Uma das coisas de que mais me satisfaço na vida é de ter amigos em vários países, de várias culturas. Acho fascinante como os modos, as normas e os costumes variam. E como ao mesmo tempo todos têm traços humanos em comum.

Aqui estava eu, no “fim do mundo” no Leste Distante da Rússia para conhecer esse país de ponta a ponta e, de quebra, dar uma passadinha pra dar um “oi” a uma amiga russa daqui e sua família. (Eu sempre alerto os meus amigos estrangeiros que tenham cuidado ao me convidar para visitar suas regiões, porque mesmo se for na lua, eu vou.)
À estação de Blagoveshchensk, maior cidade da Região de Amur (Amur Oblast, a categoria federativa abaixo de “república” em nível de autonomia dentro da Rússia), estavam a mãe e o avô de Irina, a minha amiga. Ela própria ainda estava na China, onde vive com o marido, mas por vir visitar a família em poucos dias. (Os russos daqui, como você há de deduzir pelo mapa, são muito mais familiarizados com a China que com a Europa. Vários aprendem chinês como segundo idioma e sequer jamais puseram os pés na Europa.)
Brasileiros que não viajam foram enganados por um mito de que só no Brasil as pessoas são calorosas; de os estrangeiros são em geral “frios”, sobretudo os de regiões frias. E o mito de que só no Brasil as pessoas distinguem em tratamento os amigos e os estranhos. (A tal balela lá do “brasileiro cordial” que Sérgio Buarque de Hollanda teria evitado o embaraço de publicar se tivesse viajado um pouquinho mais antes de escrever, para conhecer os outros de quem estava distinguindo os brasileiros.)
Faz-me rir. Aqui na Rússia tal separação entre amigos e “outros” é imensamente maior. Todo mundo que já tenha visitado o país sabe que os russos sabem ser rudes como poucos, sobretudo com quem nunca viram. Já o que menos visitantes conhecem é o seu lado aconchegante e caloroso, familiar.
Quando desembarquei na estação, eram 10 da manhã de domingo. Eu já sabia, por Irina, que seus pais viriam me pegar. Eu lhe perguntei como eu os reconheceria, ao que tive como resposta um “Não se preocupe; eles sabem quem você é“.
De fato. Não andei nem dois minutos e uma senhora ligeiramente pesada, de seus 50 anos, óculos, cabelos curtos arrumados e tamancos elegantes me gritou pelo nome, acenando pra que eu viesse. Ao seu lado, um senhor idoso, de calças sociais com camisa por dentro, cabelos brancos penteados pra trás e fumando um cigarro, observava. (Levei um tempo tentando saber se aquele era o pai de Irina ou quem era. Era o avô materno, Seu Yuri.)
Nenhum dos dois falava uma única palavra de inglês, e o meu russo é extremamente limitado, mas isso não nos impediu de ter ótimas conversas e sair para comer. Rimos com os carros que aqui podem ter o volante na direita ou na esquerda, e fomos comer num café com uma simpaticíssima garçonete. Na Rússia, todo santo dia eu via pelo menos uma mulher — uma garçonete, a recepcionista do hotel, uma vendedora de sorvete, quem fosse — que eu dizia pra mim: “Com essa eu me casava”. (Devaneios de libriano.) É uma coisa de louco. Esqueça aquelas tias soviéticas pesadas dos tempos de outrora atendendo nos bistrôs; elas ainda estão aí, mas hoje é cada vez mais a crème de la crème da bela juventude russa. A mãe de Irina pediu uma abastada porção de fritadas de batata com creme por cima, e eu fiquei com um omelete.
Eu ficaria por conta alguns dias, até Irina chegar da China. Seu Yuri e sua filha me deixaram na pensão que eu havia reservado, e se foram por ora. Lá eu fui acolhido pelo olhar fiscal da senhora da recepção com aquele comportamento gerencial de dona de pensão. Achou estranhíssimo que eu não tivesse visto no passaporte (brasileiros não precisam), e chegou até a dar um telefonema —sabe-se lá pra quem, se para Vladimir Putin ou pra o neto olhar no Google — pra confirmar se era esse mesmo o caso, até que se convenceu.
A senhora ainda fez toda uma cerimônia porque não havia água quente na pensão, e quis que eu a acompanhasse até um outro banheiro, que não o do meu quarto, onde, sim, havia água quente; e eu, que já estava querendo encerrar aquele prólogo todo, lhe disse que não tinha problema, que tomava banho frio mesmo, no calor que estava na Rússia.

