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Malásia

Georgetown, Penang, Malásia (Parte 2): Comidas, curiosidades, e templos

(Continuação de Georgetown, Penang, Malásia: Onde as culturas chinesa, hindu, e malaia islâmica convivem)

Estamos em Georgetown, na ilha de Penang, Malásia, quase sob a linha do equador. É como acordar com aquela umidade do norte do Brasil, só que com cheirinho de incenso. Cedo os dois homens que geriam o albergue já haviam acendido o pequenino altar chinês de bons auspícios no chão, ao lado da recepção.

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Altarzito ao lado da mesa de recepção no albergue onde fiquei, em Penang. Temos até até uma garrafa de Fanta morango como oferenda (coitados dos espíritos…). Acho que vale qualquer coisa, sendo vermelho.

O meu café da manhã era com os chineses. Perto do meu albergue, num boteco do outro lado da rua, chineses de todas as sortes reuniam-se nas mesas de bar de manhã para comer macarrão no caldo e tomar algo. Eu fui ali o único não-chinês nas manhãs em que ali fui. 

O “café da manhã”, confesso, era das gororobas mais perversas que já encontrei em tal horário. Lor mee, eles chamam o prato mais característico do lugar: um macarrão chinês num molho escuro e grosso cujo conteúdo eu não compreendi — nem quis compreender. 

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Eis o meu café da manhã: Lor Mee, uma sopa-misturão que os chineses aqui da Malásia adoram comer de manhã cedo, para quebrar o jejum da noite. Não me perguntem o que tem dentro. Nem eu soube perguntar, nem eles souberam me dizer. Na colher, pimenta. E aquilo ali no copo, tolinho, não é limonada nem nada pra rebater: é alho pra botar dentro da sopa.
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Bom apetite pra vocês também. (O caldo preto é viscoso e grosso. Era uma coisa linda. Era preciso mesmo muito alho e pimenta para deglutir.)
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O boteco-meu-de-cada-dia de manhã era aquele ali da esquina, com as motos estacionadas.
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O meu recanto.
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Eles aqui em Penang têm uma fixação com o tal do White Coffee (“café branco”), que nada mais é do que um razoável café com leite. Vinha a calhar às manhãs, junto com a gororoba chinesa pra ajudar a descer.

— “Thú Tâti!“, me gritava o tio, amistoso, o preço do café branco. (2,30 ringgits da Malásia são coisa de R$ 1,60)

Eu ali sentado, saboreando o café, me punha a observar o estado de precariedade material de tantas pessoas. (Melhor ainda é notar que muitas delas seguramente são ótimas pessoas.) O senhor que me servia tinha cara crônica de beberrão, mas era sóbrio. Acertava falar as coisas, e sabia até uma basicão de inglês. Camisa maior que o próprio tamanho, com as marcas dos ombros já caindo pro braço e a camisa chegando até as coxas, onde havia bermuda, e um chinelão de tiozão, folgado saindo do pé. 

Um outro, mais velho, eu não ouvi falar e tinha um aspecto de quem era doente mental. Se ele estivesse numa cama e eu lhe dissesse que ele tinha 100 anos, você acreditaria. Fazia dó. Andava de boca aberta, a levar xícaras de café sem muita firmeza na mão, a bebida já vazando pro pires conforme ele andava balançando. Bem magro, um boné desses que você ganha de brinde na cabeça, e pés enrugados que lembravam os do Gollum.

Noutra mesa, uma velhinha dum casal idoso me olhava com uma cara bondosa de “Quem é esse diferente aqui?”. 

Já a senhora funcionária não creu que a gororoba do Lor Mee era pra mim. Viu todos (os chineses) comendo, apenas a minha mesa ainda sem comida, e foi perguntar de novo ao cara pra quem era o prato. Não imaginou que seria eu.

