Budapeste e eu temos uma amizade colorida. Surgiu há anos atrás, quando eu vim pra cá pela primeira vez. Eu, que até então quase nada havia ouvido dela, me surpreendi com a sua beleza, elegância, assim como com a vida na cidade. Se outras cidades de grande porte na Europa (como Paris ou Viena) me parecem voltadas para o passado, vivendo de nostalgia, Budapeste me passa a sensação de uma cidade muito atual. Por mais que também tenha seus séculos de História como lastro, ela me parece ter uma animação pulsante muito viva e contemporânea, que as outras nem sempre têm.
Mas uma amizade colorida é também química e a gente nunca a explica por completo. O que eu sei é que já vim quatro vezes à cidade, passei semanas ao todo, e sempre percebo como os latino-americanos amam Budapeste. Deve haver alguma afinidade entre nós e os húngaros, esse povo que é diferente de todos os seus vizinhos europeus.
Os húngaros, pra quem não sabe, não são originalmente europeus. Eles advêm de migrações medievais do centro asiático para ocidente, rotas semelhantes às que fizeram outros povos como os hunos ou os mongóis — só que os húngaros vieram e ficaram. Sua morada antiga, estima-se, era onde hoje são o Cazaquistão e a Sibéria, no centro da Ásia, perto dos Montes Urais. Gradualmente eles migraram no primeiro milênio até chegar aonde estão hoje nos idos do ano 895 (mapa abaixo).
Talvez seja em parte esse “diferente” que me fascina. Acompanhem-me nesta viagem histórica pelos recantos e elementos que formam Budapeste.


Situados, vamos à cidade. Budapeste é a verdadeira capital Tramontina: Boa, bonita e barata. Linda arquitetura, boulevards amplos, belos museus e igrejas a visitar, vida noturna animada, e uma ótima feirinha de Natal, se você vier na época. Já vim aqui no Natal, na primavera e no verão, e posso dizer algumas coisas a respeito.
A primeira coisa que todo mundo fica sabendo aqui que é Budapeste originalmente eram duas cidades, Buda e Pest, separadas pelo Rio Danúbio. Somente em 1873 elas foram unidas como a metrópole que viriam a se tornar.
Buda é mais requintada, íngreme, repleta de pontos turísticos — e, para além de onde os turistas normalmente vão, muitas mansões em bairros nobres pouco movimentados. Lá ficam o Castelo de Buda (nada a ver com budismo), os mirantes do Bastião do Pescador, igrejas de ladrilhos húngaros coloridos, etc. É uma boa “pernada” pelo passado histórico da região.
Mas o coração pulsante da cidade é mesmo Peste (que também nada tem a ver com o significado desse nome em português), o lado plano à margem oriental do Rio Danúbio. Peste é o centro comercial da cidade, seu centro turístico também, onde ficam as maiores praças, avenidas, o Parlamento Húngaro, o Mercado Central, e mais um tanto de locais de interesse.



Os húngaros, chegados à Europa em 895, seguiram até 955 percorrendo como nômades as partes várias do continente — até a Espanha! Fizeram como os mongóis fariam séculos depois. Só que, como os húngaros resolveram se assentar, logo perceberam que, na Europa crescentemente cristã, seria necessário converter-se para se fixar aqui. Isso ocorreu em 1 de janeiro do ano 1000.
O Castelo de Buda foi originalmente erigido em 1265. O então povoado de Buda, aqui ao lado, era a capital do reino medieval dos húngaros, e esta colina era um posto ideal de defesa. O que se visita hoje, no entanto, é uma obra muito mais tardia, fruto de uma reforma barroca completada em 1769.
Onde hoje estão os mirantes do chamado Bastião do Pescador (Fisherman’s Bastion, ou Hálaszbástya em húngaro) ficava a muralha da cidade, um trecho onde — dizem — a proteção recebia ajuda dos pescadores que trabalhavam à beira do rio.
Hoje, são 7 belas torres construídas para simbolizar as 7 tribos húngaras que chegaram à Europa, e que foram posteriormente unidas sob um único rei. A obra foi concluída em 1902, já como fruto do nacionalismo húngaro.










Para entender a aura barroca que tem Budapeste e a sua mistura de influências culturais, é preciso entender o que ocorre nos séculos seguintes.
O reino dos húngaros perde a Batalha de Mohács para os turcos otomanos em 1526. Com isso, cairiam por 150 anos sob domínio turco. Disso surgiram influências perenes na Hungria, como a tradição de banhos públicos termais (há uma centena deles em Budapeste) e uma cultura gastronômica que mistura as salsichas do centro da Europa com os temperos caprichados dos turcos.





