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França Île-de-France

Bordejos em Paris na primavera (Parte 5): A Paris gótica e suas igrejas (Notre-Dame, Saint-Sulpice, Sainte-Chapelle, e a Capela da Medalha Milagrosa)

Antes de “gótico” significar o gênero moderno derivado do punk, das pessoas que se vestem de preto etc., o adjetivo referia-se — e ainda se refere — a uma das mais importantes matrizes culturais da Europa.

Gótica, dos godos, foi a cultura artística mais proeminente na Europa ocidental durante a Idade Média. Suplantou as tradições “clássicas” (da Antiguidade greco-romana) e finalmente deu um toque norte-europeu à arquitetura, à arte sacra, etc. Os longos e altos arcos ogivais que caracterizam a arquitetura gótica simbolizam não só a verticalidade, o “olhar para cima”, para Deus, do medievo teocêntrico europeu. Há quem diga que eles se inspiram, também, na própria arquitetura “bárbara” pré-romana, de casas de madeira bem verticais.

Os godos foram um dos vários povos de origem germânica a migrar para oeste, combater Roma, e colonizar muito da Europa Ocidental. Os reinos que foram surgindo na Europa medieval eram frequentemente uma mistura de romanos e “bárbaros”, mas o lado romano  era o único considerado “alta cultura” — até que isso um dia mudou.

A arte gótica surgiu especificamente na França, e Notre-Dame (completada em 1345) é a catedral gótica por excelência. Claro, a arte depois expandiu-se pelos reinos espanhóis, principados germânicos, e até pela península italiana apesar das críticas de que essa arte era um barbarismo. Mas foi aqui na França que ela se desenvolveu primeiro, e onde ainda estão marcos góticos de beleza esplendorosa e grande significação.

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Não se pode vir a Paris e não visitar a Catedral de Notre-Dame.
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Há quem diga que esses arcos ogivais, típicos da arquitetura gótica, foram inspirados primeiro de tudo na própria arquitetura pré-romana dos “bárbaros”.

Brasileiros que vêm à Europa muitas vezes se perguntam: “Por que é que não tem catedral mais antiga, do primeiro milênio do Cristianismo?

A resposta é: Tem, só que elas não tem essa “cara” de catedral a que estamos acostumados. E isso é precisamente porque essa “cara de catedral”, a catedral gótica, tem data e lugar de surgimento, que é a França do século XII. (Notre-Dame começou a ser edificada em 1163.)

Até então, a arquitetura europeia seguia o estilo romanesco, de arcos redondos, e as igrejas eram mais modestas — como você ainda as encontra nos países de fé cristã ortodoxa na Europa do leste (ex. Bulgária, Sérvia). Lá você também encontra catedrais (que, por definição, são igrejas cristãs que são sedes episcopais) mais antigas que o século XII. Já na Europa Ocidental, quase todas essas mais antigas foram, durante a Idade Média, derrubadas e substituídas por grandes catedrais góticas.

Quem melhor retratou esse período de transformação — ao qual os franceses às vezes se referem como les temps des cathedrales — foi ninguém menos que o escritor Victor Hugo, no seu clássico Notre-Dame de Paris, traduzido nos países de língua inglesa ou portuguesa com o título alterado de “O Corcunda de Notre-Dame”.

Embora essa obra seja mais conhecida no Brasil pelo desenho animado da Disney (de 1996) que pelo livro original (de 1831), não deixa de ser um acesso à França da época. (Só acho uma pena que a grande maioria fique só no desenho.)  

A trama medieval gira em torno de Esmeralda, uma jovem e atraente cigana “da rua” por quem se apaixonam o corcunda responsável por badalar os sinos de Notre-Dame, o diácono da catedral, e também de um dos capitães da guarda. Não vou contar como acaba, mas digo-lhes que é um retrato maestral do mundo francês gótico medieval, coisa que só um escritor genial como Victor Hugo poderia ter feito.

Graças à atenção que seu livro trouxe à catedral em sua época, ela foi restaurada e hoje está conservada do jeito que você a encontra neste século XXI, apesar dos seus mais de 800 anos de história.

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Notre-Dame de Paris.
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O interior, com seus elevadíssimos arcos ogivais, típicos da arquitetura gótica. Saiba que desenho de igreja com uma nave comprida e um altar ao fundo (a chamada “cruz latina”) é também invenção desta época. (As igrejas anteriormente eram arredondadas ou em outros formatos.)
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Vãos um tanto escuros na imensa Catedral de Norte-Dame.
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Rosácea. Os vitrais também são um dos elementos da arte gótica.
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Uma das ideias da imensidade dessas catedrais medievais e dos seus arcos compridos é exatamente essa: fazer o cidadão olhar para cima, voltar-se para Deus, e percebe-ser pequeno em comparação.
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A visita a Notre-Dame não tem custo, e não é complicada. Só evite trazer volumes (e.g. mochilas), ou terá que ser revistado.

E, pouca gente no Brasil conhece, mas há também um musical baseado na obra de Victor Hugo. Ele é bastante famoso na Europa, todo cantado, e continua tendo performances todos os anos. Abaixo uma palhinha, com uma das minhas faixas favoritas. 

– “Eu sinto o inferno se abrir sob os meus pés. Eu ponho os meus olhos sobre suas roupas de cigana, e a que me serve orar para Nossa Senhora (Notre-Dame)?“, diz o corcunda Quasímodo. 
“É o diabo que se encarnou nela para desviar os meus olhos do Deus Eterno? Que pôs em mim esse desejo carnal? Desejá-la faz de mim um criminoso?”, pergunta-se o diácono.
Ao que o capitão da guarda completa: “Ó flor-de-lis [símbolo da realeza da França], eu não sou homem de fé. Irei colher a flor do amor de Esmeralda.”

