No Egito, nada funciona com recibos, vouchers de confirmação, nada — a menos que você esteja lidando com grandes hoteis que cobram voluptuosas comissões. No dia-dia aqui, como em todo o mundo árabe que conheço, quase tudo é de boca. Vale a palavra do cidadão.
Mr. Bob, o simpático senhor gordo que me vendeu o cruzeiro pelo Rio Nilo até Aswan, perguntou-me ainda em Luxor se eu queria ver Abu Simbel. O lugar fica no extremo sul do Egito, a 3h de estrada de Aswan, quase na fronteira com o Sudão. Trata-se de um templo que o grande faraó Ramsés II construiu no século XIII a.C. para si e sua esposa Nefertari. É dos mais fabulosos legados do Egito Antigo visitáveis hoje.
Eu disse a Mr. Bob que tinha interesse, e perguntei a ele como era o esquema. Eu pagaria a ele adiantado, disse Mr. Bob tranquilo reclinando-se para trás para reequilibrar a sua grande barriga, e às 3h da manhã dali a dois dias alguém viria me pegar no navio aportado em Aswan para me levar a Abu Simbel, e retornar.
Confirmação escrita? Nenhuma. Tudo na palavra de Mr. Bob, e seu número de telefone. “Qualquer coisa, ligue pra mim.“
Terminado o cruzeiro e feitas as visitas ao Templo de Hórus em Edfu e ao templo dos crocodilos em Kom Ombo no caminho, aportamos em Aswan à noite. Eu me preparei para despertar extremamente cedo na “manhã” seguinte, 2:30am, pra pelo menos tomar um banho antes de sair.
Dei-me conta de que vários grupos que haviam vindo comigo no navio também levantaram cedo pra fazer o passeio a Abu Simbel. Como o lugar é extremamente seco e quente, as visitas são feitas às 6h da manhã, antes de o sol esquentar muito, e às 10h já se está tomando a estrada de volta. (Há também um certo controle policial para esse trajeto, por ele estar numa região sensível de fronteira, mas os agentes de turismo resolverão isso sem problema. Só precisarão copiar a página de identificação do seu passaporte para informar as autoridades antes de você chegar. Mr. Bob fez isso pra mim sem nem piscar o olho.)
Quem disse que o homem aparecia? Todos os grupos foram, com seus guias próprios, e eu fiquei às 3h da manhã no navio, minha bagagem acomodada na recepção pra me esperar, e eu ali olhando o relógio ao aguardo do homem de Mr. Bob. Até que ele apareceu. Não é que as coisas funcionam mesmo sem papel?


Ao chegar, a primeira coisa que você vê é o Lago Nasser. Esse lago, batizado com o nome do presidente egípcio dos anos 50 (Gamal Abdel Nasser), é um gigantesco lago artificial produzido como resultado da construção da Barragem de Aswan. Essa barragem segurou as águas do Nilo, que antes — desde tempos imemoriais — subiam e desciam de nível conforme as estações, e hoje a represa produz muito da eletricidade consumida no Egito, além de regular o fluxo de água.
Esse lago se estende por nada menos que 550km, quase todo no Egito mas invadindo também o Sudão logo ao sul. Ele é controverso porque nesta região ficava a histórica Núbia, os vizinhos do sul do Antigo Egito. Esse povo, os núbios, sempre teve uma identidade parecida mas distinta dos egípcios. Sua população compõe muito do que são hoje os sudaneses, assim como os egípcios aqui do sul. Dizem as más línguas que o lago foi em parte uma forma de sepultar a herança arqueológica da Núbia no atual Egito, o que poderia, quem sabe, um dia levar a reclamações territoriais por parte dos sudaneses. (É semelhante ao que pode ter se passado no Brasil com o Rio São Francisco, represado durante a ditadura, e cujo Lago Sobradinho, resultante, cobriu os vilarejos onde havia se passado a Guerra de Canudos e vivido o ainda muito lembrado Antônio Conselheiro.)
Seja como for, você hoje encara aquela imensa massa de água e sente o vento da tranquilidade no rosto, pelo silêncio deste remoto lugar.




Abu Simbel, a obra faraônica de Ramsés II, foi um dos monumentos resgatados da inundação e transportados com ajuda da UNESCO em toda a sua gigantesca inteireza para uma outra colina. Parece surreal, mas isso foi feito.

