Wadi Musa, ou o “Vale de Moisés” em árabe, é hoje uma região árida e pedregosa. Estamos no sul da Jordânia, não muito distante do Deserto do Sinai ou da fronteira com Israel. Dizem que, nos tempos bíblicos, o profeta Moisés teria feito água brotar das rochas nesta região. (Tais milagres seriam muito necessários hoje, quando junto com a deterioração de fontes d´água a Mudança Climática Global está batendo com força nestas regiões áridas. O lugar é hoje muito mais seco do que era há dois ou três mil anos atrás.)

Os nabateus são um povo árabe dos mais antigos de que se tem notícia. Eram notáveis mercadores. Controlando esta região estratégica que ligava cidades no mundo helênico, Pérsia, Síria e Egito, eles prosperaram comerciando mirra, incenso e especiarias. Quando Alexandre o Grande morreu em 323 a.C. e seus generais se debatem pelo controle do território, tentaram subjugar os nabateus, mas sem sucesso. Eles aqui permaneceram desde o século IV a.C., cresceram e fundaram um reino no século II a.C., e floresceram independentes até serem conquistados pelo Império Romano em 106 d.C.
Os romanos dividiam a região que chamavam de Arabia em três: Arabia Petrae (esta aqui, pedregosa), Arabia Deserta (mais ao sul, o miolo da península), e Arabia Felix (não, não quer dizer “Arábia Feliz”, e sim Arábia Fértil, no sul da região, onde hoje está o Iêmen).
Daí o popular nome de Petra ao que foi a capital do reino nabateu, cidade que à época eles próprios conheciam como Raqmu.

Os nabateus eram notáveis — afora a sua arquitetura muito particular de esculpir os monumentos em pedra em lugar de construí-los — pela sua relativa equidade de gênero. As mulheres tinham direitos de propriedade e herança, ao contrário do que acontecia na maioria das sociedades da época, e rainhas governavam junto com os reis, não como uma sombra. Seus rostos iam mesmo nas moedas junto com as dos reis.
Eles escreviam árabe usando o alfabeto aramaico (a língua de Jesus), e o adaptaram aos poucos no que veio a se tornar o alfabeto árabe de hoje. Na época, o monoteísmo era raro — Maomé só viria a nascer muito depois, em 570 d.C. para criar o Islã, o judaísmo era restrito, e o cristianismo ainda muito pouco conhecido. Os nabateus, portanto, eram politeístas como o grosso do Oriente Médio. (Há quem argumente que o machismo e o patriarcalismo dos séculos seguintes no Oriente Médio e na Europa deveu muito à expansão religiões abraâmicas — o Judaísmo, o Cristianismo, e o Islã — em suas formas instituídas, mas não sei.)
Vamos a Petra.

Petra não é como outras ruínas que você está habituado a visitar. Se Éfeso, Pompeia e os templos antigos da Grécia ou do Egito são sítios estritamente arqueológicos que você visita num par de horas, Petra é um parque geoarqueológico (mais “geo” que “arqueológico”, do ponto de vista do visitante) de quilômetros de extensão, e que mais se parece a uma área de proteção ambiental onde fazer trilha.
As formações rochosas aqui são magníficas, assim como as vistas — até mais do que o trabalho humano, na minha modesta opinião de amante da natureza. Vocês verão. Mas preparem as pernas. Eu acho que andei uns 15km nesse dia.
Não é necessário comprar entradas pela internet ou com antecipação, basta aparecer na bilheteria no começo da manhã (abre às 6:00h) e entrar. Sugiro trazer bastante água e um lanche, pois há poucos lugares de venda e os custos são altos. Você já desembolsará a bagatela de 50 dinares jordanianos (o equivalente a 70 dólares) para entrar. (Há entradas — ligeiramente mais caras — para dois ou três dias. Pode ser útil se você tiver tempo e quiser visitar num passo mais lento, mas não é necessário se você tiver pique para chegar ao parque logo de manhã cedo e andar até a tarde.)
Começar cedo é fundamental. Se você estiver hospedado em Wadi Musa, o que é muito provável pois a cidadezinha é hoje basicamente um paradeiro turístico para os visitantes de Petra, são meros 20 minutos de caminhada até a entrada do parque. Há um museu interessante e não muito grande no Centro de Visitantes ao lado da bilheteria; vale a pena dar uma olhada, mas não gaste muito tempo aqui. À 1h da tarde o sol vai fazer você entender porque estou enfatizando começar cedo.


