Aeroporto de Cusco. Eu gosto de pôr fotos atuais para ninguém pensar que os incas não existem mais. Só foram explorados e ficaram pobres, mas continuam aqui no Peru, na Bolívia e no Equador para quem os quiser visitar.
Não sou o maior adepto de entradas em formato de lista (“5 coisas que você…”), pois virou clichê, mas neste caso uma vem a calhar. Há algumas informações valiosas — e curiosas — pra se entender os incas e apreciar mais uma viagem ao Peru, e que eu receio a maioria das pessoas desconhece. (Não me conformo que aprendamos até nome de faraó egípcio e quase nada sobre os povos do nosso próprio continente.)
Pra começar, o número 4 não poderia ser mais inca. Sua cosmologia tradicional vê a Via Láctea como um rio celestial. Onde os greco-romanos viram leite (daí o nome), os incas viram água.
Na latitude do Peru, essa banda de estrelas — que pode ser vista a olho nu longe da poluição luminosa das cidades — cruza o céu de nordeste a sudoeste metade do ano, e de sudeste a noroeste na outra metade. Coincide mais ou menos com as estações de chuva e seca (daí a ideia da Via Láctea como um rio).
Assim, a cidade de Cusco (a capital do império) era portanto o centro do universo. (Ria, mas lembre que os europeus e árabes à época também acreditavam estar no centro do universo, inclusive com viagens cosmológicas de o Vaticano estar diretamente sob uma cidade prateada de anjos, etc.)

A geografia inca, seguindo a mesma divisão espacial, via seu império como constituído de quatro regiões. Chinchaysuyu correspondia aos Andes do norte; Antisuyu à Floresta Amazônica, no leste; Kuntisuyu à costa sul do atual Peru; e Qullasuyu ao sul, estendendo-se até grande parte do que hoje é o Chile.
Tawantinsuyu (“as quatro regiões”) era o nome dado pelos incas — em seu idioma, o quíchua — ao império. Percebam que sua divisão direcional não é a nossa habitual, de Norte/Sul/Leste/Oeste, mas a das direções em que cruzava o rio celestial da Via Láctea no firmamento.
Aproveitando a deixa do 4, deixem-me passar quatro elementos fundamentais — e curiosos — da sociedade inca que provavelmente ninguém nunca lhe revelou.
1) Os incas tinham escrita. A única escrita tridimensional conhecida no mundo.
Um arqueólogo certa vez disse que na Eurásia (Europa + Ásia) nada foi realmente original: tudo era copiado de povos vizinhos e ajustado. Foi assim com a escrita, que em todos os povos daquele continente toma a forma de riscos n’alguma superfície.
Na América, não. Aqui, isolados do restante do mundo, os antepassados dos incas desenvolveram uma escrita deveras original: em três dimensões. Usando algodão cultivado aqui há milênios, as sociedades tradicionais andinas faziam seus registros “escritos” — desde dados numéricos até literatura — em cordas, fazendo nós. Eu explico.
“Usando algodão cultivado aqui há milênios, as sociedades tradicionais andinas faziam seus registros “escritos” — desde dados numéricos até literatura — em cordas, fazendo nós.”
Quipo (ou khipu) é o nome dados a essas elaborações abaixo. Isso não é um mero enfeite, mas o que se poderia chamar de um “texto”. Em vez de letras, as “variáveis” são nós, a depender do jeito, da posição, e da sequência. Além disso, dizem que o tipo de tecido (se podia utilizar pêlo de lhama além de algodão) e que as cores também influenciavam no significado.
Como ter certeza de que isso não é uma “viagem”, fruto da imaginação? Simples, as elaborações matemáticas estão certas. As contas fecham. Ou seja, a lógica interna é consistente.
Como você pode imaginar, não era todo mundo que sabia ler. Tal qual em outras sociedades da época no mundo afora, havia “sábios” especializados em fazer e ler tais registros.
A leitura se dava como um braile, a linguagem escrita pra cegos, através do tato e não da visão. Infelizmente os conquistadores espanhóis julgaram que isso eram terços do capeta e queimaram a grande maioria dos quipos. Felizmente alguns sobreviveram, mas ainda estão longe de serem suficientemente decodificados.
