PRÓLOGO
A Tunísia, ex-colônia francesa no norte da África, foi a pioneira da Primavera Árabe. Em 16 de dezembro de 2010, o vendedor de rua Mohamed Bouazizi ateou fogo ao próprio corpo num protesto de último recurso contra as injustiças que sentia no país. Democracia falha, repressão governamental, abusos de autoridade, combinados a desemprego, altos preços de alimentos e más condições de vida. Mohamed era da minha idade, e faleceu em poucas semanas. Foi o estopim para explodirem as frustrações de um povo.
O ditador Zine El Abidine Ben Ali governava desde 1987 sob a rótulo de “presidente”, eternamente reeleito em eleições fraudulentas num sistema político sem liberdades. Os tunisianos não aguentavam mais; após o ato do vendedor de rua, sindicatos organizaram greves gerais; estudantes, trabalhadores e desempregados ocuparam as ruas da capital Túnis e outras cidades contra esse sistema que não os representava e os abandonava; e tudo o que Ben Ali conseguiu produzir foi um “pedido de calma” na televisão.
Ben Ali, numa jogada de marketing político que saiu pela culatra, se fez fotografar — mui bem vestido — ao lado do vendedor de rua Mohamed Bouazizi todo queimado no hospital, antes de este falecer. Os tunisianos viram naquilo um emblema da sua situação: um ditador que ia muito bem, obrigado, ao lado de uma população queimada, flagelada.
Foram 28 dias de paralisações e protestos. Embora a mídia ocidental tenha focado apenas o papel das redes sociais (puxando a brasa para a sua sardinha), sindicatos e associações profissionais e estudantis foram essenciais para dar “poder de fogo” à resistência civil. Repressão policial e toques de recolher não os detiveram. Em 14 de janeiro de 2011, Ben Ali fugiu do país com a família. Exilou-se na Arábia Saudita, esse eterno refúgio de ditadores, onde está até hoje. (Ele teria cogitado a França, que nunca se preocupou o suficiente com democracia nas suas ex-colônias contanto que continuasse a fazer comércio, mas o então presidente francês Nicolas Sarkozy percebeu que “pegaria mal”, e recusou abrigo.)
A revolução levou a uma convulsão na Tunísia e por todo o mundo árabe — o que viemos a apelidar de Primavera Árabe. Egito, Líbia, Síria e Yemen iniciaram revoluções similares para dar fim aos reinados de seus presidentes eternos, e que já preparavam filhos ou genros para a sucessão. Nos dois primeiros, Hosni Mubarak (Egito) e Muammar Qadaffi (Líbia) foram depostos. Nos dois outros, guerras civis eclodiram, interesses estrangeiros misturaram-se aos internos, e elas seguem até hoje gerando a pior crise de refugiados desde a Segunda Guerra Mundial.
A Tunísia fez em 2014 uma nova Constituição, garantidora de novas liberdades civis e políticas, mas nem por isso sua convulsão social desapareceu. Movimentos dos mais diversos emergiram para tentar obter o poder, de grupos liberais a organizações terroristas fundamentalistas. Em 18 de março de 2015, 22 turistas foram assassinados no Museu Bardo, o mais importante da capital Túnis, por terroristas querendo desestabilizar o país. Em 26 de junho de 2015, 78 pessoas foram metralhadas num resort de luxo próximo a Sousse, cidade costeira mais a sul. E em 24 de novembro de 2015, um homem-bomba do Estado Islâmico tentou explodir o novo presidente (sem sucesso), levando consigo 13 vítimas. A Tunísia segue tentando se encontrar.
Foi pra lá que eu fui.

