Eis a Mongólia, um país de tão forte imagem medieval (dos tempos do conquistador Gêngis Khan) que a gente nem lembra que o país ainda existe, e poucos fazem ideia de como ele atualmente é.

Estamos na Ásia Central; para nós, das menos conhecidas regiões do mundo. Aqui, os povos das estepes encontram-se espremidos entre as milenares influências chinesa, persa, e muitas outras. Pode parecer estranho falar em “espremido” nestas esparsas terras onde há menos de 2 pessoas por Km², mas cultural e politicamente é assim que os mongóis estão desde que os herdeiros de Gêngis Khan perderam as rédeas.
Acompanhem-me aos poucos por esta viagem descobrindo a Mongólia de ontem e de hoje, conhecendo as suas pessoas e tradições.

Era o amanhecer quando chegamos, os gramados infinitos e verdes cobertos pela luz do sol. Rebanhos se viam por toda parte, mais que quaisquer construções. Num país de 1,5 milhão de Km² (o equivalente a Bahia, Minas Gerais, São Paulo e Paraná todos juntos), há um total de 3 milhões de pessoas e — estima-se — 50 milhões de animais de rebanho, dentre cabras, bovinos, cavalos, yaks, ovelhas e camelos.
Ulaanbaatar, a capital de 1,3 milhão de habitantes, é realmente a única cidade da Mongólia. O restante da população está difusa pelo país, muitos vivendo como nômades.
Foi ali que desembarcamos, vindos de Irkutsk, na Rússia. Se lá na Sibéria eram comuns as paisagens rurais e muitos sinais de urbanização (ainda que precária), cá na Mongólia o contexto é diferente, e você logo percebe. Não há terras cultivadas, mas campos sem cerca, onde os animais pastam livremente. Em vez de casas de madeira ou de tijolo, os notórios gers [lê-se “guêrs”], ou yurts, que são as tendas brancas e redondas que os mongóis montam e desmontam onde querem.

Os mongóis são tradicionalmente xamanistas, ou seja, crêem nos espíritos da natureza e praticam comunicação com “o outro lado” através de xamãs (ou médiuns, se você preferir). A palavra xamã, mundialmente conhecida pelo amplo uso de shaman em inglês, vem de um idioma nativo siberiano, aqui vizinho, e são como os pajés nas culturas brasileiras. Os indígenas das Américas derivam em sua maioria de siberianos que migraram pelo Estreito de Bering entre hoje a Rússia e o Alaska, e tanto na fisionomia quanto nos traços culturais você percebe esta matriz comum.
Aqui, sobretudo a partir do século XVI, foi o budismo quem entrou com força, misturando-se ao xamanismo tradicional tal qual o cristianismo se mesclou às religiões indígenas ou de matriz africana no Brasil. (Não somos os únicos a fazer sincretismo.) Esse budismo foi particularmente de caráter lamaísta, ou seja, da corrente tibetana onde há um representante do Buda na Terra etc., diferente do zen-budismo chinês ou japonês. (Dalai, pra quem não sabe, é uma palavra de origem mongol que significa “oceano”, daí o Dalai Lama ser o guru, o “lama”, mais elevado.)
Falaremos mais sobre a História depois. Eu só queria fazer uma introdução pra vocês entenderem onde estamos entrando, e saberem da relação íntima que os mongóis têm com o Tibete. (PS: Por esta e muitas razões os mongóis detestam a China.)

Na estação de trens de Ulaanbaatar, fomos apanhados por Tamir, um rapaz mongol de seus 25 anos, franzino, de camisa preta e cara de sono. Ele era filho da dona de uma hospedaria chamada Tamir Wellness, no parque nacional Gorkhi-Terelj, aqui próximo à capital. O parque é uma mistura de áreas abertas com rebanhos, bosques, e templos budistas no alto das colinas. Seria a nossa primeira estadia na Mongólia.
Tamir tinha uma cara daqueles rapazes que ficam até a madrugada no computador e, no dia seguinte, estão meio sem foco, com um ar voante a menos que o assunto em questão seja altamente do seu interesse. (Tamir revelaria-se assim todos os dias. Era crônico. Embora ele falasse inglês bem, o normal diante de qualquer pergunta era “Ahn??”, com aquela cara aérea de “Oi???”.)


