Café, um dos elementos mais populares e adorados na gastronomia mundial. E cada vez mais.
O café é nativo da Etiópia, no nordeste africano (no chamado “Chifre da África”). Diz a lenda que um pastor etíope notou suas cabras animarem-se quando comiam do fruto de um certo arbusto, e certo dia resolveu experimentar. Os árabes, que faziam comércio nessa região, depois abraçaram a ideia e difundiram a bebida pelo Oriente Médio. O registro escrito mais antigo sobre o café data do século XV, no Iêmen, sul da Península Arábica, onde ele era consumido num mosteiro islâmico sufi (ver aqui se você não faz ideia do que se trata).
No século XVI, o café começou a chegar à Europa pelos portos de Veneza e trazido nas conquistas turcas dos Bálcãs (o sudeste europeu). Em 1600, opositores o levaram ao Papa Clemente VIII para banir essa “bebida muçulmana”. O papa, em vez disso, aderiu ao café, e disse que a bebida era cristã também.
Daí foi uma expansão global que prossegue até hoje. Atrevo-me a dizer que, mundialmente, o café é a bebida no. 1 depois da água. Em volume, chá e cerveja são mais consumidos, mas volume não é indicador de preferência, e nem faz sentido comparar café e cerveja por quantidade. Além disso, a cerveja é quase restrita ao Ocidente, e o chá tem comparativamente poucos entusiastas fora do Oriente. Já o café, do México ao Japão, passando pela Europa com suas charmosas cafeterias italianas e francesas, e por todo o mundo islâmico onde as bebidas alcóolicas são impopulares ou proibidas, tem centenas de milhões de adeptos e uma cultura crescente.
Mas como é realmente o café mundo afora? Como de costume, não espere de mim um artigo típico de revista, que só exalta coisas positivas. Faço questão de dizer também o que não gostei e de passar a minha opinião sincera. Você vai se surpreender com algumas bizarrices, e se encantar com outras particularidades interessantes. Comentarei os que, na minha opinião, são o mais famoso, o melhor, o pior, o mais caro, o mais estranho, o mais tradicional, e o mais sofisticado que já tomei.

O café mais famoso?
O mais famoso no mundo é sem dúvida o café italiano, ainda que na Itália provavelmente não haja um único pé de café. Tornou-se uma das assinaturas culturais do país. E é bom; a fama não é em vão. Afinal, ainda que não produza grãos de café, a Itália tem sido a principal maestra mundial em ditar como consumir o café: espresso, cappuccino, café latte, café machiatto, etc. É a principal origem da onda gourmet também (no que diz respeito ao café), que chega até mesmo a países onde a bebida tem tradição popular, como o Brasil.
Porém, contudo, no entanto, todavia, prepare-se pois o café na Itália frequentemente é desgraçadamente pequeno. Não espere o mesmo tamanho dos espressos do Brasil. Às vezes, de tão pequeno, quando você o leva à boca ele já está frio só do contato com a xícara. Isso já me ocorreu várias vezes na Itália. E não foram poucas as vezes em que tive que pedir um segundo espresso, pois o primeiro mal coube no buraco do dente. Está certo que qualidade é mais importante, mas uma quantidade mínima é necessária, senão é um engodo. (Mais comentários sobre a gastronomia italiana aqui).

Por isso que, pra mim, o melhor café da Europa é o de Portugal, que em nada fica devendo em qualidade, e não há mesquinharia. De quebra, ainda é barato. (Com um pastel de Belém então, fica uma maravilha.) De modo geral, por todo o sul da Europa você encontra um bom café.
Eu acho legal quando fazem adaptações nacionais, senão vira colonialismo cultural. (E a gente do Brasil então que tem um complexo histórico de vira-lata…). Abaixo um mostruário da Espanha, com os principais tipos italianos — que estão largamente difundidos por toda a Europa — e e mais alguns criativos.

