[Continuação de Georgetown, Penang, Malásia: Onde as culturas chinesa, hindu, e malaia islâmica convivem, e Georgetown, Penang, Malásia (Parte 2): Comidas, curiosidades e templos.]
Pelas ruas da colorida Georgetown você encontra de quase tudo. Acho que já dei a entender isso mostrando a grande mistura de religiões aqui e alguns exotismos curiosos, como suco de noz-moscada. Era hora de ir mais a fundo na cidade, vendo mais dos seus tons, e não há maneira melhor de fazer isso que misturando-se ao povo.
Após o meu religioso café da manhã chinês no boteco em frente ao meu albergue, hoje eu cruzaria com fundamentalistas islâmicos e faria o corte de cabelo mais barato da minha vida com cabeleireiros hindus em Little India. Sem me esquecer, é claro, da massagem chinesa que vi feita com faca de açougueiro.

Eu já havia mostrado a Mesquita do Capitão Keling, da foto inicial do post. Ela não é a única, mas é a mais central e cênica de todas as mesquitas aqui em Penang, portanto passei diante dela diversas vezes.
Foi numa dessas que dois senhores de hábito branco islâmico e barbas de salafistas (aquela barba comprida sem o bigode, adotada pela linha islâmica salafi, ultra-conservadora), vendo-me com cara de árabe, cumprimentam-se em árabe ao passar. O clássico salam aleikum (“a paz esteja com você”). Confirmei com a cabeça respondendo embolado pois eu não sei pronunciar direito o wa-aleikum salam (“e com você a paz”). Passei.
Mantive meu disfarce árabe e entrei na mesquita (normalmente restrita aos muçulmanos), vi seu atapetado e paredes brancas relativamente simples (os interiores de mesquitas são quase sempre bem básicos), mas não era possível tirar fotos.


Meu rumo era Little India, a coleção de quadras onde os indianos de Penang se concentram. É uma versão mais organizada e limpa da Índia real. Aqui são quase todos indianos Tâmil, do estado de Tamil Nadu, que falam a língua tâmil e praticam sua versão regional do hinduísmo.
Foi aqui que busquei meu corte de cabelo — por uma razão muito prática e não preferência cultural: o cabelo dos indianos é mais parecido com o meu. Chinês e malaio, com aqueles cabelos ultra-lisos de asiático, poderiam acabar fazendo eu me arrepender.
Sintam o ambiente.
Cortei o cabelo com os tâmils, e ganhei até massagem ayurvédica na cabeça perto do final. No final mesmo, o cara escuro e de bigode, mas que devia ter a minha idade, virou o meu pescoço, como quem torce o de uma galinha, e trrrrá, acho que estalou todos os ossos da minha nuca, fazendo aquele ruído dentro do crânio. Eu vi a hora de ele me matar. Depois estalou tudo outra vez virando o meu pescoço pro outro lado. Não deu uma palavra. Parecia parte da rotina. Entreguei os meus 7 ringgits (equivalentes a 6 reais) e tive provavelmente o corte de cabelo mais memorável da minha vida.
Não há grandes templos hindus aqui na Little India de Georgetown, mas acho que esta é uma boa ocasião para mostrar uma celebração tâmil que filmei em Kuala Lumpur, poucos dias depois. Dá uma deixa do que é o hinduísmo dos tâmils, com seus tambores, cornetas com som de elefante, e seus sacerdotes de saião distribuindo um unguento bento pra os fiéis passarem na testa. (Pra você que não sabia, o hinduísmo é pleno de variações regionais.)
Foi ainda na inocência de Little India que os islâmicos salafistas me acharam de novo. Caminhavam em par, tais quais Testemunhas de Jeová, com um folder em mãos, e me pegaram.

Falaram-me uma coisa em árabe que eu não compreendi, ao que então me perguntaram em inglês de onde eu era.
— “Brasil“, respondi amistoso.
Iluminaram-se com tranquilidade. “Cristão, hm? No Brasil em geral as pessoas são cristãs, não é?”. Ao que eu confirmei, um deles vem animado: “Cristianismo, islã, dois livros mas a mesma coisa, mesmo caminho”. Ora se eu visse essa disposição à harmonia com tanta frequência, e não por interesse.
Abriram então o folder pra me mostrar fotos de escolas islâmicas para as quais estavam atrás de doações. Eu, já tentando desconversar, perguntei se eles eram dali. Não, do Paquistão. Escola islâmica no Paquistão. Oi? Aquele antro de fundamentalismo? Neem.
Com o meu jeito boa-praça, eu fui perguntando o que eles faziam ali, disse que tinha achado a mesquita bonita, etc. Vendo que eu estava enrolando, um deles voltou ao ponto: “Sua doação”. Estava num tom que quase parecia voz de assalto. Eu, ainda assim, desfiz a coisa e disse que quem sabe numa outra hora. Entenderam rápido, fecharam o folder com fotos e supostos documentos sobre a tal escola, e se foram.