— “A maioria das pessoas aqui na Mongólia é budista, não é?”, perguntei eu a Tamir, iniciando uma conversa no carro enquanto ele dirigia.
— “A maioria é. Outros são xamanistas, a religião tradicional antiga. Alguns misturam com budismo também.”
— “Você é budista?”, indaguei.
— “Meus pais são. Eu não ligo muito não.”, disse ele ligeiramente encabulado.
— “Mas você vai ao xamã?”, perguntei eu já sabendo que é ultra comum aqui na Mongólia consultar-se com um dos médiuns da religião ancestral aqui de muito da Ásia.
— “Sim. Sim. E é realmente verdade”, continuou ele de repente olhando pelo retrovisor a mim e à minha amiga canadense, ambos no banco de trás do carro.
“Você se dá conta de que, de repente, não é a mesma pessoa. É outra falando ali com você, que vem do céu e toma o lugar da que estava ali antes.”, continuou ele. “Quatro anos atrás ele previu que eu ia ter um filho por agora. Na época eu nem namorada tinha. Minha mãe riu quando soube, “O que? Meu filho?”, duvidando. Ele também me disse que minha namorada estava grávida. Eu nem sabia. Aí ela foi lá, fez o teste, e estava grávida mesmo.”
“Outro dia eu quase morro. Estava dirigindo e tive uma discussão com um amigo meu no carona. Quase bati o carro. O meu xamã brigou comigo”, comentou Tamir rindo e balançando a cabeça. “Eu nem tinha dito nada a ele! Mas ele veio perguntando pra que aquela discussão, e dizendo que me salvar foi difícil. Que mexer com essas máquinas de hoje dá trabalho. Ele é lá do tempo de Chinggis Khan.”, completou. (Os mongóis pronunciam Chinggis em vez de “Gêngis” Khan.)
E assim seguimos até o Gorkhi-Terelj National Park, onde nos instalamos por uma noite. A minha amiga canadense me olhava com uma cara cética no banco de trás, não habituada a essas coisas.

O Parque Nacional Gorkhi-Terelj se revelaria um lugar cênico, de belas vistas naturais, paisagens abertas, e alguns passeios bem legais a fazer. Como para quase tudo aqui na Mongólia você precisa de carro, Tamir seria nosso motorista estes dias. De quebra, aqui iniciaria-se também o nosso contato com vários aspectos da cultura mongol, desde o aprender a atirar com arco-e-flecha até experimentar da sua notória culinária de pastores.
Eu preciso dizer que, mesmo já tendo viajado bastante, nunca passei tanta penúria gastronômica quanto aqui na Mongólia. Os detalhes eu deixo para aparecerem aos poucos, mas basta dizer por ora que, como pastores, eles basicamente se alimentam de carne e leite. (Eu normalmente não como carne e, como 99% dos mamíferos adultos, tenho intolerância à lactose.) Eles aqui gostam daquela carne bruta, com osso e gomos de de gordura, e o leite é aquele integral do jeito que sai do peito, sem qualquer industrialização.
Eu, imaginando isso, havia avisado na reserva que não comeria carne — aí eles me aparecem com sopa de leite no primeiro café da manhã. P…

Nós recebemos o café da manhã (pelo qual logo me arrependi de ter pago extra na reserva) e fomos acomodados num dos gers da propriedade. A visão daquelas tendas mongóis, tanto no exterior quanto no seu interior, se tornariam corriqueiras nesta estadia no país. São aconchegantes.








