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China

Visita a um templo taoísta (Wong Tai Sin) em Hong Kong: Conhecendo a religião tradicional chinesa

A religião tradicional chinesa é das mais antigas do planeta, e praticada por mais de 1 bilhão de pessoas. Ainda assim, nós no Brasil (e no Ocidente em geral) quase nada sabemos sobre ela. Não me refiro ao budismo, que é adotado por apenas 15% da população na China. O que três-quartos dos chineses praticam é outra coisa.

Eu muito ouço no Brasil as pessoas dizerem que a China é um “país ateu”. Bobagem. Primeiro, se estivermos falando de uma religião oficial de estado, a China é laica como são o Brasil ou os Estados Unidos (diferentemente de países como Irã ou Arábia Saudita, que têm uma religião oficial: o islã). O Estado chinês inclusive dá reconhecimento oficial a cinco religiões: budismo, islã, catolicismo, protestantismo, e taoísmo (mais sobre este a seguir).

Mas é comum os ocidentais falarem que o povo chinês é ateu, só que isso é um erro de análise. Só se poderia dizer que os chineses “não têm religião” utilizando um conceito estreito, especificamente ocidental, de religião. Grosso modo, seria como dizer que os chineses são analfabetos porque não usam um alfabeto, mas sim ideogramas para escrever. Ou como faziam os europeus colonialistas, que diziam que os outros povos não faziam música, porque música para eles era música clássica europeia. Percebamos um provincialismo grande nisso aí. 

O mesmo se aplica a religião. O que ocorre é que a religiosidade oriental é diferente daquela surgida a partir das religiões abraâmicas — o Judaísmo, o Cristianismo e o Islã (ao menos em suas vertentes dominantes, pois todas essas três religiões também têm braços minoritários, místicos, e que diferem das correntes dominantes nas suas interpretações e práticas). A religiosidade tradicional chinesa talvez se aproxime muito mais da religiosidade tradicional africana, aborígene, hindu, ou dos povos indígenas das Américas.

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Figura de um sábio chinês no templo Wong Tai Sin, em Hong Kong.

A religião tradicional chinesa é um corpo de práticas e crenças que, ao longo dos séculos, veio a combinar conceitos do confucionismo, do taoísmo e do budismo, além de elementos populares nas várias regiões da China. Trata-se de uma religião muito mais solta (nada comparada ao rígido e específico “credo” católico, por exemplo, que todos têm de repetir juntos a cada missa), mas identificam-se em geral quatro crenças fundamentais:

  • Tian, comumente traduzido como “céu”, e que denota uma realidade superior, cujo ordenamento está relacionado ao da nossa. Confúcio (551-479 a.C.) descrevia o Tian como uma espécie de “Providência”, um regimento maior e que governa a vida das pessoas. Os taoístas, por sua vez, veem o Tian como uma realidade complementar à da Terra — como uma realidade espiritual que completa esta material terrestre, usando o seu arquétipo de complementaridade, o Yin Yang. A diferença é que os chineses não personificam essa Providência maior como os judeus, cristãos e muçulmanos fazem.
  • Qi, a energia vital que em tudo flui. Nela se baseiam a acupuntura (e toda a medicina tradicional chinesa), as artes marciais, o feng shui, e praticamente todas as práticas chinesas tradicionais.
  • Jingzu, a veneração aos ancestrais. Na cosmologia chinesa, quem morre não acaba, mas passa a outro plano de existência (em algumas interpretações, vai para o “céu”, integrar o plano superior do Tian, embora alguns falem também em planos inferiores, moralmente baixos). No geral, seus ancestrais falecidos se tornam portanto um canal familiar entre você e aquela realidade superior. São feitas orações, oferendas de frutas, e acesos incensos (em geral um pra cada entidade espiritual, daí os chineses geralmente acenderem molhos enormes de incensos, em vez de só um.)
  • Bao ying, uma convicção na justiça moral do Universo: “A aquele que faz o bem, o céu envia todas as suas bênçãos. A quem faz o mal, todas as calamidades“, diz por exemplo um texto da antiga Dinastia Zhou (1046-256 a.C.). Dá pra traçar um paralelo com a noção hindu de karma ou o que se chama comumente no Brasil de “Lei do Retorno”. 