Dali saí a circular pela cidade e a ver, finalmente, a costa. (Afinal, eu lhes disse que Penang é uma ilha.) Não pensem em praia, mas numa região portuária equatorial, com um mar muito pouco atraente.








Essa é a Malásia do povo, não a que você vê no dia do Grande Prêmio da Fórmula 1.
À noite, fui jantar num pequeno restaurante chinês — este mais arrumadinho que o boteco das manhãs —, onde fiquei de papo com o funcionário. Como eu já lhes disse, estes chineses dos estreitos são deveras mais simpáticos que os chineses da China. (Eles aqui não passaram pela supressão e hipercompetitividade da vida das últimas décadas lá na China, então têm um astral diferente.)
Ele perguntou de onde eu era e identificou-se como um chinês Hakka. Pra você que não está familiarizado, há diversas etnias chinesas, não uma só. A maioria dos chineses aqui dos estreitos (inclusos os de Singapura) são Hakka, Hokkien, ou Cantoneses — cada um deles com sua língua própria que é diferente do mandarim. Boa sorte. (Se você tiver alguma curiosidade em saber qual a diferença nas línguas, pode ver este vídeo aqui.)
Foi ele quem me explicou o significado das plaquetas dos templos chineses. Eu perguntei como era a vida com tantas religiões e culturas distintas aqui, ao que ele respondeu franco e sorrindo: “Aqui todo mundo convive bem. Os únicos que não se entendem, desculpe dizer, são os cristãos e os muçulmanos”.
Encerro este post com um animado evento noturno de folclore chinês a que fui no templo Khoo Kongsi (o mesmo cuja visita diurna eu mostrei no post anterior). Tambores, comidas de rua, e danças folclóricas, tipo aquelas — que você talvez já tenha visto em algum filme — com gente na fantasia de leão ou dragão. Confiram as fotos e vídeos abaixo. Até a próxima.

Que rufem os tambores.



Deixo vocês por hoje com a dança chinesa do leão.
Conclui a seguir em: Georgetown, Penang, Malásia (Parte 4): Mansões coloniais e templos budistas birmanês e tailandês
Que ilha maravilhosa, que manifestações religiosas magnificas, sobretudo a dança do leão, a do dragão, os tambores com um certo ”ar”/toque misturado de Olodum e de samba de roda. Interessantissimos. Coloridos, movimentos, cenários, òtimos.
Esse templo iluminado à noite, com suas nuances e jogo de cores, está esplendoroso. Magnificat, Perfect, Impressionantes essas manifestações.
Essa mesquita central e fenomenal. Mais bela que a de Casablanca no Marrocco, Amei o estilo. Linda, principalmente na foto que abre a postagem, quando iluminada. O jogo de cores e tons das luzes é muito bonito e ganha um belo efeito.
Interessante tambem a semelhança entre esse estilo do palacio do governo ai e a arquitetura colonial portuguesa, pelo menos no NE do Brasil. Muitos pontos de semelhanças. O mesmo não se pode falar do mar. As praias brasileira, em particular do NE estão entre as mais belas do mundo.
Precisa ser visitada Penang. Muito bonita. Fiquei encantada,
Quanto às comilanças, beberanças, massagens e cia, meu amigo, com direito a torcedura de pescoço a la filme de terror ou a cutelo hahaha, meu amigo, reconheço a sua coragem. Não contem comigo para tais experiencias hahah. Não contem com isso hahaha.
A cidade tem suas semelhanças a algumas conhecidas como Puño, Juliaca e outras. O seu povo tambem parece com alguns do SE asiático de outros paises como Cambodja e Vietnan. Afinal estao perto. Muito interessantes essas semelhanças. É isso ai. viajar é muito bom. Adoro essas postagens. Divertidas, instrutivas e alegres. Vamos que vamos. Que venham mais belezas.