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Rússia

A experiência de dois dias num trem russo trans-siberiano, de Ekaterimburgo a Irkutsk

Três mil e quinhentos quilômetros (3.500Km) separam Ekaterimburgo e Irkutsk, cidade no coração da Sibéria. Para efeito de comparação, é a mesma distância entre Curitiba e Fortaleza no Brasil, que aqui na Rússia você faz em dois dias de trem. É a partir desse trecho que a Ferrovia Trans-Siberiana começa a ficar efetivamente trans-siberiana.

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Ekaterimburgo e Irkutsk no mapa russo.

Eu até aqui já tinha feito viagens de trem que considerava longas — como as 24h num trem indiano que narrei anteriormente ou as 33h que levei de Amsterdã a Minsk, na Bielorrússia. A Rússia, no entanto, sempre muda os seus parâmetros.

A experiência de passar tanto tempo dentro de um trem é, na realidade, um dos grandes sabores de se cruzar a Ferrovia Trans-Siberiana. É talvez a principal sensação buscada — uma peregrinação em via férrea, como fica claro por exemplo no livro Aleph de Paulo Coelho, que narra a viagem daquele autor aqui. Mais sobre esta ferrovia de modo geral eu falarei depois.

Por ora, preciso dizer que o trecho de dois dias e duas noites foi tranquilo — e passou mais rápido do que imaginei. A minha amiga, que é um pouco mais agitada do que eu, teve a mesma sensação. 

Você na verdade fica ali “de boa”, conversando, lendo, assistindo a seriados no computador, e fazendo pausas para comer ou tomar algo quando dá na telha. Não é um trem hiper-conforto, mas é bom o bastante.

Neste post eu quero mostrar um pouco da paisagem por onde passamos, assim como alguns lugares onde paramos.

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A estação de trens de Ekaterimburgo de madrugada, algo antes do sol raiar. Foi aqui, tomando um cafezinho de máquina, que tudo começou.
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Os trens russos são assim: imensos.
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No interior do vagão…
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… e o interior do nosso compartimento, para quatro pessoas. (Na maior parte do tempo, só havia nós dois.) Não há luxo, mas é tudo relativamente confortável e funcional.

Dormi e não sei que horas eram quando acordei. Já era irrelevante; Irkutsk está 3h à frente de Ekaterimburgo, e nós não sabíamos exatamente onde um fuso horário terminava e outro começava, então não fizemos caso.

As nossas comissárias eram duas russas pesadas de uniforme cinza e seus 40 anos. Não foram rudes, mas tampouco eram de muita conversa. Elas vendem café e chá sem que seja necessário ir ao vagão-restaurante (que aqui era uma esculhambação e caro), e você naturalmente retém o copo para daí então usá-lo com o seu próprio café ou chá, já que tem um dispensário de água fervente em cada vagão. Eu vim farofeiríssimo: com macarrão instantâneo, aveia, frutas, leite em pó, açúcar, e café solúvel. Ah, havia ainda tchak-tchak trazido de Kazan também. (E, é claro, eu trouxe tigela e talheres, pois eles aqui só dão a colher de mexer o café.)

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Olhando a paisagem na janela por sobre a sacola de comida.

Duas coisas importantes que eu preciso esclarecer são: primeiro, não faz frio na Sibéria o ano inteiro. Apesar de ela nos ser mostrada quase que exclusivamente como um lugar invernal, a verdade é que ela é como qualquer outro lugar de clima continental: verões bem quentes e invernos bem frios. Sim, batem -40ºC aqui no inverno, mas também batem 40ºC positivos durante o verão. (Os trens russos são bem preparados em termos de aquecimento no inverno, mas no verão o ar condicionado é modesto e fica desligado quando o trem para em alguma estação. Prepare-se para passar calor.)

Segundo, embora imaginemos frequentemente a Sibéria como uma região de natureza indomada, de florestas boreais, lobos e ursos, a paisagem siberiana é muito mais campestre que de mata fechada. Lembrem que milhões de russos e imigrantes das outras ex-repúbicas soviéticas moram na Sibéria. Isso é especialmente verdade para as áreas próximas da ferrovia e das cidades maiores, onde a população se concentra. A Sibéria tem a sua beleza, mas não espere avistar ursos pela janela. A sua é uma beleza campesina muito mais à là Os Girassóis da Rússia ou Dr. Zhivago.

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A nossa vista da janela, dos campos russos.
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Muitas casas simples de madeira. A vida no interior da Rússia continua muito precária em termos de infraestrutura.