Tudo, segundo a crença tradicional chinesa, está ajustado a um ordenamento natural. A polaridade entre yang (“ação”) e yin (“receptividade”) nada mais é do que uma forma de descrever esse ordenamento. E o feng shui, a busca por harmonizar-se com essa ordem natural.

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Chineses acendendo incensos no templo Wong Tai Sin, em Hong Kong. (Alguns são bastante grandes!)
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Dragão chinês na entrada do templo Wong Tai Sin. Na China, o dragão é um antigo símbolo de força e de sorte. (As partes mais douradas na imagem são onde as pessoas esfregam a mão, para dar sorte.)

Como — segundo essa tradicional cosmologia chinesa — tudo está interligado, quando você tem “sorte”, isso não é uma obra do acaso, são “bênçãos” por agir em harmonia com o Universo. Daí, meu caro, muitos chineses ao longo dos milênios se debruçaram para desvendar como é que se age em harmonia com o universo

O Confucionismo é a escola estabelecida pelo filósofo Confúcio (551-479 a.C.), e desenvolvida ao longo dos últimos 2500 anos por suas gerações de seguidores. Ele, no entanto, dizia-se um mero organizador da sabedoria vigente em sua época, a da Dinastia Zhou. Há uma ênfase grande na ética individual, através do aprimoramento de suas virtudes, assim como numa organização social harmônica. Se a China pouco aventurou-se em colonialismos estrangeiros, embora tivesse durante a maior parte da História uma tecnologia superior à europeia, credita-se isso em grande parte à tradição confucionista de que você deve “conquistar” os outros pela virtude, fazendo-os querer ser como você, e não pela violência.   

O Taoísmo, por sua vez, é uma vertente mais voltada à “leitura” dos ciclos da natureza para adaptá-los à vida humana. Seu maior nome é Lao Tsé (“velho mestre”), que teria escrito o Tao Te Ching no século IV a.C., o qual pode ser traduzido como “O livro do caminho da virtude”. Perceba-se, portanto, que ao longo da História os chineses procuraram sempre consolidar lições para se ter uma vida realizada.

Novamente, nessa concepção, como tudo faz parte de um ordenamento cósmico, os chineses crêem que oráculos dos mais variados tipos podem explicar o que está ocorrendo em sua vida, prever o seu futuro, etc. Não é à toa que foram os chineses que inventaram o tal “biscoito da sorte”, aquele que vem com uma mensagem para você (que, na cosmologia chinesa, é exatamente a mensagem que você naquele momento precisava ouvir).

Como os japoneses e coreanos, os chineses estão sempre a averiguar o que se passa em sua “sorte”. Elas levam isso a sério. Não foi à toa que as Olimpíadas de Pequim ocorreram em 2008 e começaram às 8:08 da noite do dia 08/08: o número 8 é considerado o número da prosperidade na numerologia chinesa.

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Fila para consultar-se com um oráculo no tempo Wong Tai Sin, em Hong Kong. Há de vários tipos: leitura de mãos, astrologia, etc. 

Uma das formas mais habituais de fazer o oráculo individualmente na China é o Kau Cim, as varetas com mensagens para você. Normalmente, você sacode o conjunto inteiro diante do altar de um templo, após fazer suas perguntas mentalmente, e a varinha que você tirar dará a resposta que você precisa.

Reparem o pequeno vídeo abaixo, com as pessoas a fazer isso no templo Wong Tai Sin, em Hong Kong. (Esse som que você escuta são das pessoas sacudindo as varinhas. Ao fim, você verá também outras orando com molhos de incensos nas mãos.)

Quando eu cheguei ao Wong Tai Sin no meio de Hong Kong, já havia centenas de pessoas para lá e para cá. Na China, você logo se habitua a quantidades grandes de gente. A estética também é de cores fortes, nada a ver com os tons pastéis, preferidos pelos europeus. Aqui comandam o vermelho e o amarelo.

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Fachada de entrada do templo Wong Tai Sin em Hong Kong, com os prédios da cidade visíveis atrás.
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As pessoas fazendo seus oráculos e orações sob as lamparinas de papel.
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Caso você esteja a se perguntar o que há nos altares, a cosmologia chinesa tem uma infinidade de entidades diversas. Ela lembra, de certa forma, o Hinduísmo com sua imensa quantidade de personagens distintos, com variações regionais. (No entanto, chamar isso de “politeísmo” seria uma designação um tanto grosseira. Afinal, o próprio Cristianismo tem um sem-número de santos, anjos, beatos, arcanjos, entre outros.)
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Altar de uma entidade guerreira com um Yin Yang de rochas brancas e negras no chão.