2) Os incas, na verdade, não se chamavam incas, e aqui as pessoas mudavam de nome ao longo de suas vidas.
Usamos um bocado de nomes errôneos para nos referirmos às sociedades indígenas do passado. Já comentei antes como os mexicanos pré-hispânicos só vieram a ser chamados de “Astecas” recentemente, no século XIX, uma designação um tanto problemática (de onde você acha que o México tirou o nome do país? Ver aqui). No caso dos incas, “Inka” significa algo como “senhor”, e portanto era a alcunha dos governantes.
Os povos em si a gente pode dividir pelos idiomas que falavam (e falam até hoje). O principal é o Quíchua, embora haja sub-grupos muito diversos e também dialetos que não se compreendem mutuamente. (Eu, certa vez no Equador, escutei uma mulher falar em quíchua equatoriano no telefone, e me lembrou chinês, só que mais estranho.)
Já no norte do que é hoje a Bolívia, na região de Tiwanaku e do Lago Titicaca, há os grupos Aymara, conquistados pelo império inca lá pelos idos de 1480, ainda antes de os espanhóis chegarem. (Pra evitar confusão, vou continuar me usando a alcunha convencional de “inca” pra me referir a tanto governantes quando súditos.)
O mais curioso, no entanto, é que as pessoas tinham o hábito peculiar de trocar de nome ao longo da vida. Pense em numerologia e naquelas tradições esotéricas que dizem que o seu nome tem influência sobre a sua vida e sobre a sua sorte.
Numa época em que não havia registro civil individual, é como se você atendesse por um certo apelido por uns anos e depois passasse a ser conhecido por outro. Isso se aplicava, inclusive — ou, talvez, sobretudo — aos dirigentes, os Incas propriamente ditos, que estavam sempre preocupados com sua sorte.
Te davam um nome quando criança, outro após um ritual de entrada na idade adulta, e podia ainda continuar a trocar depois.
3) O Império Inca foi o maior da América pré-colonial, mas não usava dinheiro, nem tinha mercados para troca de produtos. Praticavam o que alguns especialistas chamaram de “socialismo vertical”, e erradicaram a fome.
O Império Inca parece ter sido um dos poucos — senão o único — governos da História conhecida a terem erradicado a fome em sua população antes dos tempos modernos. Mas eles faziam isso de um modo um tanto peculiar.
Não havia dinheiro. (Até aí tudo bem, nas Américas só alguns povos no atual México usavam “moeda”, e na própria Europa muito da economia se dava à base de trocas.) Mas tampouco havia mercados ou feiras livres onde trocar produtos. Mercados livres sempre foram dos espaços de socialização mais importantes mundo afora desde da Antiguidade, seja na África, seja na China — e, na própria América, os “astecas” tinham mercados enormes, segundo os primeiros cronistas espanhóis (ver Cidade do México, vulgo Tenochtitlán). Os incas, não.
Como raios podiam os incas terem (e manterem) o maior império das Américas sem espaços para troca de produtos? E ainda terem conseguido erradicar a fome? O que os incas tinham era uma tradição de reciprocidade fortíssima e uma imensa burocracia. Se esta era ineficiente, não era por falta de produtos, mas talvez pelo excesso.
Basicamente, todo mundo estava sempre fazendo alguma coisa. A produção era grande. Digamos que havia uma economia solidária avant la lettre. Ayni e Minka eram nomes dados ao trabalho prestado com base na reciprocidade em família e em comunidade. “Hoy por ti, mañana por mi“, dizem ainda hoje.
O governo imperial, por sua vez, organizava as trocas de maior escala, certificando-se de que os mais variados produtos — das mais variadas eco-zonas, numa região de ecossistemas que vão da beira do mar a 6 mil metros de altitude — circulassem pelo império.
Os impostos eram, portanto, em produtos e em trabalho (a mita). Este não se restringia a trabalhos braçais na construção de pontes, estradas etc., mas também abarcava os músicos, dançarinos e outros, que eram obrigados a prestar seus serviços publicamente.
