Ali estou eu na Jordânia com um copinho de chá, salada crua e pão árabe (aquele pão chato, que no Brasil chama-se de pão sírio). Há muito da gastronomia árabe que conhecemos, e mais ainda de que não fazemos nem ideia.
Quando eu fui a Marrocos, um país árabe, perguntaram-me se eu havia comido kibe e esfiha. Não vi nem sombra. Habituados que estamos ao Habib’s e à grande influência da imigração libanesa no Brasil, achamos que “comida árabe” é somente comida libanesa. Ledo engano.
Os árabes conquistaram e governaram por séculos toda a região que vai de Marrocos (cá à beira do Oceano Atlântico) até o Iraque, lá na antiga Mesopotâmia. Toda essa enorme faixa abriga países que hoje fazem parte da Liga Árabe, e são essencialmente países árabes, onde as pessoas se identificam como árabes e a língua árabe é a oficial. (Se você achava que árabe é só quem nasce na Arábia Saudita, estava equivocado. Leia aqui.)

Pois bem, há coisas da culinária libanesa que são representativas também de outros países árabes (ex. os doces bastante doces), mas há um universo de outras coisas que não conhecemos. Não visitei todos os países árabes (ainda), mas tenho conhecido bastante coisa de que não vemos nem sombra no Brasil.
Cuscuz
Não há brasileiro que não conheça cuscuz de milho, mas isso é uma inovação americana (no sentindo do continente como um todo, senhores). O milho é uma planta nativa das Américas. Os árabes, que nos trouxeram essa receita, já fazem desde a Idade Média cuscuz de trigo no norte da África. A ideia é a mesma, do “farelo” grosso que pode ser misturado a outras comidas.
O nome que usamos vem do árabe keskes, que é o nome da panela redonda onde é tradicionalmente preparado. Mas, na verdade verdadeira, a receita é ainda mais antiga, originária dos povos berberes (os nativos deste norte da África) e registrada pelos romanos já no século III a.C. Os árabes, que conquistam esta região no século VII d.C., incorporaram a receita e no século seguinte a levam ao que se tornaria Portugal, quando invadem a Península Ibérica. Chegou até nós pelos portugueses, mas mantém-se em seu estado original e é popularíssimo aqui no norte da África (especialmente em seu lado mais ocidental, da Tunísia até Marrocos).

Kushari
Kushari é uma criação especificamente egípcia, e extremamente popular naquele país. Fico bobo sempre que descubro algo que é extremamente popular dentre um povo e eu nunca havia sequer ouvido falar. Há mesmo restaurantes específicos de kushari no Cairo onde é difícil conseguir assento. Não é uma coisa glamurosa, é um prato até bastante simples, mas saboroso, barato, e tão comum entre os árabes egípcios de hoje quanto é o feijão com arroz no Brasil.
Kushari é uma mistura de arroz, lentilhas e macarrão cortado, tudo com cebolas torradas por cima e, à mesa para você se servir a gosto, molho picante. Costuma haver também molho de tomate e grão-de-bico como cobertura. Você normalmente pede a porção por tamanho, como pizza, e vai do pote pequeno até um que mais parece uma bacia de kushari para toda a família.
(Se você estiver a se perguntar sobre a pronúncia, lembre que nas línguas ocidentais há o hábito de que tem que ter uma sílaba tônica na palavra, mas nem todos os idiomas são assim. Kushari é pronunciado com um tom equilibrado entre todas as sílabas.)

Tajine, na panela de barro
Tajine é um cozido na panela de barro, cujo jeito varia entre os países. É praticamente impossível ir a Marrocos e não conhecer um tajine — coisas da culinária árabe de que nem temos notícia no Brasil.
Ele pode ser com carne, frango, ou simplesmente legumes, preparados com sal, azeite e especiarias. Já na Tunísia, ele geralmente é feito com batatas e ovos, mas sempre na panela de barro. A origem é, mais uma vez, berbere nativa, e incorporada pelos árabes à sua culinária há mais de 1000 anos. Já o nome tem origem persa passado para o árabe: tah-chin, “panela grande”.

Azeite de oliva. MUITO azeite de oliva.
É curioso como relacionamos o azeite de oliva — tão glamuroso no Brasil — exclusivamente ao mediterrâneo EUROPEU. Tolice (ou, outros diriam, eurocentrismo). O azeite de oliva é produzido e consumido desde tempos imemoriais em todas as vizinhanças do Mar Mediterrâneo, e isso inclui os turcos e os árabes. O azeite de oliva é tão comum à culinária árabe quanto é às culinárias grega, italiana ou portuguesa.
Aqui ele é tão básico que pobre subnutrido, me disseram aqui, come pão com azeite de oliva e um copo de chá.

A “esfiha” mais tradicional
Já no Líbano você encontra de fato esfiha (que eles aqui chamam mesmo é de sfiha, e fazem com carne de carneiro moída). Porém, o nome mais genérico que me deram aos preparados de massa com algo em cima é manush. E o mais tradicional, com a mistura de especiarias chamada zaatar, eu nunca vi no Brasil (deve haver nas casas dos filhos de imigrantes libaneses). O zaatar é uma mistura de orégano, gergelim e sumac (que é uma especiaria meio azedinha pouco usada no Brasil).
A bem da verdade, não me tornei fã desse manush mais tradicional, porque a mim parece que você está a comer pão com tempero e mais nada. Prefiro um belo queijo ou molho de tomate por cima.


E por fim, voltando à mesa da foto inicial na Jordânia, digo-lhes que há, de fato, pão chato, hummus (pasta de grão-de-bico com azeite) e falafel (bolinhos de grão-de-bico fritos) — estes todos encontráveis no Brasil. Eles parecem comuns por todo o mundo árabe e, como os doces, o unem na gastronomia.
Os doces, pra quem não sabe, aqui levam quantias copiosas de mel (ou xarope de açúcar nas versões vagabundas, cuidado), e em geral nozes, avelãs ou pistache — e às vezes um toque de essências de flores, como de flor de laranjeira, dando uma pontinha curiosa ao sabor. São bons, mas por serem muito doces a maioria dos estrangeiros não consegue comer muitos.



Bom apetite!
Quanta coisa gostosa!!!!!
Vou sair procurando aqui no Rio..
Vai faltar o “tempero” da paisagem”, o saborear imerso.na cultura árabe. Vou me contentando com as duas deliciosas ( em todos os sentidos) narrativas…
Nossa que postagem saborooosa. Avemaria… deu água na boca. Delicias, e que visual. Muito atrativas. E a harira não tem ai?. esse cuscus de trigo é ótimo com verduras, então, uma beleza. Saudades do Marrocos.
E que banho de cultura e gastronomia árabes. Delicia. Muito interessante.. Ótimo saber essas cousas dos árabes, povo estigmatizado pela falsa e torcida visão norte americana e impregnada na America Latina.
Valeu. Adorei. Saudades das que eu conheço e vontade de conhecer estas haha
Ah!.. esqueci de dizer que adorei a foto da abertura da postagem. O senhor e o entorno estão ótimos, e claro o belo prato . Adoro grão de bico, gergelim , cebola frita e cia. Adorei.
E mais um comentário, a da importância, meu jovem, do resgate histórico e visibilidade dessa grande civilização árabe para o mundo, em particular para o Ocidente.. Grande serviço que essas viagens e postagens estão prestando. Valeu, meu irmão. Vamos lá.