Abu Simbel foi, de certa forma, uma forma de impressionar seus súditos do sul do Egito e os núbios de modo geral. Foi um templo ao deus Amon, à forma híbrida de Rá e Hórus Ra-Horakthy, e de certa forma ao próprio Ramsés. Era conhecido no Egito Antigo como “Templo de Ramsés, amado por Amon”.
Ele, Ramsés II, é por muitos considerado o mais notável de todos os faraós egípcios, tendo realizado campanhas bem sucedidas tanto aqui na Núbia quanto no Levante a na Síria. Reinou por 66 anos. Morreu com mais de 90 anos de idade e cerca de 100 filhos. (A literatura e a mídia costumam apontá-lo como o faraó do Êxodo judaico bíblico, mas não há evidência histórica disso.)





Como costuma ser o caso em todos os principais monumentos egípcios (e em quase qualquer lugar turístico hoje em dia), não faltam lojinhas vendendo bugigangas nem bares vendendo coca-cola a preço de ouro nos arredores.
Queriam me cobrar 25 libras egípcias (cerca de 2,50 euros) por um copo de chá preto. Eu reagi com aquela cara de “O que é isso, companheiro?” quando ouvi o preço. A gringalhada pagava sem nem pestanejar. (O preço habitual é de 5 ou no máximo 10 libras egípcias.) “Peraê“, me disse o camarada detrás do balcão, “deixa eu terminar de atender eles aqui, mas não diga nada não“, completou ele baixinho na surdina. E me vendeu o mesmo chá por 10.
Era hora de me despedir do Lago Nasser, de Abu Simbel, e encarar novas 3h de estrada de volta a Aswan, onde eu ainda tinha coisas por ver. O calor não perdoava.


