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Tunísia

O Museu Bardo e os mosaicos romanos mais lindos do mundo, na Tunísia

Você aí nem sabia que os romanos tinham artes visuais além de esculturas, ou que faziam mosaicos. Faziam, e faziam muitos. Mosaicos são aqueles ladrilhos coloridos que formam imagens, e que os romanos usavam como decoração em suas casas nas paredes, no chão e/ou no teto. Quase sempre tinham motivos épicos da mitologia greco-romana. 

O maior legado de mosaicos dessa Antiguidade romana está hoje na Tunísia, aqui no norte da África. A gente tende erroneamente a associar os reinos e impérios de outrora com as fronteiras dos países atuais, mas isso é uma falácia. O Império Romano era muito mais do que a atual Itália. Suas províncias no norte da África — como esta daqui, então chamada Africa Proconsularis — eram das mais importantes. Percorri a Itália de norte a sul e jamais vi lá a quantidade (e a beleza) dos mosaicos romanos que encontrei na Tunísia.

Os mosaicos romanos aqui estão conservados no Museu Bardo, o mais importante do país e o segundo mais visitado de toda a África, atrás apenas do Museu Egípcio no Cairo. (O nome se deve ao bairro onde ele está localizado, não tem nada a ver com os músicos europeus medievais chamados de “bardos”.) Seu prédio é um palácio originalmente do século XV, com estética do século XVII, quando estas terras eram província do Império Turco Otomano e aqui residia o governador (bey, em turco).

Mas, infelizmente, em 2015 o Museu Bardo foi palco de um ataque terrorista do Estado Islâmico que fez 74 vítimas, 24 delas fatais (20 eram turistas estrangeiros). Dois homens chegaram armados e abriram fogo, parte das insurgências terroristas que têm tentado ganhar poder no país, sobretudo depois da queda do ditador Ben Ali em 2014 (ver De volta ao mundo árabe: Bem vindos à Tunísia, norte da África). Atualmente, o Bardo passou de museu mais visitado da Tunísia a talvez o museu mais vazio da Tunísia, e um dos mais temidos do mundo. Os europeus ficaram com medo de morrer, e hoje só os mais corajosos vêm aqui.

Eu fui.

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Placa em homenagem às vítimas do ataque terrorista de 2015, no saguão de entrada do Museu Bardo.
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Memorial às vítimas no canteiro à entrada do museu. Feito em estilo de mosaico, como as obras de arte em seu interior.

A forma mais simples de se chegar ao museu é com o bonde elétrico — uma lata velha que faz você sentir falta do transporte público do Brasil. Poucas vezes na vida isso me aconteceu. A única coisa melhor que no Brasil foi o tempo de espera, que aqui em Túnis é menor.

O “terminal central” dos bondes em Túnis é a Place Barcelone, uma esculhambação que desafia até os brasileiros habituados a esculhambação. Parece terminal de ônibus dos piores que há no Brasil. Decrépito, sujo, e uma muvuca de gente pra lá e pra cá. Você diz no guichê até qual estação vai, e a pessoa calcula o preço a pagar, e lhe dá o ticket. (Não é possível acumulá-los comprando vários de uma vez. Todas as vezes é preciso pegar fila.)

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Ponto de bonde em Túnis, muito parecidos com os terminais de ônibus no Brasil.
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Meu bilhete de bonde.
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O lugar onde desembarquei.
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O transporte público de Túnis é funcional, mas velho, feio, e prepare-se para um gostoso empurra-empurra.

Você desce na estação homônima ao museu (“Bardo“), mas não há quaisquer avisos dentro do vagão; é preciso que você conte quantas paradas precisa esperar e desça na hora certa, pois tampouco há grande sinalização na parada. É uma aventura. Como no Brasil, aqui não há muita infraestrutura para prosperar o individualismo — você faz melhor em perguntar aos demais passageiros. “Le Bardo?“, em francês com aquela cara de indagação. (Sugiro perguntar a alguém do mesmo gênero que você, por prudência.) 

Procurei a entrada do museu, que não é óbvia, e fui instruído a dar uma volta. Não é distante. Chegando lá, encontrei praticamente uma trincheira de guerra à entrada, com sacos de areia, barreiras metálicas, e arame farpado, além de alguns guardas segurando fuzis. Aproximei-me vagarosamente e com tranquilidade, pra não despertar qualquer desconfiança. 