Eu havia chegado no dia anterior a Wadi Musa, após 5h de viagem vindo de Amã, a capital da Jordânia. A dona do albergue era uma senhora inglesa casada com um jordaniano. Simpática e ativa, se algo reservada, dos seus 50 anos. Queixava-se, no dia em que eu cheguei, que o pedido de um visto de turista para o seu marido para ir a um casamento na Inglaterra havia sido negado, ele que já havia até morado dois anos lá.
“Eu não entendo“, dizia ela com frustração, “eles acham que todo mundo daqui quer ir morar lá. Os dois anos que nós moramos lá foram provavelmente os mais infelizes da vida dele“, comentava ela com alguém enquanto eu estava na sala. “Ele sentia muita falta da Jordânia.“, completou ela fechando a conversa, com algo do senso de praticidade dos ingleses, que às vezes não gostam de se demorar demais em lamúrias inúteis.
Aqui conheci Felipe, um brasileiro que estava trabalhando como voluntário no albergue, e Baqir, um jovem rapaz árabe funcionário. Achei engraçadíssimo quando, após Felipe e eu ficarmos de papo no fim do dia — e, aparentemente, Felipe perder um compromisso que havia feito com Baqir de ensinar-lhe a fazer um verdadeiro churrasco gaúcho —, Baqir veio para mim lamurioso na manhã seguinte perguntar “Por que você tomou ele de mim na noite passada?” [Why did you take him from me last night?]. Não consegui não rir com essa formulação tão capciosa. Ainda acho curioso esse achego masculino — que nada tem a ver com homossexualidade — aqui nos países árabes (algo sobre o que versei neste outro post).
Na manhã seguinte, comprei um lanche embalado que a senhora inglesa vendia aos hóspedes, e fui-me para Petra passar o dia.



Quando eu cheguei de manhãzinha o ar ainda estava fresco. Fazia quase frio na sombra, mas eu sabia que aquilo logo mudaria conforme o sol fosse subindo. E mudou.
Após uma meia hora caminhando numa estrada de pedregulhos já no interior do parque (onde carroceiros te oferecem fazer o trajeto por um preço a negociar), você alcança o siq, um cânion por onde trafega a pé “espremido” entre as rochas.



E terminando esse caminho, você se depara de imediato com a “Tesouraria” (al-Khazneh em árabe, ou the treasury em inglês), como é chamado o monumento mais famoso e fotografado de Petra (abaixo).

Os interiores têm muito pouco e são quase completos vãos, para dizer a vocês. O interessante mesmo são as fachadas.
A partir daqui é que a tomada de decisões se inicia, pois há diferentes partes de Petra a serem visitadas. Há trilhas por diferentes caminhos, levando a partes distintas do parque. As mais visitadas, e que eu vi, são o Lugar de Sacrifício e o Mosteiro — ambos a uns bons quilômetros de caminhada. Prepare-se para ver gente arfando, prepare a sua água, e prepare o seu lanche.




Os sacrificados e sacrificadores tinham uma vista e tanto. Não se sabe em detalhes como eram os sacrifícios realizados aqui no alto. Há quem fale apenas em sacrifícios de animais, mas há quem aponte também fontes sugerindo a existência de sacrifícios humanos.

Descer dali pelo outro lado da montanha levou mais um tempo, mas valeu a pena. Num dado momento, parei pra comer o meu lanche apreciando a vista lá do alto.





O sol já começava a queimar quando deu meio-dia eu me dirigi ao Mosteiro, uma caminhada mais longa. Era engraçado perguntar no caminho às pessoas voltando “Quanto ainda falta? Tá longe?”, e depois se dar conta de que as respostas eram quase todas enganosas. Sempre faltava muito mais do que me diziam.






