
Os Bálcãs, aquele recanto no sudeste da Europa (entre a Itália e a Turquia), são uma das regiões mais fascinantes do continente e das menos visitadas por brasileiros. Esta é a região mais pobre de toda a Europa, mas também uma daquelas de maior personalidade. Se por um lado há uma certa decadência na infraestrutura física de alguns lugares, por outro há as belezas de que pouco se escuta, há as pessoas de jeito mais maroto (às vezes um pouquinho malandro), e a gastronomia de influência turca.
Eu, quando cheguei a Skopje, capital da Macedônia, acreditei que iria me deparar com blocos de refugiados sírios fazendo seu caminho até a Alemanha — como o fizeram às centenas de milhares, passando da Grécia à Macedônia e caminhando rumo ao norte em 2015. (Em segredo, imaginei até se as pessoas daqui não me tomariam por refugiado sírio, visto que às vezes os europeus acham que eu sou árabe.) Mas não. Salvo engano, não vi um refugiado sequer. Não quer dizer que eles não existam, mas não é (ao menos não em 2017) mais aquela “onda humana” que se via nas notícias. Você se vier aqui nem vai se lembrar daquilo.
Quando cheguei ao meu albergue em Skopje, quem me atendeu foi Milena, uma moça macedônia loira de seus 30 anos (que depois eu descobri ter 31). Aquele jeito um tanto fechado, comum entre os eslavos, cabelos compridos em trança nas costas e moletom de lã cinza e branco daqueles “feito pela vovó”. É uma indumentária comum aqui, do mesmo modo que as brasileiras se destacam na Europa por seus moletons da Disney e essas coisas — que os europeus em geral acham piegas.
O dono do albergue era Goran, um senhor alto de seus 60 anos, cabelos brancos, e uma voz grave de vilão de desenho japonês. Era divertidíssimo — tanto escutá-lo falando quanto ele próprio, sua personalidade. Ele foi jogador olímpico de vôlei pela seleção da Iugoslávia em 1980, então quando eu digo alto, é alto mesmo. As pessoas riam quando ele “assumia” a recepção, porque a trilha sonora rapidamente mudava para ABBA e outros sucessos dance dos anos 60, 70 e 80, tipo Bonnie M., Alphaville, A-ha e outros. O coroa altão quando se empolgava era uma onda.


Ohrid, provavelmente a cidadezinha mais bonita de toda a Macedônia, se encontra a umas 3h de estrada daqui da capital. Há ônibus com frequência e, portanto, não é preciso comprar passagens com antecipação — basta chegar e esperar pelo próximo, a menos que você goste de ter tudo planejado, então pode usar o site Balkan Viator para ver os horários e as rotas (mas não se surpreenda se chegar à rodoviária e os horários não forem 100% idênticos.) Como de costume aqui pelos países da antiga Iugoslávia, você pode comprar já ida e volta (sai mais barato), sendo a volta uma passagem em aberto com validade de 30 dias e que você precisará “confirmar” (e pagar a tarifa de embarque) lá no destino, no dia em que quiser voltar.
É uma viagem tranquila e com algumas vistas para as montanhas ainda cobertas de neve, um deleite que só foi interrompido quando o motorista começou a fumar no interior da van. Venha preparado. Aqui quase todo mundo fuma.