Se vocês querem ter uma visão real do que é a Sibéria, confiram abaixo este pequeno vídeo que gravamos da vista da janela no pôr-do-sol. Dá pra sentir uma ideia do balanço e do embalo do trem também.

O trem faz dezenas de paradas em cidades pequenas e grandes, às vezes detendo-se de 5 a 45 minutos ou mais. Há um roteiro afixado no corredor do trem e que ele segue à risca, com os horários exatos de parada e saída de cada estação. (Em geral, não há nada além de pequenos quiosques vendendo bebidas açucaradas, salgadinhos da pior qualidade, chocolates indignos deste nome, e macarrão instantâneo para consumir no trem, além de alguns pães sem graça e frituras.)

Eu, confesso, imaginei que o trem seria abordado várias vezes por vendedores(as) ambulantes vendendo toda sorte de coisas, especialmente comidas, como já me havia acontecendo na Índia, na Indonésia, e também aqui na vizinha Bielorrússia. No entanto, não foi esse o caso.

O único lugar onde tivemos uma palhinha disso foi na pequeníssima estação de Barabinsk, no meio do “nada”, onde experimentamos algumas iguarias da região: peixe defumado, omelete de ovas de peixe, dentre outros.

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Na parada em Barabinsk, num fim de tarde, muitas senhoras aglomeravam-se a esperar o trem com sacolas para vender quitutes, peixe, ou o que fosse aos passageiros. Muitas delas são viúvas, pois o alcoolismo aqui na Rússia quase sempre leva os homens muito mais cedo. Na ausência de aposentadoria uma suficiente (quando há), elas acabam tendo que trabalhar a vida toda.
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Senhoras com sacolas esperando vender. Os cachorros seguiam o cheiro das comidas.
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Senhora russa a mostrar os peixes defumados que vendia. Cada um saía por 150 rublos, o equivalente à pechincha de 2 euros o peixe inteiro.
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Posando ali na cena, depois de comprar algumas coisas…
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Flagrado com ar voante já de volta ao interior do trem… com um peixe defumado. Aqui abaixo na foto, os tais omeletes de ovas de peixe a que me referi antes. Eles têm um gosto salgado e uma textura ligeiramente borrachuda. (Perdoem a anarquia do lugar, mas, depois de tanto tempo aí dentro, o compartimento vira um ninho.)
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… mas aconchegante. Vejam como fica bonitinho e agradável à noite. Enquanto isso, o trem segue. (O cheiro de peixe estava por toda parte, confesso. Tivemos que guardá-lo às sete chaves, já que não tinha como comê-lo todo de uma vez.)
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Passava noite, passava manhã, o trem só no seu embalo. Era impressionante dar-se conta do tamanho deste território. (E, sim, quando no outro dia abrimos as sacolas do peixe, já que não havia geladeira, o cheiro estava poderoso. Vi a hora de sermos expulsos do trem. Por sorte, ele defumado não estraga assim tão rápido. Tivemos que terminá-lo tão logo quanto possível.)
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E assim passou o tempo, assistindo a Game of Thrones (seriado) no computador enquanto a paisagem siberiana desfilava atrás.

E depois de dois dias no trem, finalmente chegamos a Irkutsk, no coração da Sibéria. 

Mairon Giovani
Cidadão do mundo e viajante independente. Gosta de cultura, risadas, e comida bem feita. Não acha que viajar sozinho seja tão assustador quanto costumam imaginar, e se joga com frequência em novos ambientes. Crê que um país deixa de ser um mero lugar no mapa a partir do momento em que você o conhece e vive experiências com as pessoas de lá.

One thought on “A experiência de dois dias num trem russo trans-siberiano, de Ekaterimburgo a Irkutsk

  1. Uaaauuuuu. Meu jovem, que aventura!…. Notre Dame. É muito tempo. E que belas paisagens!… adoro esse ar campestre, com cheiro de natureza e longe dos ”agitos” das cidades, Belíssimo pôr de sol. E que linda essa vegetação. Belos tons de verde. Imaginei que a vegetação fosse mais alta e a mais fechada. Uma bucólica região. Muito bonita.
    Adorei a experiencia com o peixe defumado, omelete de ovas, que não eram caviar, hahaha e o dia seguinte com o agradável odor hahah.
    Lamentável a situação das mulheres expostas às vicissitudes em uma idade tao vulnerável e sem a proteção social. O alcoolismo é um problema de saúde pública em muitos lugares, em particular na Russia. A vodca é uma desgraça social naquela região. Estava lendo sobre isso ha pouco tempo.
    Muito bem. Adorando viajar com o senhor meu jovem viajante. Vamos que vamos. Valeu.

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