A fama mundial da Bósnia e de Sarajevo como lugares sofridos marcou a imagem que as pessoas fazem daqui, desde a Guerra dos Bálcãs dos anos 1990. Não é uma imagem falsa; há mesmo muito de uma realidade triste que deixou marcas na vida de muitas pessoas, como na infraestrutura que permanece degradada e marcada por buracos de bala na periferia da cidade. Já comentei dessa parte no meu post anterior, com a minha chegada à cidade.
O que as pessoas desconhecem de Sarajevo é o seu outro lado, mais antigo, bem preservado, bonito, e que faz dela uma das mais distintas e curiosas cidades do continente europeu. Na minha opinião, Sarajevo é a capital mais subestimada por quem visita a Europa.
As razões?
- Sarajevo é uma capital predominantemente islâmica, numa Europa que estamos acostumados a (erroneamente) imaginar como exclusivamente cristã. Os quase 500 anos de colonização turca, quando a Bósnia foi governada pelo Império Otomano (de 1450 a 1878!) não são pouca coisa.
- As colinas ao redor da cidade, que um dia abrigaram tanques de guerra, continuam verdes. Dão um ambiente gostoso e fazem um lindo pano de fundo.
- A forte influência turca deixou aqui na Bósnia uma gastronomia diferente, deliciosa.
E não menos importante, você assiste à superação de que o ser humano também é capaz. Conheci indivíduos inesquecíveis nesta minha estadia aqui.

Acomodamo-nos, eu e uma amiga turca, na pousada de Dženan [Djenãn], um figuraça. Parecia algum dançarino do Qual é a música?, do SBT. Jovem, loiro de cabelo liso que caía pela testa e precisava ser sempre charmosamente tirado da frente do olho, e aquele sorriso exageradamente alegre dos dançarinos de televisão. Supus que era gay, até conhecer a sua esposa — uma linda jovem de olhos azuis e a cabeça coberta pelo véu islâmico — e seus 4 filhos pequenos. Uns amores. Moravam todos na pousada, numa seção ao lado.
Estávamos a curta distância de caminhada do centro histórico — o que recomendo que qualquer visitante também faça.
O centro histórico de Sarajevo é chamado Baščaršija. Calma, não se assuste com o tanto de acentos circunflexos invertidos. Lição básica para as línguas eslavas que usam o alfabeto latino: ž tem som de j (como em Juliana), š tem som de sh, e o č tem som de tch. Então Baščaršija soa Básh-TCHÁR-shia, que vem da língua turca e quer dizer algo tipo “Mercado Central”. (Viu como é tudo muito simples? O próprio nome Sarajevo deriva do turco saray, que quer dizer “palácio”. A cidade foi fundada pelos otomanos em 1461).
Esse centro histórico é charmoso e agradável. Bonitinho de um jeito que eu nunca tinha ouvido falar que existisse em Sarajevo.




E a comida aqui na Bósnia merece menção especial. Dženan nos recomendou em particular este restaurante da foto abaixo.

Não, não há nenhum sinal eslavo distinto aí; o nome do restaurante é Sofra mesmo. Preferimos “sofrer” à noite, pois durante o dia come-se tranquilamente e com muitas opções no centro histórico.
Aqui em geral na Bósnia você come bem, ao contrário do que passei na vizinha Croácia, onde ficamos à base de pizza, macarrão e peixe frito por uma semana (aqui). Já aqui na Bósnia até arroz com feijão eu achei! E barato! Além de belos temperos, caldos, doces, e um milhão de comidas de influência turca.
Depois de penar com as culinárias insossas da Croácia e da Áustria, pensei comigo mesmo e quase postei no Facebook: Que pena que os turcos não chegaram mais longe quando invadiram a Europa. Mas evitei, pra não açoitar os meus amigos europeus.