O museu, como consequência do ataque terrorista de 2015, está um ermo. Um ermo vigiado. Carros de polícia inspecionam todo mundo já aos portões do terreno (evite vir com mochila, ou terá que mostrar tudo), e os parcos vendedores de souvenir acabam conversando mais entre si do que qualquer outra coisa. Quando visitei havia dois, dois senhores de ar triste e frustrado. Tanto o café quanto a loja do museu estão desativados.

Entrei no saguão principal do museu, após passar por aquele memorial na grama (da foto mais acima), e abordei uma das funcionárias na recepção. Pareciam entediadíssimas, conversando umas com as outras. Todo o ambiente do Museu Bardo mais parece uma labiríntica masmorra de paredes brancas, com ar e cheiro de prédio público administrativo. Na maior parte do tempo não havia viv’alma além da minha pelas salas e corredores, encarando sozinho os painéis de mosaicos romanos. Ocasionalmente, escutavam-se os passos de algum segurança ou, mais raramente, de outro turista. Uma parte da minha mente estava sempre pensando no que faria se de repente aparecesse alguém armado atirando.

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Corredores vazios do Museu Bardo. Praticamente um cenário de jogo de tiro. Para a minha cabeça acostumada a video games, vocês hão de imaginar como eu me senti aí.
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Salas e corredores completamente vazios, salvo caríssimas exceções. Passei mais de 2h aí e não vi mais que cinco turistas.

Vamos ao museu em si.

Ele é enorme, advirto-os. Guarde pelo menos umas 2-3h se quiser ver todas as suas seções. Embora ele seja dominantemente de mosaicos romanos clássicos, há uma seção de após a conversão do Império Romano ao Cristianismo, e há também uma parte islâmica. Eu acho fascinante como as obras deste museu dão “o elo perdido”, fazem a ligação entre as tradições de mosaicos romanos, ligando-as aos azulejos árabes, e aí você percebe toda a gênese das decorações de parede dos portugueses e espanhóis (do célebre “São José de azulejo” cantado em verso e prosa na cantiga portuguesa sobre as tradições do país, e das várias decorações “coloniais” feitas pela América Latina).

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Mosaico cristão do século V, retratando ali a “fonte da vida”, símbolo da fé cristã.

A organização do museu é péssima; o mapa ajuda pouco, e a visita mais parece um jogo de aventura em que você segue sozinho pelos corredores silenciosos tentando achar o caminho; mas a coleção é sem dúvidas impressionante.

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Mosaico funerário do século V d.C. O círculo no alto, representando uma coroa de louros, simbolizava a fé cristã do falecido.
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Um mosaico laico, também do século V d.C.: uma dama da sociedade e suas damas de companhia. Na imagem, uma delas lhe mostra o espelho.
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Pia batismal dos primeiros séculos do cristianismo no norte da África. Ali escrito em latim Pax, Fides, Caritas (Paz, fé e caridade).

A quem preferir algo mais antigo, com temas da mitologia greco-romana clássica, também há.

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Aqui à direita um mosaico mostrando Ulisses, na Odisséia, quando pede que seus marujos o amarrem ao mastro do navio para que ele não seja seduzido pelo canto das sereias e se afogue. (Mosaico da época do imperador romano Galeno, 260-280 d.C.)
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Netuno e as Quatro Estações. (Mosaico da época do imperador romano Antoninus Pius, 138-161 d.C.)
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Saguões com esculturas clássicas.
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Muitos dos mosaicos tomam paredes inteiras, como este aqui com várias partes distintas. O centro é chamado de “Triunfo de Dionísio”. Já os bustos nos círculos são das estações Primavera e Inverno. De 120-130 d.C.

Os mosaicos dominam, como eu disse; mas a quem quiser arte islâmica, há algo dos primeiros séculos do Islã aqui (o Islã surgiu na Península Arábica no século VII d.C. e já nesse mesmo século foi trazido aqui ao norte da África pelos conquistadores árabes); e há algo também da época em que este palácio foi residência do governador turco, o bey responsável pela região, no século XVII. 

