Continuação de Crônicas em Samoa, Oceania (Parte 5): Da Cachoeira de Afu Aau aos Alofaaga blowholes
Após uma semana em Samoa, era hora de partir. A minha zarpada, contudo, não seria muito rápida. Eu hoje de manhã precisava tomar um ônibus até o cais, depois um ferry de volta à ilha de Upolu (a principal), e ainda pernoitar em algum lugar perto do aeroporto para tomar o meu voo às 7 da manhã do dia seguinte. Uma odisséia, não de volta para casa, mas de volta aos ares.
Após três noites no hotel em Savai’i eu já me sentia quase uma celebridade, parte da gangue, com cada um passando a me reconhecer pelo nome, me cumprimentando animadamente, etc. Acho que, se eu acertasse a subir num coqueiro e a pegar peixe no mar, já estaria digno pra casar e ficar aqui em Samoa.


Tomei um ônibus após o café da manhã até o cais, e qual foi a minha surpresa ao perceber que — pela primeira vez na vida — eu havia me esquecido de devolver a chave do hotel. Ela ainda estava no meu bolso, apesar de o chaveiro ser bem grande. Só Freud explica.
Se eu tomasse um outro ônibus de volta, perderia esse ferry e o arranjo que fiz para ser apanhado na outra ilha pelo pessoal do hotelzinho de beira de estrada que eu reservara para pernoitar antes do aeroporto. Rodei, virei tentando raciocinar o que fazer, e avistei um casal de europeus que acabava de chegar no ferry. Perguntei se eles por acaso iam para o Savaiian Hotel, já que possivelmente havia novos hóspedes chegando nesse ferry.
“Não, ainda estamos procurando. Não fizemos reserva ainda.“, respondeu-me o rapaz irlandês sob o olhar da sua namorada alemã.
Meus olhos brilharam e eu fiz o marketing mais rasgado que pude — porém sincero — do hotel onde eu havia ficado. Resultado é que, por generosidade, eles toparam ir dar uma conferida lá e levar a chave pra mim. Eu nunca descobri se eles realmente foram.
Meu caminho era outro. As águas do Estreito de Apolima estavam ainda mais azuis hoje, com o sol.

De volta ao aconchegante cais que já era conhecido meu de uns dias atrás, pus-me a esperar pelos fulanos que supostamente viriam me apanhar.
Não vieram. O lugar chama-se Transit Motel, e se dedica quase que exclusivamente a quem está mesmo em trânsito pelo aeroporto nas horas erradas. Digo o nome porque alguém pode ter a mesma necessidade que eu (e também para que saibam que não devem contar muito confiados com esse traslado gratuito que eles oferecem).
Eu fiz o que meu deu na telha: fui a pé pela beira da estrada para o tal motel, aproveitando-me de que ele não era tão distante (daí o traslado ser gratuito).

O motel aí, como vocês talvez imaginem, era chinfrim. (Mas as opções outras eram todas hotéis 5 estrelas que eu não me dispunha a pagar para uma mera noite sozinho antes de pegar o avião.)
Era começo da tarde, e uns homens folgadões me atenderam com ar de preguiça como se eu estivesse a perturbar sua sesta. Foram chamar o chefe, que pelo visto estava a dormir. Alguns minutos depois, aparece ele com cara de sono. Eu informei que eles haviam me dado bolo no traslado que não existiu, ao que ele me olhou com a cara confusa, como quem escuta uma pergunta difícil de manhã quando acaba de acordar. Olhou para um dos outros que estavam plantados ali sem fazer nada, trocaram umas palavras em samoano, e me respondeu um “Sorry” letárgico que me fez ter vontade de rumar a mão na cara dele — como troco pelo bolo e pra ver se ele acordava.