Blagoveshchensk, de nome mais pronunciável se você o separar em dois (Blagoviésh-tchensk), não é uma cidade pequena. Aqui temos 250 mil habitantes, o que é bastante para o Leste Distante da Rússia. Seu marco principal é o Rio Amur, que aqui é a fronteira com a China. Do outro lado você avista a cidade chinesa de Heihe, com mais de 1 milhão de habitantes — o que para a China é uma miudeza.

Como praticamente todas as cidades russas da Sibéria e deste Leste Distante, Blagoveshchensk surgiu como um entreposto comercial de exploradores e mercadores que “desbravaram” este leste do norte da Ásia durante os séculos XVI a XIX. Muitos desses exploradores eram cossacos, povo eslavo do sul da Rússia que se tornou notório por vir ocupar (para a Coroa Russa) estas regiões de fronteira.
Você talvez não imagine, mas esta região onde está Blagoveshchensk era, na verdade, parte do império chinês, região da Manchúria da Dinastia Qing (a última) até 1858. Esse foi o ano de fundação de Blagoveshchensk, que significa “cidade da boa nova”.

Uma curiosidade é que não há ponte entre os lados russo e chinês. Dizem que isso vem da época da Guerra Fria, quando havia tensões entre a China e a União Soviética. Mas a verdade é que até hoje ninguém se mexeu para construir uma, embora digam aqui que está nos planos. Apenas um ferry faz a passagem entre um lado e outro.
Eu estes dias estava por conta, só que não. Irina me pôs em contato com uma série de amizades suas que me ciceronearam abastadamente aqui em Blagoveshchensk. De repente, eu me vi com encontros marcados com Kristina, Lina, Danila e Natasha. (Quem estiver imaginando garotas russas de programa ou que eu “saí pegando” todo mundo, cuidado: essa é a mesma pré-concepção que os estrangeiros têm das mulheres brasileiras. As russas são bastante femininas, sim, mas não quer dizer que sejam “fáceis” ou deem mole pra todo mundo. A maioria era comprometida, e Danila em russo é nome de homem.)
Familiarizei-me e andei quilômetros pelas ruas de Blagoveshchensk, por entre os prédios soviéticos todos iguais e pela parte mais contemporânea do centro. Há um promenade bem agradável à margem do rio; o Museu Regional de Amur vale a pena para conhecer mais sobre a região; e há lindas igrejas ortodoxas, como noutras partes da Rússia. Distraí-me um par de dias conhecendo os amigos de Irina e vendo esses lugares.

















Quando Irina chegou, a minha estadia aqui se transformou completamente num programa de família.
Numa dessas casas da rua de chão viviam os seus avós, Seu Yuri e Dona Valentina. Com um vestido simples e ar bondoso mas cansado de quem tem a saúde frágil, Dona Valentina (a bábuchka, “vovó” em russo) nos recebeu com geléia de framboesas do jardim, pão, sopa, mel que recebia até hoje da empresa estatal pelos anos de lealdade demonstrada, e salada de tomates e pimentões do jardim — sempre com creme de leite por cima, como é hábito na Rússia. Irina se regozijava de experimentar daquele frescor novamente, ela que vive em meio às comidas altamente processadas da China.
Tudo era muito simples, parecendo ter mudado muito pouco com o passar das décadas.