Aí vem gente me dizer que chinês não tem religião. Tá bom…

Uma curiosidade adicional legal neste templo são estátuas dos 12 animais do zodíaco chinês (Rato, Boi, Tigre, Coelho, Dragão, Cobra, Cavalo, Cabra, Macaco, Galo, Cachorro, e Porco). Cada ano é regido por um desses animais, em ciclos que seguem essa ordem aí. 

A astrologia, tradicionalmente, é para os chineses nada mais do que mais uma manifestação dessa ordem cósmica.

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Pátio com estátuas dos 12 animais do zodíaco chinês, em formas humanizadas. (Da esq. para a dir.: Cachorro, Galo, Macaco, e Cabra.)
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Cavalo, Cobra e Dragão.
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Com o meu signo chinês: o Rato.

Tirei minhas fotos, e vi incontáveis chineses circulando com incensos, fazendo preces, e sacudindo as varinhas da sorte. Tudo isso, é claro, você compra nas inúmeras barraquinhas, que também vendem pulseirinhas para ter sucesso nos estudos, para chamar dinheiro, para chamar amor, para melhorar a saúde, etc. Tudo hoje é comercializado, meus queridos.

(Caso alguém esteja a se perguntar pra onde vai o dinheiro, vale saber que tanto os vendedores quanto os templos costumam ser independentes. Um tempo normalmente não está institucionalmente vinculado a outro. Cada um pertence a uma organização às vezes mantida por certas de famílias, etc. Nada comparado às igrejas cristãs, que constituem verdadeiras redes internacionais.)   

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As muitas vendinhas de traquitanas, é claro.
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Aqui quem está solteiro pode amarrar um cordãozinho vermelho do lado da estátua da moça ou do rapaz, a depender do que você queira. No centro, aquele velhinho com a lua atrás é uma espécie de Cupido chinês.

Chegue antes das 16h e não deixe de visitar o Jardim do Bom Desejo (Good Wish Garden), parte do complexo do templo. Como a religião tradicional chinesa enfatiza a harmonia com o ambiente, e o Taoísmo em particular enfoca a natureza, é muito comum que os templos chineses tenham jardins adjacentes. O que é uma maravilha, pois normalmente são ambientes muito agradáveis, bonitos, e cheios de vida (inclusive com peixes na água).

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Garota no templo Wong Tai Sin.
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Menino olhando o leão.
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O Jardim do Bom Desejo, anexo ao templo Wong Tai Sin.
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De outro ângulo.

Sentei-me ali um tempo. Vi crianças correndo pra lá e pra cá com os adultos a observar (e a reclamar que não corressem tão depressa); vi um tio acender um cigarro enquanto relaxava e observava as pessoas; e ouvi o som da água caindo ali naquele laguinho.

Apesar de Hong Kong ser uma metrópole onde a agitação nunca termina, há recantos que ela parece nunca alcançar. Vai ver o feng shui está certo.

Mairon Giovani
Cidadão do mundo e viajante independente. Gosta de cultura, risadas, e comida bem feita. Não acha que viajar sozinho seja tão assustador quanto costumam imaginar, e se joga com frequência em novos ambientes. Crê que um país deixa de ser um mero lugar no mapa a partir do momento em que você o conhece e vive experiências com as pessoas de lá.

One thought on “Visita a um templo taoísta (Wong Tai Sin) em Hong Kong: Conhecendo a religião tradicional chinesa

  1. Nossa que maravilha esses lugares, templos, lagos jardins, flores peixinhos pontes, telhados vermelhinhos, belas e simbólicas esculturas, tudo isso sob essa festa de cores e luzes que são esses gostosos recantos. Gostossissimos. E que magnifica descrição, meu jovem das diversas correntes de pensamento filosofico-religioso. Adorei. Amei ver tudo isso e experienciar essa simplicidade quase infantil com que as pessoas se relacionam com o absoluto. Maravilha. Imperdíveis essas visitas olhares e releituras da civilização e da cultura deste Oriente tão misterioso, pleno, e ao mesmo tempo belo e simples, Maravilha. Atraente, envolvente e gostoso de ver e de participar. Parabéns, pela escolha do local, imagens e pelas referencias. Magnificat.

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