Nós logo nesta primeira manhã fomos com Tamir ao mosteiro budista que há no parque. O lugar é impressionante, tanto pelo interior quanto pelas vistas.
No caminho, Tamir nos contou que aqui muitos monges budistas da Mongólia foram massacrados por soldados soviéticos nos anos 1930, no período das perseguições stalinistas. Eu, antes, havia lhe perguntado se eles se dão bem com a Rússia e a China. “A gente tem que“, respondeu ele com ênfase na obrigação, sabendo que o seu país está espremido entre dois gigantes. Apesar disso, parece geralmente haver mais simpatia pelos russos — talvez porque os desafetos são mais recentes e, portanto, menos enraizados.
“Se não fosse a Rússia, a gente estaria até hoje sendo parte da China”, contou Tamir.
De fato. Os mongóis são a razão pela qual existe a Grande Muralha da China. Só que não adiantou: os mongóis conquistaram a China mesmo assim no século XIII, e a governaram por 150 anos. Mais tarde, no entanto, no século XVII seria a vez da China atacar e dominar as enfraquecidas tribos mongóis. Parte do território mongol foi então absorvido (a chamada “Mongólia Interior“), e a outra parte ficou semi-autônoma como vassala dos chineses (“Mongólia Exterior“). A Mongólia Interior continua sendo uma província da China, enquanto que a Mongólia Exterior é o que se tornou o país independente no século XX.
Foi somente graças à Rússia que a revolução liderada por um monge budista livrou a Mongólia do jugo chinês. Quando em 1911 cai a última dinastia da China, os mongóis declaram que o seu juramento de lealdade era ao imperador, não aos chineses, e se proclamam independentes. A Rússia é a primeira a reconhecer a Mongólia independente, e mais tarde (em 1950) a União Soviética exige como condição ao reconhecimento do governo comunista chinês que estes também façam esse reconhecimento. Se na Europa a União Soviética tinha os estados da “cortina de ferro” como seus satélites, na Ásia era a Mongólia que prestava esse papel, isolando-a como tampão da populosa China.
O custo, contudo, foi que a Mongólia passou a ser governada por marionetes comunistas dos soviéticos, que buscaram banir a religião — neste caso, o budismo — da nação. Milhares de monges foram executados, e seus tesouros em metais preciosos foram levados embora.
Desde 1990, com o fim do regime comunista na Mongólia, tem havido uma renascença do budismo no país.








Por fim retornaríamos ao acampamento e, para fechar o post, vamos à prática com arco-e-flecha que tivemos no final da tarde. Foi chamado um instrutor para nos ensinar como fazer.
A moral da história é que fomos uma negação: levamos 1h para acertar o alvo. Atirar é divertido, embora exija força no braço para entortar a madeira do arco — pois quem entorta é ela, não a corda. Só é chato é ter que ir catar as flechas toda hora para atirar de novo. Tranquilo, observava-nos o instrutor que era praticamente uma versão mongol daqueles tiozinhos do interior que há no Brasil, reservados e observadores quietos, com aquele ar humilde de homem rústico.
As grandes conquistas de Chinggis Khan, pra quem não sabe, foram feitas com exércitos de cavaleiros armados com arcos e flechas, capazes de atirar montando de costas ou mesmo de pé sobre os cavalos.




“Da próxima vez que vocês vierem, treinam atirar com o arco montado no cavalo”, comentou jocoso Tamir. “E a gente invade a China.”
Ai, que interessante e divertido!….. hahaha adorei a Mongolia com suas imensas e belas pastagens e planicies e verdes campos!… linda. Que magnifica natureza!…Amei os rebanhos, achei bonitinhas as casinhas redondas, o relevo pujante, o charmoso templo budista e as histórias contadas. Achei engraçada a experiencia de arco e flecha e me solidarizo com o senhor, meu jovem amigo viajante, em relação e essas comilanças huuuuuurrrríveis hahaha. Ossos do oficio. Ainda bem que sobreviveu hahahah.
Gosto muito do Xamanismo e suas diversas manifestações. O Espirito sopra aonde quer e em todos os lugares ha seres sensíveis às Suas manifestações.
Linda região, bela postagem.Vamos que vamos.
Olá!
Tive a oportunidade de conhecer parte da Mongólia ano passado e suas dicas foram preciosas. Obrigada. O passeio no templo budista do Gorkhi-Terelj National Park é sensacional oferecendo uma vista deslumbrante! Boas viagens e aventuras!
Olá, Renata!
Obrigado por esta esta mensagem tão gentil. Eu fico feliz que as dicas tenham sido úteis e ajudado para a sua boa experiência lá na Mongólia. É mesmo um destino sensacional. Boas jornadas para você também, e seja sempre bem-vinda!