem atrás de nós quando ele disse isso. Ele ainda não sabia que elas eram francesas. Cinco minutos depois ele iria conversar com elas e descobrir, e se dar conta da gafe.
E enfim chegamos a Pasárgada, a capital mais antiga, da qual resta pouquíssimo. Em verdade, há basicamente a tumba de Ciro, o Grande, e algumas fundações.
Vim-me embora para Pasárgada, literalmente, pois cá eu sou amigo do rei. Dizia assim Manuel Bandeira, pra quem não sabe a origem da expressão (eu mesmo não sabia). O poema aparece num livro seu chamado Libertinagem, de 1930, em que ele se refere a Pasárgada como essa cidade utópica onde a vida é (ou era) feliz.
“Caminhante, eu sou Ciro, quem deu aos persas um império, e fui rei da Ásia. Não repare, portanto, este pouco de terra que cobre o meu corpo.”
Essa acima, dizem, era a inscrição que ficava em sua tumba, e que Alexandre, o Grande, encontrou quando a abriu, em cerca de 330 a.C.. (Ciro viveu dois séculos antes, e era admirado por Alexandre). A inscrição não existe mais, nem os ouros que daqui foram levados, e Alexandre é basicamente a única fonte de que esta é mesmo a tumba de Ciro.





O “Cilindro de Ciro“, um rolo de argila com inscrições em persa antigo, é tido por muitos como a mais antiga carta de governo ou de direitos. As inscrições datam de quando Ciro conquistou a Babilônia, em 539 a.C., e anunciou receber bênçãos do deus babilônio Marduk e libertar os escravos e governar para todos os povos.
Seu feito está registrado no Livro de Esdras, dos judeus, que eram um dos povos subjugados na Babilônia. O cilindro foi achado nas ruínas da Babilônia, no atual Iraque, em 1879 pelos ingleses e eles nunca deram ao Irã. Permanece no Museu Britânico. Foi, segundo dizem, o primeiro exemplo de uma declaração de estado plurinacional, para muitos povos e de várias fés. A questão parece nunca deixar de ser atual. Quem sabe tenhamos muito mais dos antigos persas do que imaginamos; muito mais, imaterialmente, do que essa coluna quebrada aí acima.
Excepcional sua contextualização histórica.
Na Biblia, no livro de Daniel que foi um judeu cativo na Babilônia, existe uma profecia da estátua de Nabucodonosor que se refere aos grandes impérios que se sucederiam na terra. A Babilônia era a cabeça de ouro, a Medo Persia o peito de prata, a Grécia o quadril de bronze e Roma as pernas de ferro. Os metais vão ficando menos preciosos pq a glória dos impérios vão decaindo. Apesar de nós ocidentais só conhecermos bem as conquistas romanas devemos muito a essas primeiras civilizações. E o seu relato sobre a primeira carta de Estado pertecer aos persas e sobre a extensão populacional desse império me fizeram lembrar da exatidão da profecia. Abraços.