Notre-Dame é inigualável, MAS, contudo, entretanto, todavia, se você gosta de vitrais góticos, não deixe por nada neste mundo de visitar a Saint-Chapelle, uma capela de 1248 que tem os mais lindos vitrais que já vi na vida (e olhe que eu já vi muita coisa).  

Só não faça como eu e venha às pressas, pois há um limite de capacidade de pessoas no interior e uma fila que anda devagar, mas vale a pena.

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A Sainte-Chapelle fica um pouco escondida, mas está ali. A entrada é meio escondida, e junto a prédios oficiais, então é preciso passar por uma segurança. Fica perto da estação de metrô Cité, bem no centro de Paris.
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Arcadas no nível inferior da capela. Ela foi construída pelo rei francês Luís IX, no século XIII, para albergar nada menos que a coroa de espinhos do Cristo, que os franceses crêem terem obtido durante as Cruzadas. Ela hoje está na Catedral de Notre-Dame, e é exibida para veneração na missa às primeiras sextas-feiras de cada mês (ou em todas as sextas da quaresma).
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O esplendoroso segundo andar da Sainte-Chapelle, com seus vitrais.
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Vitrais da Sainte-Chapelle em Paris.
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É deslumbrante — ou até mesmo, como diria a personagem de Arlete Sales, translumbrante.
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Rosácea sobre a porta de saída na Sainte-Chapelle em Paris.

Você fica um tempo extasiado.

Aproveitando a deixa de que estou falando das igrejas em Paris, vale visitar Saint-Sulpice e a Capela Nossa Senhora da Medalha Milagrosa — embora estas duas não sejam góticas.

A Capela Nossa Senhora da Medalha Milagrosa (Chapelle Notre-Dame de la médaille miraculeuse) é comparativamente simples, e pequena. Por razões que eu desconheço, ela é extremamente popular no Brasil. Eu já tinha ouvido falar e vim ver. Como no caso da Sainte-Chapelle, o acesso é lateral por detrás de outros prédios, então a entrada pode não ser muito óbvia, mas procure que você a encontra.

Ao contrário das outras, esta me pareceu uma igreja com mais ar de igreja que de atração turística. Muitas freiras das Filipinas e outros lugares da Ásia movimentavam-se por aqui quando eu vim visitar.

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O belo interior da Capela Nossa Senhora da Medalha Milagrosa, em Paris.

Por fim, deixa eu mostrar a vocês Saint-Sulpice, uma igreja que de repente se tornou mundialmente famosa por ser retratada no polêmico O Código Da Vinci, com a sugestão de que ela havia sido feita sobre um templo pagão, que as inscrições no chão queriam dizer isso e aquilo, etc. (Às vezes as pessoas esquecem que o livro é de ficção.) 

A igreja foi erigida entre 1646 e 1870 em homenagem a São Sulpício, o Pio, um bispo francês falecido no ano 624. (Portanto, não confundir com a palavra suplício.) Ela, muito mais tardia que as góticas, tem uma mistura de estilos, incluindo um pouco de barroco e neo-romanesco.

Quando eu vim era uma manhã cinzenta de chuva, a igreja estava quase completamente vazia, e o seu ambiente de escuridão me deu claramente aquela sensação de “Idade das Trevas”. Ainda que ela não seja medieval, me foi o cenário perfeito para imaginar-me à época do medievo, a depender de velas.

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A Igreja de Saint-Sulpice numa manhã chuvosa de primavera, em Paris.
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O interior da igreja. Sepulcral.
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O altar.
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O notável (e imenso) órgão de Saint-Sulpice. Pouquíssimas pessoas, e muitos recantos escuros e sombrios.

Os bordejos por Paris parecem nunca acabar, mas acabam. Volto no post seguinte com a conclusão destas minhas andanças.

Mairon Giovani
Cidadão do mundo e viajante independente. Gosta de cultura, risadas, e comida bem feita. Não acha que viajar sozinho seja tão assustador quanto costumam imaginar, e se joga com frequência em novos ambientes. Crê que um país deixa de ser um mero lugar no mapa a partir do momento em que você o conhece e vive experiências com as pessoas de lá.

3 thoughts on “Bordejos em Paris na primavera (Parte 5): A Paris gótica e suas igrejas (Notre-Dame, Saint-Sulpice, Sainte-Chapelle, e a Capela da Medalha Milagrosa)

  1. Llinnnnda, histórica, charmosa, encantadora, essa Paris das catedrais e demais monumentos religiosos. Belissimas demonstrações de arte, criatividade, significação e arrojo no esplendor de Notre-Dame de Paris e de la Sainte Chapelle, e na doçura e singeleza de la Notre-Dame de la Médaille Miraculeuse. Maravilhosas expressões de arte e beleza. Um primor. Um espetáculo digno dos artistas que as conceberam. Apesar de não tao charmosa a Igreja de Saint Sulpice tambem se destaca pela sua arquitetura sóbria. Prefiro as anteriores. Beleza de postagem e de imagens.
    Destaque para o drama de Esmeralda, a Belle, magistralmente mostrado pelo imortal Vitor Hugo en Les Miserables, e levada aos palcos com essa maravilhosa encenação e essa imortal música: Belle. Bella. Maravilhosa. nota mil haha. Parabéns, viajante brasileiro. é um prazer viajar com voce..

  2. Mon Dieu!…Quel magnifique spectacle. Magnifique. Impossivel não se emocionar, seja com a musica divina, seja com o simbolismo, seja com as interpretações majestosas. Merveilleux Merveilleux. Linda linda. Um mestre Vitor Hugo assim como quem montou a peça. Perfeita.

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