O “dormitório para mochileiros” é mais barato (saiu-me por 40 talas, versus 75 dos quartos), mas parece um estábulo sem feno. Um galpão de cimento sem revestir e telhado de zinco. Por sorte, havia pelo menos telas contra mosquitos nos basculantes que serviam pra arejar.
Como eu não tinha nada pra fazer, fui ao aeroporto de tarde para medir a distância e me tirar a limpo a informação de que era preciso pagar uma taxa de partida (departure tax), o que não é incomum nesses países pequenos e pobres. Eu tinha que calcular para o que me sobrava de talas, a moeda samoana.
Eu nunca antes havia ido a um aeroporto a pé. Só em Samoa. Segui pela beira da pista no que deveria durar não mais que 45 min, nada do outro mundo. Antes de chegar, no entanto, um taxista passou me oferecendo carona. Confirmei que seria mesmo grátis, e embarquei. Foi grátis mesmo, não houve malandragem.
Vendo o aeroporto de Samoa pela primeira vez à luz do dia, avistei a expansão que trabalhadores chineses estão fazendo. Critica-se a China, mas o Ocidente deixou muito os países subdesenvolvidos ao léu e explorados, falando um blablablá de “ajuda ao desenvolvimento” sem de fato fazer muita coisa. Espaço que a China está preenchendo.

“Talofa”, falou-me animado quando eu passei o chinês de macacão cinza e capacete de peão de obra — praticamente um figurante vivo daqueles antigos seriados japoneses, em que o monstro gigante atacava a plataforma de petróleo ou outra obra cheia desses trabalhadores. Eu caminhava já de volta ao motel após comprar uns lanches para jantar e verificar que a departure tax está mesmo incorporada à passagem aérea (ao contrário do que diziam alguns sites desatualizados).
No caminho, voltei conversando com um rapaz samoano que saía da obra e me cumprimentou com um “Hello, sir!” tranquilo, como se eu fosse algum colega de trabalho e ele me visse todo dia. Caminhamos na beira da estrada enquanto ele me contava sobre a expansão do aeroporto. A afabilidade de muitas pessoas aqui é a mesma que encontramos na América Latina.
Eu já me preparava para refazer aquele trajeto na madrugada seguinte, antes mesmo de o sol nascer, e com 30kg de bagagem nos ombros. Não seria assim um deleite, mas era o jeito. Foi quando os dorminhocos arrependidos do motel resolveram me oferecer uma carona de graça para a manhã seguinte. Eu, já cioso do bolo recebido, marquei um horário com tempo o bastante para poder ainda ir a pé se eles me deixassem na mão outra vez à hora do meu voo.
Há um lado muito “casa da mãe Joana” na cultura social samoana. O cara me acordou 4:30 da manhã e acordou todo mundo no quarto com a luz e o conversê sem a menor cerimônia, como já havia feito na noite anterior quando trouxeram ocupantes novos. É um negócio um por todos e todos por um. Não há muito aqui essa história do seu espaço individual, dos seus acertos individuais, da sua individualidade. Você é um no conjunto, e é pra seguir o compasso do conjunto.
Por outro lado, eles aqui são capazes de generosidades que eu jamais encontrei nos países mais individualistas. Por exemplo, a minha sobra de dinheiro samoano não dava pra um sanduíche e um café na vendinha do aeroporto. Pois a mulher deixou pra lá e me deu ambos assim mesmo, ainda que o meu dinheiro não fosse suficiente.
“Are you all right?”, perguntou-me com clareza impecável uma menina ao lado que não devia ter mais que 6 anos. Chega me assustei com a lucidez da criança, diferente do jeito um tanto alheio de todo mundo mais ali.
“Yeah, I’m fine, thanks”, respondi eu sorrindo depois de uma pausa de 1 segundo pra absorver a surpresa.
“You’re welcome”, completou ela sorrindo. (Os meus amigos esotéricos falariam já sobre as crianças indigo ou violeta, supostos espíritos mais elevados que estariam encarnando na Terra.)
Todos embarcamos pelo Portão 1, pois não existe Portão 2.
Veja também:
Crônicas em Samoa, Oceania: A chegada
Crônicas em Samoa, Oceania (Parte 2): Descobrindo as comidas e as pessoas
Crônicas em Samoa, Oceania (Parte 3): Danças, tradições, cultura, e a origem da tatuagem
Crônicas em Samoa, Oceania (Parte 4): Indo a Savai’i, a outra ilha
Crônicas em Samoa, Oceania (Parte 5): Da Cachoeira de Afu Aau aos Alofaaga blowholes
Chegadas e partidas, marchas e contra-marchas de um viajante haha. Contratempos e enfrentamentos…Histórias e mais histórias contadas e por contar. Nossa!.. que dureza às vezes… haja experiencias… mas fazem parte do show. Muito interessante. Temperam as viagens haha
Quanto à criança, com certeza um anjo haha e as águas, continuam divinas. hahah Ótimo passeio.