Nem lembro que horas eram quando eu saí de lá. Só sei que o sol já estava queimando, e junto com o cansaço era uma sensação maravilhosa. Na descida, ainda vi umas pobres almas sofrendo com os degraus, a me perguntar quanto faltava pra chegar.
Apesar da fadiga, o esplendor do lugar sem dúvida compensa. Não é simplesmente pelo Mosteiro, diga-se a verdade, mas pela jornada, pela experiência.
Quando retornei, ainda passei pelas Tumbas Reais — uma face de montanha repleta de tumbas esculpidas para os antigos reis árabes nabateus — e reencontrei a Tesouraria vindo por outro lado. Depois era só retornar pelo cânion (o siq) e fazer o restante do caminho de volta até um bom banho no albergue. Eu, no dia seguinte, retornaria a Amã de ônibus para de lá então tomar um avião até Omã, país árabe no sudeste da Península Arábica — o lugar mais quente onde já pus os pés.


EPÍLOGO
Quando retornei à pousada da senhora inglesa, praticamente arrastando já os pés de tanto andar, ainda pude presenciar uma linda cena. Vi um senhor árabe chegar perguntando quem era o dono do estabelecimento. A inglesa levantou o braço detrás de balcão dizendo “Sou eu”. O senhor árabe pareceu não internalizar. Fez uns arrodeios, perguntando com quem mais ele poderia falar. Ela perguntou do que se tratava. Até que, como o inglês dele era muito básico e o árabe dela, inexistente, um dos rapazes da limpeza perguntou a ele em árabe o que era, e com ele (um homem) o senhor visitante finalmente quis conversar. A inglesa ficou lá olhando com cara de tacho e sem entender. Depois a vi se queixando, comentando que os homens aqui sequer se dão conta de como são rudes em seu machismo. Eu me retirei aos meus aposentos.
Cara, cada post que leio aqui é uma vontade doida que dá de pegar o passaporte, botar uma mochila nas costas e sair pelo mundo tb.
Uaaaaauuuu. que maravilha é essa, meu jovem!…. que Espetáááaaaculo essa natureza esplendorosa, magnifica, singular com seus tons e nuances de impressionante beleza que só o Criador pode plasmar e que os co-criadores humanos podem conceber e produzir. Belíssima natureza, primorosas as esculturas nas pedras. Irreais. Lindas!… Inimagináveis!…. e so conhecidas através de viagens e viajantes assim corajosos, intrépidos, aventureiros e audazes capazes de arriscar e arriscar-se para ver e tornar visível tanta beleza. Magnifica região, linda postagem, digna de figurar entre as mais belas. Parabéns, meu jovem.
Amei a região, as flores, as belas pedras com seus tons incriveis, a criatividade dos construtores e artistas e a pujança da natureza. Parabéns pela coragem.
Sempre interessante o “aconchego de gênero dentre os árabes e deprimentes o machismo e a cegueira em relação às mulheres.
Vale comentar o ” nariz em pé” dos ‘colonizadores’ de pensar que estão todos querendo ‘morar com eles’. Como dizem muito bem os gauchos ‘BAH’.
Valeu. Amei. até aproxima… Congratulations.
Ola
Em janeiro estarei em Eilat / Israel
Gostaria de ir para Petra , vc sabe se na fronteira de Eilat com Aqaba consigo tirar o visto ?
Obrigado
Seu Blog é muito bom !!!
Oi Elis! Obrigado!
Consegue sim. Normalmente, o visto pra entrar na Jordânia (que se tira na chegada) custa 40 dinares jordanianos (JOD), o que hoje dá cerca de 56 USD. No entanto, há duas regras excepcionais que você precisa observar. A primeira é que a Jordânia cobra mais caro se você ficar menos de 3 dias no país. O visto sai um pouco mais caro e a entrada em Petra também, sai 90 JOD em vez de 60. (Verdade seja dita, quando eu comprei a entrada em Petra ninguém verificou isso comigo e eu entrei pelo preço menor, mas não sei se eles às vezes não checam o carimbo no seu passaporte.)
A segunda regra excepcional diz respeito especificamente a Aqaba/Eilat. Como Aqaba é uma “zona franca”, com facilidades, lá o visto é gratuito, mas você tem a obrigação de sair do país por lá também. Se você passar pelo menos 3 noites no país, não paga nada ao sair. Sai tudo de graça. No entanto, se ficar apenas 2 noites, paga 10 JOD na saída. Se ficar menos de 2 noites, paga os 40 JOD habituais (que você teria pago na entrada se chegasse por outra fronteira) na saída. Basicamente, eles querem encorajar os visitantes a ficar um tempo na Jordânia, em lugar de fazer apenas um bate-e-volta de Israel.
Boa viagem! Qualquer dúvida, estamos aí!