Pra quem desconhecia essa influência turca na Europa, eis o pano de fundo histórico pra você entender. Coisas curiosas e que talvez tenham sido “puladas” nas suas aulas de História na escola.
Por volta de 1400, o clã Otomano tornou-se dominante dentre os turcos na Anatólia, a península onde hoje é a Turquia e que costumava ser Império Bizantino. Aliás, “Império Bizantino” é uma invenção póstuma do historiador germânico Hieronymus Wolf, uma alcunha por ele dada em 1557 ao Império Romano do Oriente. Em 285 DC o Império Romano foi dividido em duas metades administrativas; Roma veio a cair em 476 DC, mas Bizâncio (atual Istambul) no oriente, rebatizada de Nova Roma pelo imperador Constantino em 324 DC e que acabou conhecida como Constantinopla [Constantino + pólis] perdurou até ser conquistada pelos turcos em 1453 (maiores detalhes dessa conquista aqui). Eles se viam — e eram conhecidos pelos outros — como romanos, não como “bizantinos”.
Rumélia, portanto, era o nome dado pelos turcos às posses tomadas desses romanos na Europa. Os turcos otomanos conquistariam esse longevo Império Romano do Oriente por completo. Conquistaram toda a atual Grécia no século XV; invadiram Belgrado, a região da Sérvia e de todos os Bálcãs, onde hoje estão também Romênia e Bulgária; invadiram a Hungria e tomaram Budapeste em 1541; e atacaram os portões de Viena, na Áustria, duas vezes.
Feliz ou infelizmente, os turcos nunca conseguiram tomar Viena. Aqueles se tornaram os limites ocidentais do Império Turco Otomano, mas todo o sudeste da Europa permaneceria sob seu domínio por quase 500 anos, até as revoltas nacionalistas do século XIX. Romênia, Bulgária, Bósnia, Sérvia, e a própria Grécia de hoje são fortemente influenciadas pela cultura turca (na culinária, hábitos, músicas, danças, e até mesmo no seu mix genético), embora não gostem muito de admitir. Afinal, foi quase meio milênio de misturas sob domínio turco.
Com o tempo, o nome Rumélia passou a ser substituído por Bálcãs, que em turco quer dizer “cadeias de montanhas com florestas“, características na região e lindas, que podem ser vistas até hoje, como aqui na Bósnia e na Transilvânia na Romênia. O mapa abaixo pode ajudar a esclarecer a geografia.

Aqui em Sarajevo você ainda encontra muitas casas de arquitetura tradicional dessa época colonial turca. Uma boa de ser visitada é o museu Casa de Svrzo, que pertenceu a uma família rica do século XVIII. (Tentar pronunciar o nome é parte da diversão. Os eslavos adoram consoantes).





Os turcos também deixaram aqui outras coisas bonitas, como muitos doces, e a sua maneira tradicional de preparar o café. Mas cuidado: não vá achando que os Bósnios têm saudades daquela época. Embora valorizem esta sua cultura de forte influência turca, eles hoje a tem como sendo puramente sua.
Chegamos a um restaurante no centro, em busca de um café tradicional desses e que é diferente do ocidental mais comum, e a minha amiga caiu na besteira de perguntar: “Vocês têm café turco?“. (O interessado era até eu, e ela que tomou a queimada, coitada). “Aqui não tem nada turco“, respondeu o garçom sem nem olhar.
Glup. Bom, mas se você pedir por “café bósnio” (que é exatamente a mesma coisa), eles atendem com presteza. Dá uma ideia dos sentimentos étnicos na região. Coisas do nacionalismo.



Para digerir, uma bela caminhada. Mesmo fora do “mercado central”, em áreas de menor aparência turca e cara mais típica de Europa, há ruas e praças agradáveis, onde você vê pessoas hoje vivendo numa bem-vinda paz, ainda que a vida aqui seja simples e muitos continuem pobres.




Anoitecia, e Dženan nos havia recomendado visitar a tradicional casa de chás do seu amigo Džirlo [Djírlo], curiosíssima figura que parecia uma versão mais idosa de Jesus Cristo Super Star.
Era meio atrapalhado, e sua mulher é quem geria realmente a loja. Mas a alma do lugar era ele. Ficava ali de papo com os clientes e contando histórias. De quebra, falava um pouco (ou um muito) de cada idioma. Certamente viveu a guerra, mas conseguiu manter-se alto astral. Claramente um profeta do atual “deboísmo” avant la lettre.


Garanto que toda esta cultura você pouco associava a Sarajevo, e nem imaginava que ela tivesse esses recantos bonitos. Eu fiquei positivamente surpreso e muito contente em descobri-la. Como disse: certamente uma das cidades mais distintas e provavelmente a capital mais subestimada de toda a Europa.
Ainda veríamos mais da Bósnia, partindo daqui pelo interior do país. A seguir.


Uaaaauu que surpresa. Que beleza de recanto. Que ambiente gostoso, que belo Centro Histórico, Que linda natureza, Região charmosa e de, interessante cultura. Comida exótica mas com bela aparência. Adorei o movimento, o belíssimo e colorido mercado com lindas lojinhas e um mundo de compras a fazer. Adoro esses lugarezinhos fofos. Muito bonito o lugar. Com certeza desconhecido..
As palavras quase que quebram a língua para serem pronunciadas haha quase mordi a minha na tentativa haha.
Fiquei surpresa com o tamanho e a importância do Império Turco-Otomano e dos próprios turcos. Que ótima lição de História. Maravilhosa postagem. Viajar é isso ai. Descobrir novos mundos, novas culturas, novos povos. Muito bem, Mairon Polo dos 7 mares e muitos ares. Essas postagens nos fazem transpor as barreiras do tempo espaço e embarcar tambem nas incriveis aventuras desse viajante brasileiro. Parabéns.