Comi dois bureks de espinafre na padaria da rodoviária, daquelas com cara de que atendem bêbados no fim da noite, e parti. (Burek é um pão com recheio de queijo, espinafre, cogumelos ou carne, e frito no óleo. Se você vier de mochilão, é o que mais vai comer de manhã aqui nos Bálcãs. Ver aqui.)
Fui despejado em Ohrid à beira da avenida principal. O motorista, um amor que fumava na van e não falava inglês, praticamente parou na beira da pista e me pôs pra fora. Só fiz perguntar “Ohrid?“, e ele “Ohrid“, e zarpou com a última passageira sabe-se lá pra onde.
A cidade moderna, digo-lhes a verdade, não tem nada de atraente. Havia um ar de decadência na vizinhança e, como um todo, na maior parte da cidade (como também na maior parte do país, diga-se com franqueza). Talvez isso seja acentuado pelo inverno. É na parte histórica da cidade, à beira do lago que eu ainda não havia visto, que reside a sua beleza.
Antes fui deixar as minhas coisas, e me atendeu Giorgi, um idoso bem arrumado e simpático, apesar do leve ar de cafetão. A recepção do albergue, onde ele se sentava sozinho à companhia da televisão muda, parecia um cassino abandonado, com luzes indiretas e um clima meio noir. Eu parecia ser o único cliente em todo o estabelecimento.


Eu não quis nem saber. Fui para o centro histórico, onde os meus olhos se deleitariam (e, depois, meu estômago). Ohrid é uma preciosidade em seu espaço antigo, à beira do lado que também carrega o seu nome. É uma mistura de igrejas bizantinas medievais, ruas e mesquitas turcas otomanas, e um casario típico balcânico por ruelas que sobem e sobem.
Não deixe por por nada neste mundo de passear no Parque da Cidade Antiga (Old Town Park) à beira do lago, nos arredores da Fortaleza do Tsar Samuel (calma que eu explico), nem de ver a notável Igreja de São João Teólogo à beira de um precipício para o lago — a da foto inicial.
Afora estes lugares, há várias igrejas bizantinas a visitar se essa é a sua praia (embora elas aqui sejam pagas, pois o lugar é turístico, e não necessariamente muito diferentes das que você vê gratuitamente por todo este lado cristão ortodoxo da Europa). E a vista, oh a vista, é imperdível.







Tsar Samuel, para quem estiver se perguntando, foi um imperador do Primeiro Império Búlgaro, dos idos do ano 1000. Tsar (pronúncia do que às vezes se escreve czar) é abreviação de “César”, e o título que povos eslavos usaram para si a partir da Idade Média, inspirados pelos romanos de Roma e, posteriormente, pelos romanos de Constantinopla (atual Istambul). Os russos não foram os únicos eslavos a abraçar esse título; os búlgaros também o fizeram.
O primeiro dos impérios búlgaros teve sua capital aqui em Ohrid nos tempos do Tsar Samuel, e aquela fortaleza era sua morada. Hoje só restam as muralhas e portões. (Esse império foi fundado em 681, mas extinto pelo Império Bizantino — dos romanos de Constantinopla — em 1018, quando estes reconquistaram estas terras após a morte do resistente Tsar Samuel. Os búlgaros voltariam a recobrar sua independência em 1185 com a criação do Segundo Império Búlgaro, que duraria até sua queda perante o Império Turco Otomano em 1396. Como eu disse no post anterior, os macedônios atuais são o povo mais próximo dos búlgaros. Ambos os povos faziam parte dos mesmos reinos no passado, e hoje falam línguas muito parecidas.)


Entre a fortaleza e o Lago Ohrid há um agradabilíssimo parque por onde caminhei no fim de tarde. Nem parece que você está numa área urbana.




Num dado momento, comecei a me questionar se o caminho que eu estava tomando me levaria mesmo de volta à cidade. Foi quando um par de pessoas de cabelos negros, com ar de serem pai e filha — a moça era um verdadeiro colírio. Perguntei-lhes se aquele caminho me levaria aonde eu queria chegar. Disseram que sim. Perguntaram de onde eu era, sorriram com a resposta, e eu lhes agradeci com um blagodaram (“obrigado” em macedônio).
— “Nós somos turcos“, respondeu o senhor com tranquilidade quando já seguiam caminhando.
— “Tesekkur ederim!“, lancei-lhes então em turco, do meu vasto repertório de obrigados em muitas línguas.
— “Não, nós somos turcos da Macedônia. Estamos aqui desde o tempo dos Otomanos.”, prosseguiu ele já seguindo à distância.
— “Nossa! Prazer em encontrá-los!“
— “Igualmente!”
Os turcos da Macedônia são cerca de 80 mil, de famílias remanescentes dos tempos otomanos. São ainda 4% da população. (Você hoje vê o mapa da Turquia, que abrange basicamente a Península da Anatólia, e se enganará se achar que o Império Otomano era aquilo. O centro do Império Turco Otomano não era lá, era aqui nos Bálcãs e em Istambul. A Anatólia foi simplesmente aquilo que os turcos conseguiram manter depois da sua derrota na Primeira Guerra Mundial. E, se não tivessem ganho ao menos a Batalha de Galípoli dos ingleses e franceses em 1915-1916, Istambul também teria sido perdida e seria certamente “devolvida” aos gregos como Constantinopla. A História é fascinante.)