Eu olhava tudo aquilo e parecia que estava vivendo novamente na realidade de quando minha avó era criança, nos anos 1930. As roupas, os lugares, a (falta de) tecnologia. Fogão a lenha e banheiro de madeira sem descarga? A máquina de costurar parecendo ser do começo do século XX, os tapetes e os quitutes da vovó. Com um leve exagero, parecia que eu estava diante da minha bisa ou trisavó — ainda que Dona Valentina não tivesse nem a idade da minha mãe. Mas assim são as tradições aqui na Rússia, fortes e arraigadas.
Se eu puser um efeito na foto, fica parecendo que eu viajei no tempo e fui ter com as pessoas nos anos 1940 em vez de quase 2020.

Você há de lembrar que a União Soviética nunca experimentou a revolução cultural que o Ocidente viveu a partir dos anos 1960. Então tanto as coisas quanto as pessoas e seus costumes sociais são muito tradicionais aqui na Rússia. O comunismo soviético rompeu à sua própria maneira com muitas das tradições antigas, mas não todas, e muitas delas estão voltando.
Não se equivoque achando que eles “ficaram para trás” e agora querem “tirar o atraso” para ficar como o Ocidente. Pelo contrário, muitos russos acham que o Ocidente está é debandado (como diria a minha avó sobre o mundo de hoje), e preferem muito mais se ver como bastiões das tradições e dos bons costumes. Eu aqui encontrei pessoas de menos de 30 anos emitindo opiniões que no Brasil seriam consideradas quase surreais entre jovens, como moças dizendo que o certo é que o homem tenha a última palavra nas decisões em casa (e não era a velha piada do “sim, senhora”; era sério).

Naquela noite, teríamos o jantar de aniversário do pai de Irina (que também se chama Yuri como o sogro) num restaurante chinês. “Eles aqui ajustam a comida pra o gosto russo, com menos sal e sem pimenta“, informou-me Irina animada, ainda que a ausência de pimenta pra mim não fosse algo animador.
Nós éramos poucos. Basicamente: os pais de Irina, ela própria, eu, e um par de amigos do pai. Foi curioso ver como estas festas aqui se dão. Pra começar, é algo muito mais íntimo que as festas “convida todo mundo” comuns no Brasil, em que você pouco consegue falar com o aniversariante.
Aqui ninguém mais sabia inglês, mas Irina atuava como intérprete pra mim ali entre os sentados. Seu pai era um sujeito que falava pouco, ao menos até as primeiras doses. Aqui o copinho da dose de vodka já vem estrategicamente presente na arrumação de mesa. E, assim como uma jarra de suco e uma cesta de pão, a garrafa de vodka chega como entrada no restaurante. Pouco a pouco iam tomando, e daqui a pouco já era. Os sorrisos iam se abrindo; as reticências, diminuindo.
A parte que achei a mais interessante foi quando cada um fez uma declamação ao aniversariante (eu fui pulado). Em turnos, na hora que achasse conveniente mas sem fugir ao dever, cada um se levantava e fazia um brinde com palavras de congratulação ao aniversariante. Às vezes havia até texto escrito que a pessoa preparou de casa. O pai de Irina, reservado homem russo de agora 52 anos, a esta altura do jantar já um pouquinho amaciado pela vodka, só reagia com aquele olhar de “não vou dizer nada, mas porra, brigado aí”.
À hora do bolo, no final, mandaram pedir chá preto para acompanhar. Ficaram horrorizados quando eu disse que, no Brasil, habitualmente se come bolo de aniversário é com refrigerante. “Mas refrigerante não é saudável!“, protestaram em uníssono. (Como se bolo de aniversário fosse.) “Chá combina muito melhor com bolo“, concordaram todos em consenso, Irina me olhando com um sorriso de “que coisa maluca essa de se tomar refrigerante com bolo, onde já se viu isso…”.
Tomei meu chá preto com bolo.

