O sexto dia amanheceu nublado. O famigerado Deserto de Gobi havia ficado para trás, e nós agora adentrávamos a Mongólia Central — o coração do país. Nesta região central da Mongólia, há maior umidade e dominam os pastos por sobre as colinas até onde a vista alcança.
Os rebanhos atravessam a frente do carro às centenas. Ou talvez fosse mais correto dizer: o carro passava dispersando centenas de cabras, ovelhas, bois e yaks que pastavam tranquilamente na imensidão. Como cheguei a sugerir anteriormente, me parece que aqui na Mongólia os animais são mais felizes.
Com água, pastos e animais estão também os pastores. Os hospitaleiros mongóis estão em maior número aqui que em Gobi, e nós desfrutaríamos dessa famosa hospitalidade nômade neste dia. (Numa sociedade onde a natureza é pouco hospitaleira, as pessoas precisam sê-lo.)

Eu cheguei a comentar, no post de início deste tour pelo interior do país, que as famílias com quem acampamos são invariavelmente alheias aos turistas. São pessoas já por demais habituadas a ver turistas chegarem e irem embora todos os dias; os acampamentos são seu negócio, não espere que elas venham interagir com você.
Por isso foi tão interessante quando Baina, o nosso motorista, “do nada” decidiu que visitaríamos de supetão umas famílias quaisquer, sem avisar.
Na tradição social mongol, é de bom tom que você receba qualquer pessoa na sua casa. Solidariedade social nestas terras duras de viver. Diz a lenda que há até quem deixe queijo e chá à disposição no ger quando a família sai por alguma razão, caso apareça alguém qualquer que esteja com fome, sede, ou precise de descanso.
Nós não precisávamos de nada, apenas de um contato mais natural, mais espontâneo que nos acampamentos pra turista, e foi o que obtivemos. Os mongóis não-habituados ficaram fascinados olhando pra as nossas caras, perguntando de onde éramos e nos mirando.

As famílias migram de tempos em tempos. Eles nos disseram — traduzidos pelo nosso guia e pelo motorista — que estavam naquele lugar fazia 3 meses.
Eu estava curioso pra ver como é um ger autêntico, não dos que servem de acomodação pra turista. Acabou sendo muito semelhante, só que sem camas: as pessoas dormem sobre as mantas de lã no chão. Há um canto onde é a cozinha, havia um sofá onde nos sentamos como visitas, e idas aos banheiro são ao tempo, com os elementos da natureza no lado de fora. Como hoje em dia há painéis solares relativamente baratos (praticamente a única forma de eles gerarem energia como nômades), havia uma espécie de monitor onde as crianças assistiam a desenho animado.
Nos serviram soro de leite fervido na tigela e pequenos bolinhos muito simples, além de doce de leite tipo caramelo.


Eu ri litros (depois, não na frente deles) quando perguntaram se três de nós que estávamos sentados juntos éramos marido, mulher e filho. (O pai era eu, e o suposto filho meu era um marmanjo francês quase da minha idade.) Acharam estranhíssimo que eu não fosse casado. Olhavam-me com aquela cara que eu imagino que os antigos devem ter feito quando se começou a sugerir que a Terra é redonda.
No lado de fora, mais crianças brincavam, roupas estendidas faziam-me lembrar de periferias de outros países pobres (só que, aqui, no ger), e outros vizinhos ou familiares tiravam leite de cabras.



Nos despedimos sem muita cerimônia após uma meia-hora, agradecendo-lhes pela acolhida e deixando para trás as crianças curiosas e os adultos com seus sorrisos.
Nós poucas horas atrás havíamos estado ainda nas paisagens secas de Gobi, e agora gradualmente o verde começava a ganhar o nosso horizonte.



Daquele encontro, não demoramos a ir a uma família diferente, mas parecida. (Chegamos naquele “Ooooooi, olha a gente aqui!” animado, tipo aqueles seus parentes que chegam de repente na sua casa sem avisar. Só que aqui não tínhamos a menor relação familiar com nenhum deles. Imagina isso no Brasil?)
Chegamos e sentamos. Essa família parecia ser mais rica, e tinha até um Land Rover na porta (de uma familiar que veio da cidade passar alguns dias). Nós, na verdade, fizemos questão de só visitar famílias melhor abastadas; o motorista nos indicou que, nessa “xêpa” da cultura mongol de atender a qualquer um que venha, seria constrangedor para famílias pobres nos receber, pois sentiriam que não têm o suficiente pra nos oferecer (além de que seria muito sem-noção da nossa parte ir comer e beber na casa de quem tem pouco).
As muitas crianças estavam bem vestidas, como crianças de classe média no Brasil, e o ger era decorado com as muitas medalhas de hipismo que pessoas da família haviam ganho. Um monitor/televisão fazia-se presente como no outro ger, além de mochilas, um lugar de deitar, e um canto que fazia as vezes de cozinha. Tudo muito simples, mas sem miséria.
Agora a faca da hospitalidade é de dois gumes: se por um lado os bons modos mongóis obrigam-lhes a lhe servir como visitante, por outro você como visita não pode recusar. E nos serviram tigelas de kumis, o leite de égua fermentado, tradicional bebida mongol que eu já havia mostrado antes. O motorista animadamente virou várias. A minha eu enrolei um tempo, até passar à minha amiga canadense, que por sua vez passou ao motorista, que bebeu.
Eu naquele dia veria uma das crianças mais impressionantes que já vi: uma menina daqui de 4 anos que cavalgava mil vezes melhor que eu.