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Decoração de teto da época da Dinastia Hafsida, que governou esta parte do norte da África de 1229 a 1574, quando caíram perante os turcos. Seu reino englobava a área da província romana da África (que não incluía todo o norte da África; o Egito, por exemplo, era ele próprio outra província). Os conquistadores árabes vieram a chamar esse território de Ifriqiya, que compreende a atual Tunísia, grande parte da Argélia, e o leste da Líbia — basicamente o “meião” do norte da África.
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Decoração preservada do palácio, da época dos turcos, século XVII. Apenas uma pequena parte do museu conserva essa decoração da época.
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Teto do palácio, prédio que hoje é o Museu Bardo.

Embora eu critique o museu aqui e ali, a visita vale muito a pena — se você não tiver muito medo de morrer, isto é. (Se bem que, brincadeira à parte, hoje o policiamento aqui me parece bastante forte. Não acho muito provável que ataquem duas vezes o mesmo lugar.) Ou, se você quiser ser mais cauteloso, aguarde uns anos e torça para que a situação política da Tunísia melhore.

Eu, depois de sair do museu, fui almoçar ali mesmo por perto, num restaurantezinho desses de bairro, que talvez um dia tenha servido muitos turistas vindos do museu, mas que neste dia só servia a mim e a uma família árabe. (O menino pequeno fez um escarcéu porque comeu as batatas fritas mas não queria a salada, igualzinho no Brasil.)

O que pedi não me pareceu nada exótico demais, mas tampouco acho que a culinária tunisiana tenha algo de tão exótico a mostrar; parece-me mais uma culinária de “pratos feitos” com coisas simples, como essas aí abaixo. 

Eu comeria e tomaria o meu lindo bonde depois de volta ao centro de Túnis, para na manhã seguinte ir às ruínas da lendária Cartago.

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Meu almoço tunisiano: peixe assado, barata frita, rodelas de limão, azeitonas, uma salada básica, um molho feito com berinjela ali acima, um molho de pimenta vermelha, rodelas de limão, e o onipresente pão árabe na cesta.
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Ali perto, na vizinhança do Bardo. Como eu sempre digo, o Brasil é muito bem querido no mundo árabe.
Mairon Giovani
Cidadão do mundo e viajante independente. Gosta de cultura, risadas, e comida bem feita. Não acha que viajar sozinho seja tão assustador quanto costumam imaginar, e se joga com frequência em novos ambientes. Crê que um país deixa de ser um mero lugar no mapa a partir do momento em que você o conhece e vive experiências com as pessoas de lá.

3 thoughts on “O Museu Bardo e os mosaicos romanos mais lindos do mundo, na Tunísia

  1. Lindo museu. Maravilha. Que pena que aconteceu isso. Um belo museu com belos mosaicos.. Nossa, que interessante isso dos mosaicos; e que informação de que os mais bonitos não estão na Itália e sim na África e na região de Cartago. Não se fala sobre isso nos livros escolares.
    Belíssimos. Os tons os motivos e a técnica é muito delicada. Lindos. Mais bonitos que muitos dos posteriores portugueses. Cada um mais bonito que outros. Esses laicos, então são belíssimos. Adorei as estações e Netuno. O de Ulisses também lindo.
    Linnndos.. que maravilha…um dislumbre. Bom gosto , tons suaves, belas decorações, arte grega também ai misturada… uma beleza.
    Com certeza essa conexão entre romanos árabes e cristianismo foi feita e aproveitada. Só que passou para a historia com o ultimo elo, os portugueses
    Muito interessante essa mistura de culturas e influências ao longo do tempo e dos colonizados. Pobre África que passou de mão em mão.
    Nossa lindo esse pátio, bela escultura. Parece que é na Italia.
    Muito bonita e significativa a homenagem aos que foram mortos. Meio dantesco mas bonito, em particular o memorial.
    . É triste a situação dos pobres no mundo todo. Maldito capitalismo malditos capitalistas.
    Bela cultura, bela postagem empanado o brilho apenas pela realidade triste dos pobres e pelo terrorismo que impede de as pessoas apreciarem essas preciosidades. É isso ai, viajante. Vamos que vamos

  2. Tive a oportunidade de conhecer a Tunísia em maio de 2006, e o Museu do Bardo e Cartago foram meus lugares favoritos. Sonho em voltar, mas confesso que depois dos ataques tenho um pouco de medo. Enfim vamos esperando que as coisas voltem ao normal para podermos rever Sbeitla, Sid Abu Said, o deserto, e mais outros lindos lugares que só podemos ver na Tunísia!

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