Bem vindos a Nicosia, a última capital dividida do mundo. Sim, porque as Coreias há muito tempo já não dividem uma capital. Chipre, no entanto, tem a sua capital dividida desde 1974, quando separatistas falantes de grego tentaram anexar o país à Grécia e a Turquia interveio militarmente em defesa dos cipriotas que falam turco, e que hoje vivem na região norte da ilha. (Mais detalhes sobre isso, no post anterior.)
Aqui, embora não haja exatamente um muro como em Berlim, há toda uma seção da cidade que está abandonada, as próprias construções servindo de barreira entre um lado e outro. No que eram as ruas que ligavam uma parte a outra da cidade, sacos de areia empilhados, algumas barreiras de concreto, e soldados a postos. É meio surreal, faz você imaginar o que era a Berlim da Guerra Fria, dividida entre Alemanha Oriental e Alemanha Ocidental de 1951 a 1989.
A Rua Ledra, a artéria principal que ainda existe de um lado e de outro, hoje é interrompida por um posto de fronteira. Guardas cipriotas gregos de um lado, uns 20m de terra de ninguém (teoricamente, uma zona manejada pela ONU, mas na prática abandonada e sem ninguém), e guardas cipriotas turcos do outro lado, para a continuidade da Rua Ledra. (Turistas passam sem problema para lá e cá, não se preocupe.)
O diferencial do Chipre em relação à antiga Alemanha dividida — e que, ao meu ver, torna esta separação aqui muito mais profunda que a dos germânicos — é que enquanto a de lá era uma separação econômica e ideológica entre dois países que falavam a mesma língua e tinham a mesma cultura e história, a daqui de Chipre é uma divisão étnica, religiosa, cultural e linguística: uma divisão entre civilizações.






Os dois lados de Nicosia não são muito diferentes, a princípio. Quando você interage com as pessoas, aí é que vê que um lado é uma coisa, e o outro lado é outra coisa. É como a Grécia e a Turquia. (Inclusive, antes que eu esqueça de mencionar: um lado usa euro, o outro usa liras turcas.)
Eu vim num ônibus a partir de Larnaca, coisa de 1h de viagem. Os ônibus lá são a cada hora e partem da avenida na orla. Cuidado que ele pode vir com o nome “Lefkosia“, que é o nome original grego para Nicosia. “Nicosia” é uma adaptação tardia, feita pelos Cruzados europeus quando estes ocuparam e governaram a ilha durante a Idade Média.
Cheguei para a pensão de Maristela, uma dama cipriota grega relativamente jovem. Como muitas gregas, ela ficava olhando mas não abria muito espaço. (Não, eu não estava dando em cima da dona da pensão.)
Pouco a vi, verdade seja dita. Passei a maior parte do tempo zanzando pelas ruas estreitas (e, em grande parte, meio largadas) do lado grego de Nicosia e aventurando-me do lado turco.
O lado grego pareceu-me muito mais comercializado (no sentido de albergar quase exclusivamente redes internacionais, seja de lojas ou fast food), e também hoje repleto de imigrantes asiáticos e africanos, enquanto que o lado turco parece mais simples mas mais turco. Aliás, houve um dia em que eu quase concluí que não havia um lado grego e um lado turco, mas sim um lado asiático e um lado turco.
Era aniversário de Ho Chi Minh, líder da independência do Vietnã contra os franceses, e no lado grego de Nicosia se viam mais vietnamitas que tudo. (Aliás, parte dos que eu julguei vietnamitas eram provavelmente filipinos. Entrei numa igreja católica e só vi cabeças asiáticas. Supostamente de filipinos, que em geral são católicos.) Informaram-me que muitas filipinas e vietnamitas vêm trabalhar como domésticas aqui em Chipre.






O lado turco, contudo, me pareceu bem mais conservado. Você pode ver as muralhas venezianas que contornavam toda Nicosia (construída na Idade Média, quando os Cruzados governavam a ilha) e que no lado grego estão bem detonadas, o que sobrou.


