Era uma vez um lugar onde, diz a lenda, todo dia de manhã alguém media no mastro se a bandeira britânica estava exatamente à mesma altura da francesa; nem a mais, nem a menos. Os franceses e ingleses chamaram isso aqui de condominium (co-domínio); os nativos preferiram apelidar de pandemonium.
Estamos nas ilhas que eram chamadas de Novas Hébridas, hoje a nação soberana de Vanuatu, no Oceano Pacífico, Oceania. Estamos a 2h de avião a nordeste da Austrália. Depois de passar por Samoa e Fiji na vizinhança, foi pra cá que eu vim.
Vanuatu, como Fiji, faz parte da Melanésia, então as pessoas são negras. Você vê cabelo black power com facilidade, inclusive nas mulheres, mais que no Ocidente. (Mais até que nos países africanos que eu visitei, onde vi as mulheres em geral usarem o cabelo curtinho, ou alisado, ou com implante). Aqui em Vanuatu é in natura. Os homens gostam dos camisões coloridos comuns pela Oceania, e as mulheres usam vestidos coloridos belos e típicos.



Permitam-me contar um pouco de Vanuatu, pois a sua história é interessante.
Embora seu povo já viva aqui há 3.300 anos, foi só em 1606 que os ocidentais apareceram por estas praias, com o navegador português Pedro Fernandes de Queirós. Ele buscava, a serviço da coroa da Espanha, a lendária terra australis, um grande continente ao sul que, na crença europeia da época, deveria existir para equilibrar o planeta. Já que havia grandes terras no norte da Terra, deveria haver no sul também. (A esta época, já se sabia que a Terra era redonda. O português Fernão de Magalhães já havia circum-navegado o globo em 1522, mas muito do hemisfério sul e da Oceania permanecia desconhecido. Cria-se que em certas áreas poderiam existir até dragões. “Hic sunt dracones”, em latim, era frase comum nos mapas da época.)

O inglês Capitão Cook aparece em 1774 batizando o lugar de Novas Hébridas (as “velhas” Hébridas são ilhas na Escócia). O problema começou quando, em 1825, descobriram valiosas árvores de sândalo (madeira nobre) nestas ilhas.
Ingleses e franceses saltaram em cima, estabelecendo também plantações de cana-de-açúcar e algodão. Os nativos começaram a ser escravizados em tudo exceto em nome: Reino Unido e França já haviam formalmente abolido a escravidão a esta altura do século XIX, mas aqui faziam servidão por contrato e até guilhotinavam os negros melanésios. Há relatos de que não era raro que ingleses ou franceses bêbados jogassem usando anos de trabalho dos seus servos como aposta.