Retornei ao centro histórico da cidade nada distante dali, e fui jantar. Comi um delicioso ajvar [ái-vár], um molho grosso de legumes, e mais um pão assado acompanhado de pimentas e azeitonas. Como fiquei com vontade de comer um doce depois, parei numa padaria qualquer e peguei por 0,30 euro um doce, daqueles bem melados, feito com cereja de verdade (e não os doces de “cereja” do Brasil, que têm gosto de sabor artificial de pasta de dente). Delicioso.
Era hora de deleitar o estômago após tê-lo feito com os olhos.



Na manhã seguinte, não foi nenhum deleite quando — no café da manhã incluso no preço do albergue — Giorgi serviu-me chucrute azedo junto com o café preto. Sacanagem, Giorgi. Ao menos houve também ovos e queijo branco salgado, daquele que os gregos chamam de “feta” mas que, tal qual o ajvar, está presente sob diferentes nomes aqui em toda a região dos Bálcãs e na Turquia.
Era hora de ir embora de Ohrid e retornar a Skopje, para então de lá finalmente partir a Kosovo.

Mairon !!! Me deu uma baita saudade deste lugar,fascinante.Voce não foi na Svt Naum??? Um dia vou voltar.Conheci um rapaz de Tetovo,faz parte de um grupo de danças típicas que roda o mundo.Até hoje nos falamos.Muito obrigada por estes posts sobre Skpje e Ohrid,conforme vc falou ,pouco conhecido por aqui.Quando falei que ia pra Macedônia,meus amigos ficaram com cara de ,nossa,este lugar existe?E amei ter ido!!!
Que coisa legal, Elaine! Eu acabei não indo (ainda!) ao Mosteiro St. Naum, mas um dia ainda voltarei aí numa estação quente e irei!
Bom conhecer um pouco do mundo com vc Mairon,, se não conhecesse os nordestinos daqui…tbm acharia vc parecido com um árabe. ..haha….
Tbm senti que quase se apaixonou ai em Ohrid…
Felicidades sempre em suas viagens pelo mundo e que Deus sempre esteja com vc…
Nossa que delicia de cidadezinha, que fofuras essas ruelas calçadões, esse ar turco tão gostoso. Tudo simples e belo. Magnificas paisagens, belissimas paragens, lindas mesquitas, pórticos, igrejas e fortaleza!…. Um colirio para os olhos que amam a historia e a arquitetura antigas. Linnndas!. parecem verdadeiros postais. Belíssimo lago , montanhas azuladas, nevadas de um beleza impar. e o céu azul-amarelado pelo seu belo ocaso. Linda área verde, Um encanto. Linda região, bela postagem. Adorei. Parabens. Destaque para a paisagem e as guloseimas . Parabens pela escolha dos lugares, pelo bom gosto e estilo; Abraços fraternos.
Parabéns Mairon, pela garra de conhecer pessoas de diferentes culturas e lugares de beleza pura, natural, fico apreciando suas experiências e compartilhando com outras pessoas seu jeito fascinante de nos conduzir por trilhas tão belas. Abraços,
Obrigado, Maeli!! Abraços