O dono de tudo era um chefe de ar rígido que ficava permanentemente por detrás do balcão, onde um daqueles gatos dourados da sorte chineses balançava a pata sem parar. Um cigarro na boca (do chefe, não do gato), as mãos e os olhos a contar dinheiro, e logo depois a atenção a novamente percorrer o bar com os olhos. Mas não parecia gente ruim. Em qualquer lugar eu reconheceria aquele olhar endurecido de idealista decepcionado.

Eu dali, de estômago cheio, iria visitar o Khoo Kongsi, um lindo templo chinês no centro histórico de Georgetown.

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O templo chinês Khoo Kongsi pertence ao clã chinês dos Khoo, chineses originários da região de Chenghai. O templo data de 1835, e é um templo da religião tradicional chinesa (ver aqui se você não sabe do que eu estou falando).
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Sala lateral com as pequenas tábuas onde estão gravados nomes de ancestrais desta comunidade chinesa, ou de deidades taoístas, ou ainda de virtudes. Ali são feitas as orações, para entoar-se nessa energia.
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O leão é uma figura tradicional no folclore chinês (pois naquele passado remoto de milênios atrás ainda havia leões de verdade na Ásia; hoje eles estão restritos à África). Aqui um como guardião do templo.
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Ornamentos na entrada.
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Um sábio guardião. Ornamentos em pedra misturando-se aos detalhes dourados.
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Interior do templo, com ali um altar.
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Flores, incensos e velas, com as tradicionais tábuas espirituais ali atrás.
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Lamparinas chinesas e gravuras nas paredes.
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O templo Khoo Kongsi, em Penang.

Os “chineses dos estreitos“, como eles aqui são chamados em referência aos Estreitos de Malacca (ver post anterior), são consideravelmente mais simpáticos que os chineses da China.

Se você, como eu, já experimentou da habitual rudeza dos chineses, saiba que isso se tornou característico dos chineses da República Popular da China, e eu diria que se deve à realidade socio-política de lá, da China comunista, desses últimos 70 anos. Os chineses que você encontra em Taiwan, Singapura, ou aqui nos estreitos de Malacca na Malásia são bastante diferentes (em termos de comportamento).

(Nós brasileiros temos que desaprender uma coisa equivocada que pusemos na cabeça ao longo da vida, e que a escola ou o dia-dia no Brasil nunca esclareceram. Temos a ideia dos Estados-Nação, mas grande parte dos países não são assim. Nem todo mundo na Malásia é Malaio. Podem até ter passaporte e documentação malásios, mas nem são da etnia malaia e nem falam a língua malaia. São indianos tâmil, “chineses dos estreitos”, tailandeses, birmaneses, e por aí vai.) 

Inclusive, foi aqui nos estreitos que os chineses fomentaram a Revolução de Xinhai, que derrubou a última dinastia imperial da China em 1912 e veio a proclamar lá uma república. Sun Yat-Sen, líder republicano que queria um país livre da dominação estrangeira e também do absolutismo monárquico, por muitos anos viveu aqui em Penang, e sua casa hoje é aberta à visitação.

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Casa onde viveu Sun Yat-Sen por uns anos. Como estamos nos trópicos, eles aqui em Penang têm o costume de ter muitos espaços abertos e com plantas dentro.
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Sun Yat-Sen foi um líder revolucionário chinês que, em 1912, conseguiu a derrubada da última dinastia imperial chinesa e a proclamação da República da China.

Atendeu-me aqui um simpático chinês teatralmente extático, de olhos grandes e expressivos, a falar como um personagem de teatro. Foi uma figura. (Parecia que ele tinha tomado alguma coisa.)

Me ofereceu um chá, e eu aceitei. (Não, não houve barato.) Fiquei ali bebericando chá verde na xicrinha enquanto lia sobre o pai do republicanismo chinês moderno. 