Outras partes da Europa.
O norte da Europa prima mais pela quantidade do que pela robustez do café. As porções normalmente são grandes, de até meio litro naqueles copos plásticos estilo Starbucks. Quem já visitou, sabe. Inclusive, quando o café está forte, há quem adicione água para diluir. Já cansei de ver isso entre alemães e holandeses em Amsterdã, onde morei sete anos.
Muitas vezes o café no norte da Europa é um “chafé”, daqueles que dá até para enxergar o fundo da xícara. Porém, digo que na Suécia e nos demais países nórdicos o café tende a ser mais encorpado, e é comum inclusive que seja free refill, ou seja, você paga uma vez pela xícara e a recarrega quantas vezes quiser. Viva!
A Europa do Leste, curiosamente, tem uma visão meio negativa sobre o café. Você encontra aquela versão rala e, em alguns lugares, as versões gourmet italianas cada vez mais populares. Porém, nesses países o café ainda sofre um estigma e é normalmente visto como um vício, tipo o fumo. (Por que? Porque de fato a cafeína vicia). Grosso modo, beber café na Hungria ou na Romênia é tipo como nós, no Brasil, vemos o hábito de fumar. Curioso, não?
O café mais tradicional?
Vá chegando mais para o sudeste da Europa, até a Grécia ou a Turquia, e a visão novamente se transforma. Na Grécia, por toda parte você vê o café gelado estilo frappé, batido frio naqueles copos de milkshake do Bob’s (plásticos transparentes com tampa redonda e canudo por dentro). E há a versão tradicional, que a Grécia compartilha com a sua vizinha Turquia e outros países da região. É o café tradicional de toda a região que era Império Turco Otomano, de antes de o café se difundir pelo Ocidente.
Esse café turco — ou grego, ou bósnio, era tudo parte do império turco mas hoje cada um puxa o estilo do café pra si — é o mais tradicional que já tomei. Primeiro, o pó tem um sabor distinto porque o método de tostagem é diferente. Segundo, ele não é filtrado. Vem o pó na sua xícara, assentado no fundo, e você deixa o último dedo sem tomar. Por isso é preciso dizer de antemão o quanto de açúcar vai querer, pois se adicionar depois e mexer, mexe pó com tudo e aí precisa esperar ele assentar de novo.


É daí que surge a antiga tradição árabe e turca de ler o futuro na borra do café (cafeomancia). Você põe o pires sobre a xícara, vira de cabeça pra baixo, e deixa um tempo. A maior parte da borra cairá sobre o pires, mas parte fica aderida nas bordas da xícara, e é lá que você “lê” a sorte da pessoa com base nas formas que ficarem. Vai girando e vendo os sinais.

Já no mundo árabe, há uma mistura de tradição e influências das potências ocidentais. Não se costuma usar esse café com o pó dentro; ele é semelhante ao do Brasil, e melhor nos países que foram colônia francesa (ex. Tunísia, Marrocos). Nas ex-colônias britânicas (ex. Egito) os ingleses tentaram disseminar (por interesse comercial) a cultura do chá, e portanto o café é bem vagabundo. É o que ocorre também no Irã, onde o imperialismo britânico praticamente desmanchou a cultura de café da Pérsia dos séculos XVII e XVIII, e hoje você só encontra aqueles sachês horrorosos de mistura de café solúvel com leite em pó e açúcar.
O mais curioso é que, como os muçulmanos em geral não bebem álcool, os bares são repletos de homens a beber café, servido aqui naquele copinho de cachaça.
Em algumas partes, como no Marrocos, você também vê muito o café com especiarias — chicórea, cardamomo, canela e outros. A ideia é melhor do que o resultado, pra o meu gosto. Fica um café com um sabor meio “engraçado”, com um azedinho puxado aqui, outro ali. Mas há quem goste.

O pior café do mundo?
O que eu não consigo engolir (figurativa e literalmente) são os cafés com essências artificiais da América do Norte. Pra mim, o café na América anglófona é disparado o pior no mundo. Digo anglófona para ser específico, pois o México tem outra tradição e o Canadá francês (em particular a Província de Québec) tem uma cultura e gastronomia muito diferentes das dos vizinhos, e muito mais próximas às francesas.
“Convivi diariamente com bizarrices do tipo café com sabor artificial de nozes, café com aroma e sabor de caramelo, e o meu favorito: a quimera ‘café com sabor de framboesa ao chocolate’.”
Eu morei dois anos perto de Toronto, no Canadá anglófono, e convivi diariamente com bizarrices do tipo café com sabor artificial de nozes, café com aroma e sabor de caramelo, e o meu favorito: a quimera café com sabor de framboesa ao chocolate. Eu não resisti; comprei e tomei por puro espírito etnográfico. O negócio é tão ruim quanto você imagina, com aquele gosto de framboesa de pasta de dente. Uma descabida ofensa à framboesa, ao chocolate, e ao café.
É o mais estranho? No gosto, sim. Na apresentação, não.
O café japonês.
Foi no Japão que eu tomei o café mais peculiar de todos, em latinha que sai aquecida da máquina de venda automática. Dá aquele toque do alumínio na boca, e a sensação de você ser um astronauta ou já estar num futuro de ficção científica meio distópico onde a comida é toda industrial — como nas obras futuristas cyberpunk que os japoneses tanto gostam de produzir. Não é sem base; o dia-dia deles parece já estar a meio caminho de lá.