Quando em 1718 os turcos são finalmente expulsos das terras dos húngaros, estes acabam sob domínio da Áustria, da poderosa dinastia dos Habsburgo, então no seu apogeu.
A esta altura, Budapeste — ou, sendo mais preciso, Buda e Peste — já era(m) uma grande mistura de húngaros, germânicos, eslavos (sérvios, croatas…), judeus e ciganos.
Uma das maiores contribuições ciganas aqui foi no csárdás [tchárdásh], a dança tradicional húngara de estapear-se, e que ganhou aromas ciganos ao longo dos séculos. Abaixo é um vídeo antigo com a dança. Assistam porque é uma onda (e depois façam na sala de casa). Em alguns teatros húngaros, é possível assistir a espetáculos com isso.
(Ainda hoje os ciganos na Hungria têm problemas seríssimos de integração, como nas vizinhas Bulgária e Romênia. Eles falam o seu próprio idioma, são particularmente pobres e vulneráveis, mas ao mesmo tempo estão frequentemente metidos em criminalidade e mau comportamento público. Você os vê facilmente no transporte público de Budapeste.)
Como parte do Império Austríaco a partir dos idos de 1700 — e “Austro-Húngaro” a partir de 1867, quando os húngaros forçaram maior reconhecimento dos austríacos — é que Budapeste e o país ganhariam muitos dos contornos culturais que têm hoje.
O centro em Peste é repleto dessa arquitetura barroca classicista dos séculos XVIII e XIX, época de ouro deste império. Uma volta nas avenidas e ruas principais, como as belas Av. Andrássy e Rua Váci, mostram isso rapidinho. E junto com a arquitetura desenvolveram-se também as típicas guloseimas da Europa Central, como suas tortas e bolos que hoje são também marcas culturais húngaras.







Quando vem o século XIX com as independências nas Américas e os movimentos nacionalistas na Europa, os húngaros se identificam como nação. Até então, o habitual eram reinos multi-étnicos e multi-línguas. As pessoas aqui na Europa Central falavam latim (dentre os escolados) e dialetos vários de alemão, além do húngaro e de línguas eslavas (dentre o povão). Não havia essa ideia contemporânea de que pessoas que falam a mesma língua ou compartilham da mesma herança sanguínea são meus semelhantes — a ideia do nacionalismo, de que tais pessoas constituem uma nação.
Quando os húngaros e outros povos abraçam isso, o Império com sede em Viena se vê balançado. O ano de 1848, da chamada “Primavera dos Povos“, marca o pico desses movimentos de povos que queriam de repente se ver independentes e soberanos. Só neste império governado pelos Habsburgo havia falantes de alemão (em distintos dialetos), húngaros, checos, eslovacos, poloneses, romenos, sérvios, croatas, entre outros, num total de 17 etnias diferentes.

Em 1867, os húngaros e a Casa dos Habsburgo chegaram a um acordo: estabelecer uma “monarquia dupla“. O monarca austríaco seria Imperador da Áustria e ao mesmo tempo Rei da Hungria, no entanto os húngaros teriam seu próprio parlamento e primeiro-ministro. O imperador austríaco resolveria apenas questões de defesa e política externa.
Com isso, a Hungria necessitava de um parlamento, e assim ordenou-se a construção de um novo edifício que representasse o insurgente nacionalismo húngaro. O prédio, de estilo dominantemente neo-gótico, com a cúpula em estilo neo-renascentista, foi inaugurado em 1896 para o milésimo aniversário da chegada dos húngaros aqui.
Ele é, sem dúvidas, o prédio mais icônico de toda Budapeste.







Só há um outro prédio na cidade com a mesma altura do parlamento: a Basílica de São István, erigida em 1905, na mesma esteira nacionalista desse período. Ela, francamente, me parece uma das igrejas mais impressionantes da Europa.







Eram tempos de grande bonança na cidade — de grande vida intelectual, cafés, produção literária, e que assistiu inclusive à construção aqui do primeiro sistema de metrô de toda a Europa continental em 1896, só não mais antigo que o de Londres.
Budapeste àquela altura da virada do século XIX para o XX era apelidada de “Judapeste“, pela sua grande quantidade de judeus. Ainda hoje, ela preserva uma das três maiores sinagogas do mundo.
Os ventos do antissemitismo, no entanto, breve começariam a soprar mais forte. Com a derrota dos “Poderes Centrais” (Alemanha + Áustria-Hungria) na Primeira Guerra Mundial, o império que aqui reinava se quebrou em múltiplos estados-nação em 1918, entre eles a Hungria. E como em outras partes da Europa, o fascismo começava a surgir.

A Hungria entrou ao lado da Alemanha na Segunda Guerra Mundial, e junto com a Áustria (anexada por Hitler), buscando reaver territórios habitados por húngaros que foram perdidos para a Romênia e a Eslováquia após a derrota na Primeira Guerra Mundial. (Esses territórios jamais foram reavidos, e até hoje há milhões de húngaros vivendo naqueles países vizinhos, principalmente na região da Transilvânia, na Romênia.)
Estima-se que 28 mil ciganos e entre 100-250 mil judeus húngaros tenham sido mortos no período do conflito, muitos deles enviados a campos de concentração.
Em 1944, as milícias fascistas do então governo húngaro alinharam 3.500 pessoas (dentre eles, 800 judeus) e os executaram à margem do Rio Danúbio aqui em Budapeste, onde há hoje um memorial dos sapatos como uma lembrança das pessoas executadas ali.