A República da China, na verdade, ainda existe. Ela se instala em 1912, mas já em 1927 inicia-se uma guerra civil entre os republicanos e os comunistas, estes liderados por Mao Tsé-Tung. Como os comunistas foram mais efetivos em ajudar a repelir os invasores japoneses durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), os republicanos — então liderados por Chiang Kai-Chek — foram derrotados e escorraçados (não sem antes levar tesouros imperiais consigo) para a ilha de Taiwan, onde permanecem até hoje. Formalmente, o que temos portanto são dois governos chineses: o da República da China, que governa apenas a ilha de Taiwan, e o da República Popular da China, que governa todo o restante. Na letra da lei, não são dois países, pois Taiwan sequer tem representação na ONU

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Suando na casa do Sr. Sun Yat-Sen.
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Mobília fina de época, feita com madeira de lei e mármore. Igualzinho ao conjunto que eu tenho lá em casa.
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Chazinho na casa do Sr. Sun.

Como chá não enche barriga, eu dali fui almoçar. Era hora de mudar de cultura.

Há, no centro histórico de Georgetown, uma bela rua chamada de Rua Armênia (Armenian street), onde há muito tempo moravam comerciantes armênios. (Pra você ver o cosmopolitismo deste lugar.) Eles não vivem mais aqui, mas ainda é possível ver arquitetura de inspirações europeias. 

Achei ali um simpático restaurante de comida malaia, que é praticamente idêntica à indonésia, portanto deliciosa. Pedi um arroz frito (nasi goreng) com tofu e legumes, acompanhado de um notório suco de noz-moscada que eu nunca havia experimentado. É bom, adoçado, com um leve travo da noz-moscada no gosto. Coisas daqui.

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Suco de noz-moscada, ali naquelas garrafinhas. (Pra você que achou que já tinha visto de tudo.)
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Noz-moscada, pra quem nunca tinha visto o fruto inteiro. Ela é nativa daqui do Sudeste Asiático. Usada na Europa desde o tempo dos antigos romanos, ela sempre foi uma das mais cotadas especiarias do oriente. Foi por ela e outras que os portugueses buscaram seu caminho para as Índias.
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Meu lindo, maravilhoso prato de nasi goreng, o arroz frito à moda dos malaios e indonésios, com especiarias e — neste caso — tofu e legumes. Delicioso, ali com minha garrafinha de suco de noz-moscada e, ao longe, a simpática tia malaia que me atendeu.
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Casas de arquitetura europeia na Rua Armênia, em Georgetown, Penang.

Hora da siesta. As andanças para conhecer Penang continuam.

Continua em Georgetown, Penang, Malásia (Parte 3): No Meio do Povo nestas Terras Tropicais.

Mairon Giovani
Cidadão do mundo e viajante independente. Gosta de cultura, risadas, e comida bem feita. Não acha que viajar sozinho seja tão assustador quanto costumam imaginar, e se joga com frequência em novos ambientes. Crê que um país deixa de ser um mero lugar no mapa a partir do momento em que você o conhece e vive experiências com as pessoas de lá.

One thought on “Georgetown, Penang, Malásia (Parte 2): Comidas, curiosidades, e templos

  1. Nossa!.. que coleção maravilhosa de templos de uma beleza difícil de descrever, Sinto-me encantada com a graça, o esplendor, o jogo de cores, a arquitetura, a leveza, a riqueza de detalhes e a alta significação dessa cultura/religiosidade milenares e que salta aos olhos dessa forma encantadora. Lindos templos, Ja vi belos templos mas esses se afiguram como impressionantes e diferentes dos ja vistos, Um primor.
    Belíssimos os moveis, de muito bom gosto, Bela residencia, Muito bem conservada. Muito charmoso esse habito de espaços vazios com plantas, dentro da área da residencia. O calor explica,
    O senhor está muito bem e parece parte do ambiente, hahaha .
    Desculpe-me mas nao gostaria de experimentar aquelas comilanças que o senhor mencionou e ingeriu, Corajoso. Não me pareceram muito apetitosas. haha.
    O recanto lembra uma historia que soube de algumas pessoas numa bodega numa certa capital da America Latina, haha mas nada tem a ver consigo, meu jovem viajante, haha
    Afora a brincadeira, muito bonita a região e a postagem está magnifica, Parabéns, Melhor do que viajar assim, só ao vivo.

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