A capital Port Vila de hoje chamava-se Franceville na época. Já a prática de sequestrar negros melanésios ou aborígenes australianos para trabalhar em plantações de outras ilhas recebia o nome de blackbirding, como apanhar pássaros negros (black birds), em referência à cor da pele das pessoas. Ingleses e franceses misturavam-se na criação de um pandemônio para os nativos.
Quando, na entrada no século XX, a recém-unificada Alemanha começa a expandir-se nestas águas (já havia colonizado Samoa, por exemplo), os ingleses e franceses concordam e estabelecer o tal co-domínio daqui. (Todas as colônias da Alemanha na Oceania, como na África, seriam perdidas após sua derrota em 1918 na Primeira Guerra Mundial.)
Dizem que quando dois elefantes brigam, quem mais sofre é a grama. Aqui, os melanésios não eram considerados sujeitos nem do império francês nem do britânico. E, se precisassem viajar, precisavam obter autorização de ambas as autoridades governantes.
Durante a Segunda Guerra Mundial, os Aliados usaram estas ilhas como ponto de apoio contra os japoneses e deixaram um tanto de lixo militar, como tanques quebrados que enferrujam nas praias daqui até hoje. No pós-guerra, no entanto, aumentaram as pressões internas para que estas ilhas se tornassem independentes, como ocorreu na Ásia e África nas guerras de descolonização.
Como vocês talvez saibam, França e Inglaterra seguiram abordagens diferentes no processo de descolonização. Enquanto a Inglaterra favoreceu a descolonização de suas posses ultramarinas após a Segunda Guerra Mundial para depois dominá-las informalmente, no comércio, sem os custos de uma administração direta, a França optava por um bom e velho controle direto. (Daí as descolonizações francesas, como na Argélia e na Indochina nos idos de 1950 terem sido das mais sangrentas guerras da história, porque a França nunca quis largar o osso. Daí também as posses ultramarinas francesas aqui na Oceania continuarem sendo francesas, como a Nova Caledônia ou a Polinésia Francesa, que continuam não sendo soberanas mesmo em pleno século XXI.)
A França esperneou, mas Vanuatu acabou obtendo sua independência — e o nome atual — em 1980.
Vamos, finalmente, ao Vanuatu de hoje.
Uma dessas vans, que fazem as vezes informais de transporte público aqui em Vanuatu, me levou do aeroporto até a pousada de Jack, um australiano. Jack, um senhor pesado dos seus 55 anos, tinha o jeitão de coroa ex-motoqueiro, com um cabelo comprido grisalho preso num rabo de cavalo e bigode. Fumava um cigarro atrás do outro enquanto espiava a televisão permanentemente ligada em canais australianos. Funcionários negros aqui de Vanuatu faziam a manutenção da casa e da pousada.


Da mesma forma que em Marrocos você encontra sobretudo pousadas de donos franceses que servem a turistas franceses (e os marroquinos mesmo só entram como trabalhadores), aqui Melanésia afora você tem freqüentemente pousadas e negócios de australianos para servir a clientes australianos, e os melanésios entram apenas como funcionários. Os lucros circulam de estrangeiro para estrangeiro. É assim que eles preferem.
Vanuatu é hoje um paraíso fiscal, quase sem impostos, para atrair esses investidores. Em resultado disso, fica sem dinheiro e dependendo de auxílios de caridade de igrejas missionárias que vêm pra cá fazer proselitismo enquanto prestam ajudas pontuais, que podem até amenizar a pobreza aqui e ali, mas que pouco ou nada tratam das causas estruturais dessa pobreza. Eu veria muito disso nos dias a seguir.
Era tarde de domingo, e eu fui dar uma volta para conhecer o centro de Port Vila.




Port Vila fica numa baía, num porto escondido, daí a água ser quieta. Seu centro tem só duas ruas principais e algumas transversais. Não há semáforos em Vanuatu; dizem que um dia chegarão. Não é um país populoso: são menos de 50 mil habitantes em Port Vila, do total de apenas 300 mil espalhados pelo arquipélago.
O coração da capital é o mercado, onde boa parte das mulheres inclusive dorme durante a semana, não podendo ficar carregando os alimentos pra lá e pra cá todos os dias — até porque muito são raízes, pesadas. O mercado só fecha sábado à noite, para reabrir segunda de manhã para mais uma semana. Como hoje era domingo, eu tive que aguardar para visitá-lo no dia seguinte.
Abertos nessa tarde estavam apenas uns bares, umas lanchonetes fast food, uma bodega vendendo DVDs piratas onde achei algumas novidades, e uma sorveteria onde eu me detive.