Tomamos rumo. Nós ainda tínhamos muita estrada pela frente hoje, e só chegaríamos ao nosso acampamento seguinte às 11h da noite. Ora, não é tão tarde assim, você pode pensar, mas aqui na Mongólia não há estradas, só a vastidão esperando para ser cruzada. Perder-se é a coisa mais fácil do mundo — de dia. De noite então, saber a direção parece tarefa impossível, mas Baina (o nosso leitado motorista) sabia.
Antes do pôr-do-sol, paramos para ver pela primeira vez o Rio Orkhon, e um dos mais importantes da Mongólia e dos mais historicamente relevantes da Ásia Central (se eu e você nunca tínhamos ouvido falar, é simplesmente porque não se estuda a Ásia Central nas aulas de História no Brasil).

A últimas duas horas de viagem à noite foram particularmente dolorosas, com pedras enormes pelo caminho e a kombi a nos sacolejar lá dentro.
À noite, após chegarmos, a comédia (humor perverso) foram — já tudo escuro, num breu ótimo para mirar as estrelas, mas péssimo quando se quer ir ao banheiro no campo — os colegas se perderem no caminho. Um francês sumiu, reapareceu eras depois dizendo que se desorientou no caminho de volta e se deparou com os olhos brilhantes dos yaks (os bovinos peludos daqui) no escuro de repente.
No dia seguinte eu cavalgaria, tomaria banho de cachoeira, e veria tudo aquilo que o breu da noite passado não nos havia deixado ver.








Eu e a minha amiga canadense resolvemos que desceríamos ali ao vale e nos banharíamos ali naquela cachoeira. Depois das gélidas águas do Lago Baikal, estávamos duros na queda. (As águas aqui da cachoeira também estavam bem frias, porém menos. Na falta geral de banho que foi este tour, toda oportunidade de banhar-me era bem vinda, ainda mais banho de cachoeira, mesmo fria.)




O que os meus olhos não haviam visto na noite anterior e que não gostaram de ver ao raiar do dia foi a imensidão de lixo que está sendo gerada aqui. Plástico, embalagens não-biodegradáveis… o que um povo nômade, longe dos centros urbanos e da coleta de lixo, vai fazer com isso? Acumula-se em pilhas imensas, que o vento leva e os animais espalham. A coisa é séria.
A vida tradicional deles não foi feita pra produtos que não se degradam nem se reutilizam. (Na verdade, a de ninguém.)

Lamentei, assim como admirei a beleza natural que agora está sendo maculada com essa sujeira, mas seguimos caminho. Ainda viria muito da Mongólia Central pela frente. O nosso destino na estrada hoje era Karakorum, a antiga dos mongóis do século XIII.
Nós tínhamos muitas horas de estrada até lá. Eu fecho este post com uma parada que fizemos no caminho, quando Baina, o motorista, avistou um vilarejo que estava festejando Naadam (o festival nacional de toda a Mongólia, que eu já havia presenciado na capital Ulaanbaatar).
O folia guarda uma semelhança curiosa com os festejos rurais brasileiros, apesar de toda a distância cultural que nos separa. Carros estacionados pareciam ter escolhido um lugar naquele “nada” do meio das estepes, e moradores de vilarejos próximos montaram barraquinhas, vendiam coisas, e no centro das atenções havia os competidores de luta-livre mongol sob os olhares de todos — inclusos os dos monges budistas.
Tonéis plásticos azuis guardavam litros e litros de kumis, o leite de égua fermentado que era servido continuamente (e gratuitamente) por mulheres em tigelas a todos que chegavam, ou a quem já tivesse terminado uma tigela anterior. Elas não paravam, e eu evitei a todo custo cruzar o olhar com o delas para não receber uma. Ao mesmo tempo, outras circulavam com garrafas e copinhos de vodka — influência russa e soviética — distribuindo a pinga também gratuitamente. Alguns mongóis, de bochechas que há muito já tinham passado do rosado ao vermelho, claramente já haviam tomado todas.
Alguns jovens monges budistas, com um quê adolescente de quem tinha escapado do mosteiro pra vir ver a festa, notavam-se em seus hábitos em cores rubras e laranjas no meio do povo.
Abaixo um pequeno vídeo que fiz da competição de luta-livre a que todos assistiam, e algumas fotos do humilde festejo de vilarejo. Nos vemos em Karakorum.







Continua…
parabens gostei muito!
Uuuuuuu. Que beleza!… natureza linda, ja com bastante verde… belas colinas…que belos animais, familias interessantes com suas acomodações diferentes e costumes, crianças lindas,curiosas, habilidosas; que cultura e hábitos sui generis, que experiencias…e que viagem!…apesar das pedras, percalços e obstáculos.
Linda região, maravilhosa a natureza, que retorno fascinante e gostoso ao ambiente com água.Que belo rio e que gostosa cachoeira. imagino que o banho foi ótimo. Maravilha. Linda postagem. Feliz em conhecer essa Mongólia da qual nada se sabe pelo lado de cá. Nem os professores, nem os estudantes, Bom contar com um viajante para abrir essas portas e mostrar essas realidades. Valeu, viajante, q que venha mais Mongólia,
Como sempre é muito preocupante essa mar de plásticos que se espalha hoje em dia pelo mundo inteiro e que tanto mal causa a todos em particular aos animais que o ingere e morre, alem do ambiente que se degrada. Ha de se implementar politicas de combate a esses restos de consumismo que tanto enfeia e destrói o ambiente, inclusive com educação das pessoas além do recolhimento e reciclagem dos resíduos..