Já no aeroporto de Barcelona começou o bafafá. A companhia aérea havia liberado o embarque, mas não o acesso ao avião. As pessoas começaram a se acumular bem no fim de uma escada rolante que descia, esperando uma porta abrir. Bem no fim da escada rolante parou um senhor tunisiano já idoso e meio alheio, criando um congestionamento. É então que, do alto da escada, um coroa francês gordo e de camisão branco, com ar cínico de empresário ou político, soltou um “Que imbecil” pra todo mundo ouvir. Não prestou.
Ao meu lado, uma moça tunisiana daquele ar confiante de quem não leva desaforo pra casa levanta a voz para o coroa francês. “Quem é que o senhor está chamando de imbecil? É o senhor mesmo, aí da camisa branca”. O francês, mais adiante no bolo, dava de costas e fingia que não estava ouvindo. “Fala as coisas mas agora perdeu a voz.”, prosseguiu a moça. “Vai pra lá pra não ter que pagar imposto e ainda insulta os tunisianos.”
Eu estava logo atrás dessa moça. Um rapaz tunisiano ao seu lado também se identificou com a queixa, embora não tivesse levantado a voz. “Você ouviu o que ele disse?”, comentou ela com o rapaz. “Ele nem chegou ainda no país e já começou a nos insultar.”.
Retive-me ali no bolo com um sorriso de canto de boca, me apercebendo da tensão reinante ainda presente entre estes países. Ah, Europa, sobretudo a pedante França, ainda tem muito a colher do que plantou.
Voamos.

O aeroporto de Túnis tinha aquele cheiro de cimento, do tipo de lugar “estamos em obras”, misturado com cigarro. A mudança de Europa para mundo árabe era evidente e gritante apesar da distância tão curta de Mar Mediterrâneo que os separam.
Foi talvez a imigração mais rápida que eu já fiz na vida. O policial árabe recebeu meu passaporte, não disse uma palavra, e em menos de um minuto o devolveu com o carimbo de entrada. Nenhuma pergunta, e não respondeu nem ao meu bonjour (como no Marrocos, só que pra lá vão muitos turistas e por isso a fila pode ser bastante longa.) Aqui na Tunísia poucos turistas aventuram-se hoje em dia.
O visual melhorou significativamente depois da alfândega. Uma decoração árabe glamourosa enfeitava o hall principal do aeroporto, como se estivéssemos num palácio. (Não era nada representativo do que eu veria na Tunísia nos próximos dias.)

A ida do aeroporto para a cidade em países em desenvolvimento é a parte que eu mais detesto. Ao contrário do que ocorre em lugares desenvolvidos, geralmente não há transporte coletivo bom, e você fica nas mãos de táxis caros e/ou enrolões — como no Brasil.
Aqui em Túnis não pague mais que 4 ou 5 dinares tunisianos (uns 7 reais) pela corrida até o centro. É perto e barato, mas eles tentam cobrar o dobro ou o triplo aos turistas. Fui para o andar do embarque, pegar algum taxista que estivesse despejando passageiro, em vez dos treteiros que já ficam ali na botija no andar de chegadas abordando turistas. Eu, apesar da minha cara de árabe, tinha uma mochila enorme nas costas que não negava o que eu era.
Básico nestes países, gente: nunca entre num táxi sem antes negociar o preço. Após um que insistiu em querer me levar no taxímetro (certamente para me fazer um city tour não requisitado pelo caminho mais longo) “pois era a lei” (sim, eu sei o quanto que a lei é respeitada aqui…), eu achei um taxista que topou me levar por 5 dinares. Ele fez um “sim” breve com a cabeça sem dizer nada, aquele olhar suspeito e desconfiado de sequestrador que acabou de concordar em entregar o refém antes de receber a mala de dinheiro. Um pagodão árabe tocava solto no som do carro enquanto trafegávamos as avenidas da nublada e feia Túnis neste final de inverno. Embora sempre imaginem o mundo árabe torridamente quente, aqui não fazia mais que uns 18 graus.
Eu chegava à principal cidade hoje nestas terras que um dia abrigaram a antiga Cartago, depois foram a província Africa Proconsularis do Império Romano, e desde o século VII é terra dos árabes, que levaram a filosofia clássica e as ciências à Europa medieval através da Espanha e Portugal, mas que aqui viriam a ser subjugados mais tarde pelo Império Turco Otomano e, depois, pela França em 1881 até esta província imperial se tornar independente como o país Tunísia em 1956. A desgraça aqui reina e não é sem razão.


