O Chile é parte indissociável da alma latino-americana. Em sua poesia, sua História, sua literatura, reflete elementos-chave do continente — seja o romantismo, seja a luta social numa realidade de explorações.
Neste país de dois prêmios Nobel de Literatura (Gabriela Mistral e Pablo Neruda), as letras são coisa séria. Elas sempre tiveram forte influência na sociedade, e talvez exatamente por isso tenham sido tão fortemente reprimidas no regime de Pinochet. Aqui, a História do país é inseparável daquela de seus maiores expoentes, que estão entre os maiores nomes da América Latina e do mundo. Uma visita a Santiago não está completa sem conhecer um pouco mais sobre esse lado do Chile.
Naquele mesmo bairro de Bellavista, onde no post anterior eu mostrei a boemia, também fica uma das muitas casas do poeta chileno Pablo Neruda (1904-1973), ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 1971: La Chascona.
Pablo tinha o curioso hábito de dar nome às suas casas: La Chascona (“a de cabelos embaraçados”, devido à esposa que morava com ele aqui em Bellavista), La Sebastiana (na cidade costeira de Valparaíso, próxima de Santiago), e Isla Negra, na ilha homônima na costa chilena. Esta última era a maior, enquanto que as outras eram pousios menores, que ele próprio construiu ao seu gosto.
”Pablo Neruda” era, na verdade, o pseudônimo de Neftalí Reyes, e que ele depois adotou como o seu nome legal. A inspiração foi um escritor tcheco, Jan Neruda, de quem gostava. (Não sei de onde veio o “Pablo”). Gabriel García Márquez dizia que Pablo Neruda foi o maior poeta do século XX em qualquer idioma.
Era um romântico (“Quero fazer contigo o que a primavera faz com as cerejeiras“, dizia), e como outros românticos antes dele, passou depois a uma fase social, questionadora.
“Quero apenas cinco coisas..
Primeiro é o amor sem fim
A segunda é ver o outono
A terceira é o grave inverno
Em quarto lugar o verão
A quinta coisa são teus olhos
Não quero dormir sem teus olhos.
Não quero ser… sem que me olhes.
Abro mão da primavera para que continues me olhando.“
— Pablo Neruda“É Proibido
É proibido chorar sem aprender,
Levantar-se um dia sem saber o que fazer
Ter medo de suas lembranças.É proibido não rir dos problemas
Não lutar pelo que se quer,
Abandonar tudo por medo,Não transformar sonhos em realidade.
É proibido não demonstrar amor
Fazer com que alguém pague por tuas dúvidas e mau-humor.É proibido deixar os amigos
Não tentar compreender o que viveram juntos
Chamá-los somente quando necessita deles.É proibido não ser você mesmo diante das pessoas,
Fingir que elas não te importam,
Ser gentil só para que se lembrem de você,
Esquecer aqueles que gostam de você.É proibido não fazer as coisas por si mesmo,
Não crer em Deus e fazer seu destino,
Ter medo da vida e de seus compromissos,
Não viver cada dia como se fosse um último suspiro.É proibido sentir saudades de alguém sem se alegrar,
Esquecer seus olhos, seu sorriso, só porque seus caminhos se desencontraram,
Esquecer seu passado e pagá-lo com seu presente.É proibido não tentar compreender as pessoas,
Pensar que as vidas deles valem mais que a sua,
Não saber que cada um tem seu caminho e sua sorte.É proibido não criar sua história,
Deixar de dar graças a Deus por sua vida,
Não ter um momento para quem necessita de você,
Não compreender que o que a vida te dá, também te tira.É proibido não buscar a felicidade,
Não viver sua vida com uma atitude positiva,
Não pensar que podemos ser melhores,
Não sentir que sem você este mundo não seria igual.”
— Pablo Neruda

O Chile já havia recebido antes um outro Prêmio Nobel de Literatura, para Gabriela Mistral (1889-1957), a primeira pessoa a ser laureada com ele na América Latina (em 1945). Este era o pseudônimo de Lucila de Maria del Perpetuo Socorro Godoy Alcayaga, uma professora primária que depois integrou-se ao Ministério da Educação e tornou-se diplomata chilena.
”Onde houver uma árvore para plantar, planta-a tu. Onde houver um erro para emendar, emenda-o tu. Onde houver um esforço de que todos fogem, fá-lo tu. Sê tu aquele que afasta as pedras do caminho.” — Gabriela Mistral

Ao receber o seu Prêmio Nobel em 1945, Gabriela foi congratulada por Harry Truman, então presidente dos Estados Unidos. Quebrando o protocolo, Gabriela o questionou quanto ao apoio norte-americano ao ditador dominicano Rafael Trujillo: “Senhor presidente, não lhe parece uma vergonha que siga governando na República Dominicana um ditador tão cruel e sanguinário quanto Trujillo?“. O presidente norte-americano apenas sorriu. Gabriela prosseguiu: “Eu queria pedir-lhe algo, senhor presidente. Um país tão rico como aquele que você dirige deveria ajudar aos meus indiozinhos na América Latina que são tão pobres, que têm fome, e que não têm escola“. Truman pôs-se novamente a sorrir, sem responder.
Gabriela abraçou fortemente a causa indigenista e dos pobres da zona rural, apontando a exploração das elites governantes e dos países ricos sobre as massas da América Latina.
“[…] la capacidad productiva y exportadora de América Latina enriqueció a sus oligarquías y al capital inglés y después norteamericano asociado con ellos y consolidó y reafirmó el dominio del latifundio sobre el espacio agrícola latinoamericano. […] Pero todo significó al mismo tiempo un crecimiento económico empobrecedor para las mayorías rurales.” — Gabriela Mistral