Já outras vezes você encontra no Japão café que não é de lata, mas cuidado, pois foi aí que eu paguei pelo café mais caro de toda a minha vida até o momento: R$ 25 a xícara, no sofisticado distrito de Ginza, em Tóquio. Mas o café em si de sofisticado não tinha nada. O que tomei feito por mim mesmo hoje aqui em casa de manhã foi melhor. (Moral da história: no Japão, evite café. Opte pelo chá verde, que eles lá fazem muito bem.)
O curioso foi descobrir que, na Coreia do Sul, há toda uma cultura do café à moda europeia, muito diferente do Japão. Eles ainda precisam praticar mais (tomei o espresso mais azedo da minha vida em Seul), mas há futuro.
O café mais sofisticado.
Foi também na Ásia que eu tomei o café gourmet mais sofisticado de todos, o mais caro do mundo, o único e inesquecível café luwak. Inesquecível não pelo sabor, mas pelo modo como é feito. O café luwak é produzido na Indonésia, mais precisamente na ilha de Sumatra, onde vive um bichinho chamado luwak (um pequeno mamífero primo do suricate). O bichinho come os grãos de café e os defeca quase intactos, agregando a eles no caminho pelo seu trato digestivo um sabor todo especial. Os grãos daí então são coletados e limpos manualmente (dizem).
“O bichinho come os grãos de café e os defeca quase intactos, agregando a eles no caminho pelo seu trato digestivo um sabor todo especial.”
Paguei mais do que ouso admitir nesse pacote de café luwak aí abaixo. (Se não for caro, é enrolação. Abundam na Indonésia marcas com o nome “luwak” mas sem ser realmente o café luwak. Você distinguirá o verdadeiro pelo preço, absurdamente mais caro, e pelo certificado dourado com número de série que vem dentro.)
Verdade seja dita, eu não notei diferença alguma no sabor. Pareceu-me simplesmente um café bom, cujo preço é mais pelo exotismo do método de produção do que por um sabor realmente superior. Ou me perdoem o paladar pouco apurado. Seja como for, o efeito placebo de você saber que está tomando um café cujos grãos foram coletados na bosta lhe dão, realmente, uma sensação única.

A revelação, pra mim.
O café “revelação”, pra mim, é o da Nova Zelândia. Como ex-colônia inglesa, eu não esperava encontrar nada além da “água de batata” que se vende na Inglaterra ou nos Estados Unidos. No entanto, desde os anos 90 a Nova Zelândia começou a criar uma cultura do café e hoje serve xícaras excelentes.
O seu notório flat white — uma mistura equilibrada de café espresso e leite — hoje está fazendo entradas até mesmo na Europa. Não é aquele mundo de leite dos café latte ou cappuccinos europeus. E quase sempre tem duas doses de espresso, o que torna o café forte, balanceado pelo creme do leite. É viciante, de fato.

Onde ainda falta conferir? Faltam-me ainda alguns países importantes, como a Etiópia, a terra de origem, o Iêmen, de onde primeiro se popularizou, e na América Latina faltam-me a Colômbia e a Costa Rica, também famosas pelo seu café forte. Sugestões outras são bem vindas!
Passei por muitos países de café insosso e inexpressivo, como o Chile, África do Sul, Rússia e outros que ainda utilizam sobretudo o café solúvel (tipo Nescafé), com aquele gosto aguado e azedo. Prefiro os “pingados” de rodoviária brasileira, que pelo menos são autênticos. Mas no geral, a tendência mundial me parece claramente de expansão da “cultura do café”, como chamam aqui na Europa. Espero que o Brasil não fique pra trás, pois o que não nos falta é criatividade própria — ou café.