Comi uma bobagem e segui adiante até uma sorveteria.
— “A sua esposa ficou no hotel?“, perguntou-me de repente a senhora da sorveteria enquanto eu conferia o sorvete. Eu adoro essas perguntas que você normalmente não escuta na maior parte do mundo.
— “Não, eu estou por conta. Não tenho esposa.“, respondi como quem esclarece.
— “Você não tem esposa?“. Ela parecia chocada, o que foi uma boa massagem de ego.
— “Não“, respondi eu com um breve sorriso.
Achei que ela fosse parar por ali.
“Por que não?“, continuou. O tom da pergunta era de leve tranquilidade, um breve sorriso de curiosidade, mas a atenção firme, os olhos aprumados à espera da minha resposta. Eu quase ia respondendo que “ainda não encontrei quem me quisesse”, mas seria mentira, então me limitei a sorrir e dar de ombros. Fui tomar o meu sorvete pela rua. A sorveteria estava já fechando.
As lanchonetes fecham às 16h ou 17h no domingo, e às 18h já está tudo um breu. Embora esta seja a capital, a iluminação pública é bem limitada, e na grande maioria das ruas a única luz vem dos faróis dos carros, tipo quando falta energia na sua cidade. Voltei pelas ruas à base da luz do celular, e na pousada jantei uma janta preparada pela criada de Jack.
Na manhã seguinte, Jack me fez rir. Pedi-lhe uma água de coco com o café da manhã, para aproveitar que eu estava finalmente num lugar que tinha. Após terminar a água, perguntei-lhe se alguém poderia partir o coco pra mim.
— “Não, isso aí não tem mais nada“, disse ele como quem dá uma explicação gentil a alguém que não entende das coisas. “O coco verde você só toma o suco [sic]. Essa casca aí vai pro lixo.“. Vivi para ver o dia em que um australiano achou de querer explicar a um baiano sobre coco verde.
Eu olhei Jack como quem se perguntava por onde começar.
— “Não, Jack. Tem uma carne saborosa aí dentro.” Minha vez de lhe explicar as coisas.
— “Não“, continuou ele não convencido, sem perder o ar de quem tinha a resposta certa, “esse é o coco verde. No coco verde só tem uma coisa gosmenta aí dentro que ninguém come. Você pode jogar fora.“
Segurei-me para não dar risada, mas acabei sorrindo. Por sorte, o caseiro melanésio de Jack estava por ali.
— “Pergunte a ele se eles aqui não comem, Jack.“, disse eu sorrindo.
— “Vocês comem isso?“, perguntou Jack chocado.
— “Sim“, confirmou tranquilo o caseiro, um senhor negro de seus 50 anos, com aquela cara de quem sabe mais que o patrão mas escolhe ficar quieto só observando.
Jack fez uma cara de surpresa, de quem não entendia mais de nada, e deixou pra lá. O caseiro abriu o meu coco.
Rumei novamente para o centro de Port Vila, agora com vida, pois era segunda-feira de manhã. Vans subiam e desciam as ruas, transportando pessoas. Indivíduos em suas roupas coloridas passavam pra lá e pra cá. No mercado, o bafafá. Melancias, bananas, e raízes mil estavam expostas no chão e sobre bancadas, por onde circulavam muitas mulheres negras com seus vestidos de cor.







Havia comida já pronta aqui no mercado também. Em geral, raízes ou bananas cozidas com peixe ou frango. O mais típico de Vanuatu é lap lap, um massa feita com inhame, taro, mandioca ou fruta-pão, cozida com leite de coco, normalmente cortada em quadrados grandes (ver foto abaixo) e servida com frango ou peixe.
Às vezes também a coisa é mais “básica”, e o almoço se resume a um bando de bananas cozidas com uma asa de frango. Procurei algo pra mim.



Pedi a uma delas que me fizessem um prato e sentei num dos vários mesões de refeitório, de madeira, dispostos para uso público dentro do mercado. Dispensei a asa de frango, mas experimentei do lap lap, uma massa saborosa e com aquela consistência de que enche a barriga. Comprei também um prato desses de kumara que me duraria a tarde.
Puxou conversa comigo Sônia, uma moça daqui que me disse ter 24 anos, com aquele ar de moça que vai sempre à igreja. Ela almoçava também na mesma mesa e perguntou de onde eu era, mas não falamos muito sobre o Brasil. Eu comentei como as mulheres aqui pareciam engajadas num trabalho bem árduo, e ela me explicou que as mães fazem isso para poder custear a educação dos filhos.
Só em 2017 é que Vanuatu está começando a anunciar Ensino Fundamental gratuito; até então tem sido pago e, normalmente, oferecido por grupos de igrejas. (Parece o Brasil do século XIX. Como eu sempre digo, esta Oceania é cheia de anacronismos surpreendentes.). Só há uma universidade, também paga: um campus da Universidade do Pacífico Sul, compartilhada com Fiji e mais outros países da região.
Não demorou a Sônia começar a meter passagens da Bíblia na conversa, citando Hebreus 7 e Melquisedeque. Meu almoço já tinha acabado, e eu fui ver o que mais havia por ali naqueles arredores.