Gabriela, falecida em 1957, não sabia que dali a algumas décadas o seu próprio país viria a cair vítima de mais uma ditadura sanguinária como aquela de Trujillo.
Pablo Neruda viveu até 1973, ano do golpe militar no Chile. Neruda, por ser de esquerda, teve a sua casa invadida e seus livros, queimados. Ele faleceria naquele ano, apenas dois após receber seu prêmio Nobel de literatura, oficialmente por “complicações de saúde”, mas suspeita-se que na verdade por envenenamento, já que os militares não queriam uma oposição intelectual daquele peso contra o regime que se instalava. Os chilenos foram proibidos de ir às ruas lamentar a morte de Pablo Neruda, mas o fizeram mesmo assim. (Em novembro de 2015, o governo chileno formalmente declarou que é “altamente provável” que Pablo Neruda tenha sido envenenado).
Em 1970 o Chile elegia democraticamente Salvador Allende, político marxista que aprofundou reformas socioeconômicas em benefício da maioria da população. O desemprego caiu a 3,8%. Allende deu seguimento à reforma agrária que já vinha em curso e, finalmente, nacionalizou as enormes reservas de cobre e demais recursos minerais do país. Foi a gota d’água para os capitalistas estrangeiros.
Houve queda no investimento privado, fuga de capitais — ou seja, gente de dinheiro tirando-o do país —, e surgiu uma crescente campanha midiática e de investidores estrangeiros contra o governo. Como em outras partes da América Latina, os Estados Unidos opuseram-se abertamente a essa repentina autonomia que contrariava os seus interesses nacionais. Documentos da CIA revelam que a meta era impedir Allende de governar. Segundo um desses documentos, o Presidente Richard Nixon — que veria-se envolvido mais tarde no caso Watergate — teria dito para “fazer a economia chilena gritar“.
Não demorou para as forças conservadores recorrerem aos militares, como já havia ocorrido no Brasil. Neste caso aqui, entrou em cena o General Augusto Pinochet.

A mídia tratou de retratar Allende como um ditador soviético, e entre agosto e setembro de 1973 os militares tomaram o poder. O palácio presidencial La Moneda foi bombardeado pelas próprias forças armadas do país e com o próprio presidente dentro — algo inacreditável. Após um pronunciamento no rádio dizendo que não abandonaria o palácio, a versão oficial reza que Salvador Allende se suicidou, embora o tema seja controverso.
Seja como for, Pinochet governaria a mãos de ferro de 1973 a 1990, ano da reabertura democrática no Chile. As indústrias extrativas foram “devidamente” desnacionalizadas e voltaram a ser abertas ao capital estrangeiro. Mais de mil chilenos foram executados já no primeiro ano de governo. Mais de dois mil outros “desapareceram”, como ocorrido nas ditaduras do Brasil e da Argentina. Como sempre, os EUA voltaram a demonstrar sobejo apoio ao novo Chile, como faz ainda hoje com regimes repressivos no Egito ou na Arábia Saudita. Pinochet viria a morrer em 2006.
Não deixe por nada neste mundo de visitar o ótimo Museo de la Memoria y Derechos Humanos em Santiago. É a atração n.1 de Santiago no TripAdvisor, e não sem razão. O museu contém arquivos em detalhes dos anos de chumbo chilenos, os pronunciamentos de rádio de Salvador Allende, o contexto da época, e mais dados sobre direitos humanos mundo afora.



Seguimos em busca de democracia de verdade na América Latina. Vindo a Santiago, não deixe de aprender mais sobre essa lição aqui vivida. Os anseios de Mistral, Neruda, Allende e outros milhões seguem vivos.
Magnifica postagem, viajante brasileiro, sobre tão sombrio tempo para os nossos hermanos chilenos e para a Latinoamérica. Por um lado rico em destacar a bela obra de seres maravilhosos como Gabriela Mistral e Pablo Neruda, que engrandecem a nação latina e o mundo; por outro a parte sombria do ataque `democracia chilena, da participação sempre presente nesses momentos tristes dos norte-americanos e seu contumaz habito de julgar seu ‘quintal a Latinoamerica. Muito triste ver os interesses alienígenas destruirem um povo e as suas instituições. Muito bem descrito e situado esse triste episodio. Parabens pela postagem.
Adorei o mural tão significativo de Gabrtiela Mistral e sua ação transformadora na defesa do povo indigena e os deliciosos e verdadeios versos desse grande Neruda. Linnnnndosss. Maravilha ver tudo isso de belo dito assim de forma leve e agradável. Muito bem dito tambem sobre o lado obscuro do capitalismo e seus prepostos que não medem esforços para desestabilizar os governos que não o servem, e financiar o caos. Parabéns.