Os húngaros sairiam do fogo para a frigideira. Em 1945, tropas soviéticas libertam a cidade dos nazi-fascistas, mas instalam aqui um governo comunista autoritário sob a sua égide. A Avenida Andrássy, a principal da cidade, foi renomeada como Avenida Stálin em 1950.
Muitos húngaros, no entanto, queriam mais direitos políticos e reivindicavam um socialismo democrático, com participação popular. Assim, enquanto o célebre jogador húngaro Ferenc Puskás marcava gols, irrompe uma revolução em 1956. Derrubam a estátua de Stálin na cidade, soldados e oficiais se juntam aos estudantes nas ruas, e o governo anuncia sua saída do Pacto de Varsóvia, a aliança militar liderada pela União Soviética. Tudo no entanto, acaba com a invasão dos tanques russos em Budapeste. Vinte mil pessoas morreram, e o líder Imre Nagy foi preso e executado.

Os húngaros que conheci, no entanto, são rápidos em dizer que, apesar dos pesares, a coisa melhorou muito depois de 1956. O regime adotou uma política mais flexível e liberal (os húngaros tinham, por exemplo, acesso a coca-cola, só pra ilustrar), e a transição para uma democracia em 1989 foi tranquila.
Pouca gente sabe, mas o Muro de Berlim em parte caiu como peça de dominó após uma decisão húngara em junho de 1989 de (re)abrir suas fronteiras com a Áustria. Com isso, uma onda de alemães orientais deram a volta para chegar à Alemanha Ocidental via Hungria e Áustria. Em novembro de 1989, a coisa se tornou insustentável.



A Budapeste de hoje é um caldo pulsante. Depois de décadas sendo descrita como “Leste Europeu” por causa da sua afiliação (forçada) com o bloco comunista durante a finada Guerra Fria, a Hungria busca recolocar-se no seu percebido lugar como parte da Europa Central — sua principal matriz cultural. Isso, é claro, sem renegar os inputs de outras origens (como a influência dos Bálcãs na sua cozinha) e, especialmente, sem esquecer as particularidades linguísticas e originárias dos húngaros.
Como eu disse no começo, é das minhas cidades favoritas. Bela, animada, e mais barata que as grandes cidades do Brasil. Por mais que a Hungria tenha hoje um governo proto-fascista conservador e populista, como a Polônia, que vivem em tensão com Bruxelas dentro da União Europeia, Budapeste não perde o seu charme. Ao contrário, a cada ano que volto ela parece mais bonita. Enquanto tantas outras capitais europeias vivem de nostalgia sem saber muito pra onde agora vão, Budapeste emerge como uma das cidades mais vibrantes no século XXI.







Abaixo, um dos shows de luzes e música que ocorrem às 8pm todas as noites na fonte d’água na Ilha Margarida. Revejo você em breve, Budapeste.
definitivamente, Mairon Giovani, o melhor que já li sobre Budapeste,onde estarei dia 22 de maio.obrigada! bonito e útil.
Uaaaauuuu. Que maravilha de cidade, que belissima arquitetura!… Deslumbrantes efeitos diante do poético, belo e histórico Danúbio, e sob as luzes magnificas sejam artificiais sejam do belíssimo sol poente. Ja a tinha visitado no inverno ( encantadora) mas, com certeza é outra cidade nessas épocas onde o azul dos céu pode ser apreciado, onde as flores brotam e as praças ficam cheias. E ai ela parece demonstrar toda a sua pujança e beleza, ´Lindos Monumentos!… Bela igreja!… Um jardim a céu aberto. Merece ser visitada nas mais diversas estações para que suas nuances sejam percebidas. LInda. Belas flores.
O resgate histórico dos Maggiares e seus deslocamentos fusões e relações com outros povos está muito bom. Parabéns ao jovem viajante.
E obrigada por lembrar-se do grande Puskas que com sua genialidade em campo a todos encantou.
Vale lembrar também a figura do Ferenc Molnár com seu clássico e emocionante “Meninos da Rua Paulo”, uma novelinha que sacudia a juventude dos anos dourados. Maravilha. Budapest. Histórica Hungria, bela cidade!…. Amei.
Apreciei muito a descrição que você faz da cidade e de suas atrações. Percebi, e também gostei disso, da fidelidade da narrativa histórica que acompanha seu “passeio”. Estive em Budapeste num janeiro horroroso de muito frio e garoa, mas apesar disso, conseguimos ver muito da cidade. Minha mãe era natural da Hungria e chegou ao BR nos anos 20, como também meu pai, alemão (aqui em casa houve muita paz entre essas nações). Saudações cordiais.