Debaixo dessas areias é que Abu Simbel ficou conservado por milênios até ser redescoberto. Dizem que, já nos idos do século VI a.C., a areia havia coberto as estátuas até os joelhos. Depois foi questão de tempo.
Foi apenas em 1813 que um orientalista suíço o redescobriu. Diz a lenda que as silhuetas das imagens às vezes ficavam visíveis no deserto, quando o mudar das dunas de areia o permitia. Um rapaz árabe daqui as teria visto e guiado os egiptólogos europeus, que trouxeram o monumento à atenção mundial. O nome do rapaz? Abu Simbel.
Ola,Mairon!
Se existe algo em minha vida que mais amo é viajar.Nunca tive a oportunidade de conhecer lugares e povos diferentes pois minha situação financeira nao me permitia.Ha 3 anos, tive a alegria de poder conhecer o Coliseu. Sabe, no momento que pisei naquele lugar eu senti o quanto é pequena esta vida para se conhecer tudo que gostaria.A emoção que eu senti…cada detalhe das paredes, piso..historia! Até o ar que respirei tinha outro valor pára mim naquele dia! Infelizmente nao tenho condiçoes mas nao perco a esperança de conhecer o Egito. Viajei em seus comentarios e fotos. Muita luz para voce e continue mostrando ao mundo o mundo que nao conhecemos.Um abraço.
Ana Lucia
Campo grande MS – Brasil.
Obrigadíssimo pelo seu comentário tão franco e generoso, Ana Lucia. Fico sempre muito contente quando descubro que meus relatos ajudam outros também a viajar. Sigamos viajando, e que você venha a realizar o seu sonho. Um abraço grande, Mairon
Quase chorei RSS.. Sério amo história e me emociona essse lugar. Espero um dia poder me reservar o deleite de conhecer, cara seu relato foi digno de um historiador, vc se encanta mais pelo lugar quando se conhece sua história e contou com maestria me será muito útil caso um dia consiga ir ao Egito. Vou começar um curso de Ingles que vi que é importante abraço.
Valeu pelo comentário, Anderson, e pelos elogios. Fico contente que tenha gostado. Um abraço
Meu jovem, parabéns pela coragem.Para nós brasileiros, isso de ir aos lugares sem mil papeis e carimbos, fotos, documentos etc e tal, soa como diferente e perigoso. dá uma sensação que você vai ser passado para trás. ah. Ainda bem que pelo visto o habito ai é outro. Ainda bem haha apesar da adrenalina da incerteza haha.
Mas é difícil acreditar que toda essa maravilha foi retirada e recolocada em outro lugar. Nossa..que empreendimento!… incrível.. Os tais engenheiros de hoje deveriam aprender como se fazem obras para a posteridade. Por aqui temos tuneis que com meses de construídos ameaçam desabar etc e tal.
Belíssimo esse lago, de um azul sem fim a `semelhança das águas de cobalto de Santorinni. Lindas paisagens, belo céu, Impressionante essa vastidão do Saara. Adorei as histórias e o banho de História. Linda serie esta sobre o lendário Egito e suas belezas.
Esse Gamal Abdell Nasser foi famoso. Estava sempre nos noticiários da época. Foi contemporâneo de Nehru na India, Era nacionalista e passou para o Egito o controle de Suez., se não me engano. Lembro que era muito charmoso.
Quanto aos recursos para apagar ou submergir a História, ao meu ver , são os olhos argutos que percebem essas manobras. Para mim são verdadeiras. Pelo menos do lado de cá. Bem provável que ai também. haha
Mas fiquemos com essa maravilha e bem posta obra faraônica, que vara os séculos com sua beleza grandeza riqueza de detalhes e originalidade. Grande Egito, grande Ramsés II, prodigiosa UNESCO que a salvou da submersão para deleitar nossos olhos. Valeu, viajante, Mais um primor de postagem. Abraços fraternos. vamos que vamos haja Egito.
E por fim, curioso e nome dado ao rapaz que a redescobriu e muito justo: ABU SIMBEL
Tô adorando a forma como você conta a sua história. Fiquei com os olhos brilhando só de imaginar que passarei por isto também (espero)! Muito bom!
olá Mairon que lindos lugares existem neste mundo hein?Meu sonho é conhecer o Egito, um lugar absolutamente inigmático ,misterioso e lindo, gostaria de saber se com 25mil reais consigo realizar este sonho eu e meu marido, vc acha que está quantia para arcar com passagens,hótel,passeios dá para realizar este sonho?obrigada .
Olá, Rosana!
De fato, o mundo está repleto de lugares lindos e interessantes :-). Com essa quantia, você com certeza consegue visitar o Egito por algumas semanas e com um bom nível de conforto. O mais caro serão as passagens aéreas, se você estiver voando a partir do Brasil. Espere pagar uns 900-1000 euros por pessoa em média (o valor em reais dependerá da cotação na época em que você for viajar). Já os gastos dentro do Egito são relativamente módicos. Há sem dúvida muitas entradas em monumentos e museus a pagar, mas os custos em geral não são altos. Sua quantia dá e sobra.
Qualquer outra dúvida, é só dizer.
Boa realização!
Olá, Viajante,
Conheci Abu Simbel e, realmente, uma obra esplendorosa para quem curti história e viagens culturais. Amei o Egito e com o guia esplicando toda aquele legado. Muito bom! Amo viajar e conhecer novos lugares e culturas.
Pena que não dá para mergulhar no lago Nasser!!rs rs rs
Obrigada pelo seu texto esclarecedor.
Olá, Mairon! Realizei meu sonho de conhecer o Egito entre setembro e outubro de 2018. Queria fazer um Cruzeiro pelo Nilo, mas não abria mão de conhecer Abu Simbel. Então encontrei uma operadora que fazia, além do Cruzeiro pelo Nilo, o Cruzeiro pelo Lago Nasser. Eu já tinha me admirado com tantos templos e vistas maravilhosas conhecendo o Cairo e navegando de Luxor a Assuã mas, para mim, Abu Simbel foi a cereja do bolo de toda a viagem ao Egito. Acostumada a ter o controle de voos, hotéis e passeios, muito me admirei com a forma como os egípcios administram tudo isso. Realmente, é tudo na confiança. Se eles dizem que alguém irá te buscar, alguém estará lá no horário combinado. Pensei que isso tinha acontecido somente comigo, mas percebi pelo seu relato que não. É assim que eles fazem mesmo. Deixo minha palavra de incentivo a todos que pretendem conhecer o Egito. Um dia é necessário fechar os olhos e ouvidos a tudo o que dizem e enfrentar o desafio. Vale muito a pena! Me sinto muito enriquecida com essa experiência e grata a Deus por ter me concedido a realização de mais esse sonho. Parabéns por seus artigos tão bem escritos e pelas fotos maravilhosas. Que Deus siga te protegendo e abençoando. Um abraço!
Muito obrigado, Regina! E que coisa boa ter o seu depoimento também! Legal saber que teve uma experiência que acrescentou tanto, e em muito semelhante à minha. Que venham outras viagens! Grande abraço