O meu hotel é muito bem localizado, perto do Ministério do Interior, no centro. Cheguei suspeitíssimo com um mochilão nas costas para atravessar a barricada policial que circundava toda a quadra do meu hotel — o táxi pôde me deixar apenas a uma distância dali. A sensação maravilhosa de chamar a atenção das pessoas e dos policiais armados com fuzis que protegiam a área. Senti-me numa zona de guerra. Eles foram corteses, apesar da tensão reinante. Um ar frio e fedido dava o contexto naquele dia nublado no centro da cidade.
No hotel, passei por um detector de metais que agregaram à porta de entrada. Ele inevitavelmente apitou. Dirigi-me ao balcão da recepção, onde um coroa e um rapaz uniformizados me atenderam — aquele clima e “ânimo” de repartição pública em expediente após o almoço.
Ganhei um drinque de cortesia (obviamente não-alcoólico, já que os muçulmanos em tese não devem beber). Era um “suco” verde-claro num cálice. Em meio àqueles homens sisudos e com caras sérias de poucos amigos, imaginei se aquilo fosse um “boa noite Cinderela”. Eu estaria lascado, inteiramente ao Deus dará. Não foi, mas era um tang de limão horrível com gelo, do tipo que eu dispensaria ou largaria depois de uns goles, mas que tive infelizmente que terminar para não fazer uma desfeita logo na chegada.
Os homens árabes são caracteristicamente volúveis, muito passionais, e passavam facilmente duma cara amarrada a uma explosão de alegria quando viam no meu passaporte que eu era brasileiro. Eu curiosamente ganhava um segundo aperto de mão — se o primeiro havia sido mera formalidade, o segundo era genuíno.
“Eu sei uma palavra em português: peitos“, disse-me empolgado o rapaz mais jovem da recepção, com aquela cara malandra de homem adolescente que quer ganhar sua aprovação. Eu sorri.
Feito o check-in, outro funcionário aproximou-se da minha bagagem e eu recusei, pois não gosto de serviçalismo pra coisas que eu mesmo posso fazer. Mas ele queria era inspecionar a mochila pra ver se não havia bomba.
Foi todo desculposo, fez questão de pôr o meu mochilão — que vai em bagageiro de ônibus e veio no porão do avião — em cima de uma cadeira antes de olhar. E a olhada foi aquele quase faz de conta, de ver assim por cima, pegar uma coisa ou outra, e pronto, já deu. (Ainda bem, porque se ele me fizesse revirar todas as cuecas e outras peças de roupa ali na recepção do hotel…).
Terminei o meu “boa noite Cinderela”, peguei a minha bagagem e subi no elevador para o quarto. (Sim, tinha elevador. Eu fiquei num hotel de respeito.)

A partir daqui é que eu nos dias seguintes visitaria esta capital Túnis.
Nossa!… que bafafá!… quanta magoa a colonização europeia trouxe, quantos problemas e questões nao resolvidas!…. ai estao raizes de ódios e divisoes que explodem hoje no mundo inteiro. Sem defender nem justificar os atentados, nao se pode deixar de refletir sobre alguns deles e esses odios históricos..
E que recepção!… que aventura… o viajante parece que gosta de ”viver perigosamente.”.
Cidade com belas praças, avenidas bem arborizadas e a responsabilidade de ter iniciado a Primavera árabe, considerado um feito histórico , ao meu ver seria interessante visita , mas a recepção me faria refletir se fora uma boa ideia ir la.. haha
Que horror ter que passar na barricada e ter que tomar sem reclamar um possivel ”boa noite Cinderela ” arrreemaria!… ainda bem que nao o foi haha.
Nossa é triste ver a pobreza, a desigualdade, que no mundo inteiro, guardadas as diferenças culturais, tem a mesma cara.Parece Casablanca, sem a bela Mesquita.
E uma realidade dificil. Muito corajoso o viajante. Parabéns. Apesar do ‘bota fora’ da saida e da recepção armada, vou querer ver as outras noticias da região. Fiquei curiosa.. Valeu.
Lugares lindos,adoraria conhecer pessoalmente,espero poder ter esse sonho realizado em breve…
ahha não sei como começei a ler isso, mas achei muito bom e não consegui parar hahaha
Descrição rica e interessante!
Parabéns Mairon, por sua visão delicada e bem humorada!
Gostei muito!
Mairon ! Mairon !! Depois de tantos anos desta postagem , eu hoje aqui lendo ! Dia 14/09 / 2022. Estive em Tunis em 2012, visitamos somente o centro , as lojas .
Queria muito visitar as ruínas de Cartago , mas não fomos até lá . Vou visitá-la através de você !! Obrigada por nos proporcionar tantas aventuras ! Um grande abraço !