Foi aí que conheci Andrew, o pintor. Um senhor tranquilo de mais de 50 anos, com sua esposa, num ateliê cercados de pinturas que evocavam motivos tribais, mas com certos toques contemporâneos. Ficamos um tempo conversando, dividi o que me restava de kumara, e tomei uma aula de simbologia melanésia. (Ele seria rico se tivesse nascido na Europa.)
Passando do inglês ao francês (pois eles aqui falam os dois, normalmente um melhor que o outro, a depender de qual escola frequentaram), Andrew que virou André foi me contando sobre os quadros e me mostrou o seu favorito, um quadro grande pintado há mais de 10 anos e pelo qual, segundo ele, já lhe ofereceram 10 mil dólares, mas que ele se recusa a vender, pelo valor sentimental.
Segundo ele, muito é intuitivo e ele próprio só chegou a notar depois que já havia pintado — inclusa a figura do próprio finado pai numa parte do quadro. Passou uma meia hora apontando-me sutilezas que me haviam escapado à primeira vista na pintura, riquíssima de simbologia local. Não é à toa que lhe fizeram a oferta — europeu tem olho fino pra arte, e se bobear ainda seriam capazes de revender por 10x mais na Europa depois.
O peixe é símbolo masculino; a tartaruga, feminina; e a lagartixa é símbolo de sorte.

Esse é o povo que foi posto pra cortar cana pra europeu comer açúcar.
No dia seguinte, eu iria conhecer mais da ilha para além da capital.
Não sei se são os gostos e interesses assemelhados, de linguagem ou mesmo geracional, mas considero o seu site o melhor do gênero sobre viagens. É divertido, ilustrativo, informativo e didático. Parabéns, e muitas mais viagens em 2018. Felicidades!
Muito obrigado, Nuno! Um feliz 2018 a você também!
Minha filha tem um trabalho de escola para fazer, sobre Vanuatu! Parabéns pelo site, encontrei tudo o que precisava sobre o dia a dia, a cultura, de forma real, não só a turística!
Obrigada
Fico muito contente em saber, Ana! Obrigado pela mensagem tão gentil
Uaaauuu que riqueza de produtos vegetais, parece com o NE do Brasil. Muitos produtos semelhantes. Adorei o mercado e sua diversidade. Essa batata parece com a abóbora gerimum aqui do NE.
Povo simpático, alguns bem bonitos e interessantes. Gostei do colorido do vestuário. O visual é muito bonito. Parecem-se novamente com o povo do NE do Brasil.
Belas pinturas e interessante a simbologia.
Comilanças um tanto exóticas mas com a cara de saborosas.
O artesanato tambem com semelhanças com o do NE brasileiro.
A natureza linda, exuberante: belas e cristalinas águas, linda vegetação e praias sossegadas e cheias de belezas naturais.
Pousada charmosa.
Ahahaha adorei o moço ai do coco querendo ensinar ”padre nosso a vigário” hahaha foi ótimo. Espero que tenha aprendido haha.
O lado triste é sempre a abordagem da colonização europeia, o depredamento da cultura, a servidão a que são submetidos os seus habitantes e a remessa de lucros sempre para os seus países com manutenção da pobreza nas loco-regiões colonizadas. A riqueza de uns feita graças à escravidão de muitos. Lamentável constatar essa triste realidade em pleno sec. XXI. Mais uma ótima postagem. Obrigada. Parabéns pela escolha descrição e valorização dessa linda região.
Gostei muito do relato, obrigado.