Um antropólogo cunhou o termo “arquipélago vertical” para descrever essa economia dos incas onde “ilhas” de ambientes diferentes — separadas não por mar, mas por alturas — enviavam o excedente de seus produtos característicos umas às outras.
Há quem use o termo “socialismo”, mas fora do seu contexto histórico. Saibamos que os incas usavam uma hierarquia social com nobreza, corte, até o inca propriamente dito, o imperador. Era, portanto, um misto curioso de reciprocidade e igualdade dentro da comunidade, combinadas a uma estrutura de governo tão vertical quanto os Andes.

4) Se era um socialismo, era um socialismo meio espírita…
Eu ia encerrar contando que o Inca (o imperador) não podia pôr os pés no chão em público. Nem mesmo a sua saliva podia tocar o chão, então havia alguém ali que oferecia a mão com um pano pra o Inca cuspir, se quisesse. Outros não podiam tocar aquilo que ele tocava — o que quer que ele tocasse em público ficava retido, até uma cerimônia anual em que tudo aquilo (o que ele não quisesse mais, obviamente) era queimado.
Mas mesmo isso aí empalidece diante do que eu aprendi depois.
Na sociedade incaica, os mortos continuavam a ter espaço. Na nobreza ninguém herdava nada. Os mortos continuavam com suas posses. Um grupo de acólitas tomava conta de suas coisas, e uma médium se encarregava de manter o falecido em comunicação com o mundo dos encarnados.
Havia até mesmo reuniões incluindo gente morta — num misto de política com sessão espírita, como se hoje houvesse um médium arranjando a participação de Ulysses Guimarães ainda na Câmara dos Deputados, e outro assegurando a presença de Machado de Assis nas reuniões da Academia Brasileira de Letras.
Os leitores espíritas talvez achem a ideia fascinante.
“É como se hoje houvesse um médium arranjando a participação de Ulysses Guimarães ainda na Câmara dos Deputados, e outro assegurando a presença de Machado de Assis nas reuniões da Academia Brasileira de Letras.”
Acrescente a isso uma crença na existência de canais de energia no ambiente. Segundo os incas, há zeq’e ou linhas energéticas de características diferentes espalhadas, e confluências que são pontos de energia, os wak’a. E eles não são todos iguais — cada um tem suas propriedades e utilidades.
No mundo material, pode ser uma simples rocha, ou uma cachoeira, uma gruta, etc. Cada qual tinha também sua história e mitos de origem, naturalmente. Para “tomar pé” disso tudo, o padre e cronista espanhol Barnabé Cobo (1582-1657) nos conta que “havia mais de mil homens na cidade de Cusco que não faziam nada além de lembrar essas coisas“.
Adorei a matéria. Depois vou ler sobre os astecas.
Sua descrição me define tb. Viajar é um enriquecimento. A gente pode ver na tv e ler e ouvir relatos, mas nunca é a mesma coisa. E viajar só pode ser libertador
Nossa!… fascinante. Para mim que gosto do esoterismo do misticismo e do espiritismo foi a postagem um prato cheio. Claro que tudo isso era verdadeiro e que os que partiram estavam ali e se comunicavam com os da terra. Legalll. Para mim uma surpreendente e interessante visão desse povo tão desconhecido e original. Alan Kardeck deveria ter analisado esse povo antes de codificar as manifestações espiritas haha , mas como ”bom” franco-europeu cheio de nariz em pé [ perdoem-me os que não o são], achou que ‘descobriu a polvora’ haha
Impressionante a interpretação da Via lactea como um rio e a forma de ligar o ceu com a terra e a geografia.
Muito boa a critica aos estudos europeizados e ao esquecimento do que se passou e se passa na grande pátria latinoamericana e ate mesmo no continente americano. Precisamos despertar para essa grande verdade: somos latinoamericanos, com identidades e culturas proprias e com muitas cousas a nos ligar e unir.
Muito interessante mesmo. Eita viajante que sabe de cousas sôôôrrrr haha…. só escrevendo um livro hahah Valeu. Muito boa a postagem e muito instrutiva. Dá-lhe meu jovem. Que venham mais informações…É isso ai.