O lado turco é mais turco do que o lado grego é grego, se vocês me permitem uma declaração meio polêmica. Ao menos essa é a sensação ao visitante.
Troquei os KFC e McDonald’s do lado grego por um saboroso café turco num bom ambiente, e depois fui ver o caravanserai (eu já explico) de Buyuk Han e a bela Mesquita Selimiye.

Eu amo a Grécia, mas estava com saudade de dizer teşekkür ederim (“obrigado” em turco), e querendo gastar as liras turcas que ainda tinha comigo.







E assim eu via um pouquinho de cada lado de Nicosia, uma cidade dividida entre dois mundos. Relíquia do tempo em que era concebível que dois povos com culturas distintas pudessem dividir o mesmo espaço. Com todos os avanços de hoje, parecemos incapazes de imaginar isso, fixados que estamos na ideia moderna de estado-nação e o seu pressuposto de homogeneidade cultural. Acho que Nicosia e o Chipre só voltarão a se reunir quando superarmos essa fixação para conceber — realmente — sociedades multiculturais.
Eu iria mais adentro desse Chipre do Norte agora.
Uaaauu que beleza essa histórica Nicozia, embora dividida. Lindas expressões culturais.
Tambem , apesar do meu grande amor pela Grecia, prefiro algo mais típico que as badalações turísticas.
Lindas paragens, bela mesquita, interior bonito arejado, com seu estilo gotico adaptado aos seguidores de Alhah. (Eu amo Alhah) Lindas ruelinhas calçadas, com suas casinhas pintadas e com flores. Uma graça.
Ahhhhh!. mas esse Caravanserai, é o máximo, lindo, colorido com seus arcos ogivais e seu grande patio, o verde das plantas com suas flores e coisinhas lindas e típicas, uma perdição haha lindo. Para mim, junto aos restos da muralha veneziana e a mesquita, um dos pontos altos da visita a essa histórica e sofrida cidade.
Adorei o penetra bom de bico haha na festa vietnamita. eu adoraria estar também a saborear essas guloseimas do SE asiático.
Muito interessantes a visita, a regiao, a postagem com suas fotos e intervencões, a história e as reflexões sobre o nacionalismo e seus entraves à vida comunitaria e transnacional. Vai demorar para as pessoas aprenderem que este planeta é de todos e todas e nós somos apenas passageiros passando uma temporada e aproveitando as belezas dele.Que os povos aprendam a viver em paz e com as diferencas. Parabens. Gostei de atualizar os conhecimentos sobre esta bela região.
Que linda cidade e Nicosia, pretendo coecelo.
Olá! Adorei seu post, e ainda tenho algumas duvidas. Seria possível entrarmos em contato para trocar algumas palavras? Desde já, obrigada
Oi Fabiane, obrigado!
Sim, a maneira mais fácil é me escrevendo no inbox da página no Facebook. Se por acaso não for uma opção viável pra você, me diz e a gente dá um jeito.
Boa noite
É tranquilo atravessar de carro para o lado turco?
Bom dia Cristina,
A travessia dentro de Nicosia é feita exclusivamente a pé. No entanto, há outros pontos de fronteira fora da cidade onde é possível atravessar de carro. Dizem apenas que às vezes congestiona um pouco.
O principal ponto a ter atenção é que com um carro do Chipre grego você pode entrar no Chipre do Norte (turco) e rodar, mas o contrário não é verdadeiro. Carros alugados no Chipre do Norte não podem adentrar o Chipre grego. No seu caso, como você me parece que vai chegar pelo lado grego, não deve haver problema.
Você pode ler mais sobre os vários pontos de travessia neste link. O principal é em Agios Domestios, próximo a Nicosia.
Mairon, adorei sua descrição. Sou brasileiro, mas nasci na Grécia e vim muito pequeno. Portanto, minha alma e o lado que me posiciono são, sem dúvida, os gregos. Mas estive nos “territórios ocupados”, como nós dizemos, em vez de República Turca de Chipre do Norte, apenas reconhecida pela Turquia. Visitei Kyrenia e a Abadia de Bellapais. Assim como várias cidades da República de Chipre, aquela que é membro da UE… Vc está de parabéns, Fiz a visita em 2005.