Aquilo ali ainda rendeu. A mãe de Irina havia preparado em casa um jogo em que cada um pegava uma coisa escrita num pedaço de papel. A pergunta no ar era “Por que eu vim pra esse aniversário?“, e você tinha que ler a “sua” resposta em voz alta no papel. As respostas variavam entre coisas tipo “Pra comer de graça”, ou “Pra me esconder da polícia”, e os russos riam litros entre si. Depois ainda houve um outro jogo de adivinhação pra identificar seriados de TV russos a partir de pistas, e eu ficava ali só saboreando o meu chá e observando as diferenças culturais a que me referia no princípio do post.
No dia seguinte eu já iria embora, e nós fomos a um parque antes do meu trem.
Você pode não suspeitar, por todo o industrialismo cinzento soviético, mas muitos russos têm uma relação bastante idílica com a natureza. Não é um ambientalismo à moda ocidental, mas sim aquela coisa quase tolstóica da contemplação, do estar ao ar livre, apreciando o frescor da natureza (o cheiro dos pinheiros, o correr das águas, etc.) mesmo que a paisagem não seja estonteante. É aquela coisa arcadiana, que remonta a um imaginário tradicional da vida simples, e que faz com que muitos russos possuam datchas (casas de campo, às vezes sem encanamento, nem eletricidade nem nada de moderno) para passar dias assim no campo. É uma coisa comum aqui.
Entrei mais uma vez no carro do Seu Yuri (avô), que foi com Irina, eu, e a criança da foto mais acima. O garoto era um pouco autista (de verdade), mas se apegou comigo que foi uma beleza. Enquanto ele e eu corríamos por aí, Seu Yuri fumava seus cigarros. Às vezes nos parava e comentava — com a tradução de Irina — coisas da vida, sobre como aquela casa foi ele quem ajudou a construir, ou como havia 10 indústrias aqui em Blagoveshchensk no tempo dos soviéticos e hoje apenas umas três. Não era nostálgico, todavia; era um desses senhores práticos, um desses homens de antigamente acostumados a fazer de tudo e a se queixar de muito pouco.




Dali ainda ganhei uma visita guiada de Irina no Museu Regional de Amur, e retornamos a Dona Valentina para eu tomar um banho (naquele esquema de banya que mostrei mais acima) e uma sopa antes de tomar o trem. Despedi-me dela com uns três abraços. Como as senhoras de antigamente no mundo todo, ela me deu uma sacola de tomates e pimentões para levar comigo no trem. Quis me dar ainda mais legumes pra levar, mas não havia como.
Em bom espírito familiar russo, foram vários me levar à estação ao fim da tarde. O sol se punha bonito no horizonte, e tínhamos minutos ainda para algumas fotos. O meu trem rumo a Khabarovsk, mais a leste, já aguardava esperando diante do bafafá de passageiros chegando. Teríamos direito a tchauzinho da janela do trem pelo lado de dentro às pessoas que ficaram na plataforma e tudo aquilo.

Algum tempo depois, eu viria a saber que Seu Yuri faleceu. Fiquei triste, mas contente de ter vindo a tempo de conhecê-lo. Deixo o post em homenagem a ele. A vida segue, e eu seguia rumo a Khabarovsk.
Fiquei muito comovido com o POST. Também me fez lembrar de meus avós. É interessante vc perceber como no fundo somos todos parecidos nalgum grau.
Parabéns pelos posts e pelo blog, Mairon. Nos faz viajar contigo, especialmente nessa travessia pela Rússia e Mongólia… te admiro muito!
Muito obrigado, Fred! E seja bem vindo nas viagens.
Uuuuuuuuuu!… estou encantada. Adoro esse ambiente bucólico de familia de cidade do interior e suas riquezas de amizade, de cultura, de comilanças e de simplicidade. e que cidade bonita. Belas moças tambem. A minha amiga tussa tambem é muito bonita. Tem as russas um belo tipo fisico. A senhora se parece com a minha tia e madrinha. Uma simpatia. O senhor esta muito bem, meu jovem. Parecia dono da casa hahaha.
A natureza é linda. este céu azul com belas e amareladas nuveis está um encanto. e as aves no céu tornam a paisagem muito româticas. Linda paisagem. Um pouco nostálgica com o trem e a ideia de deixar esse paraíso e pessoas tão simpaticas e acolhedoras.
Adorei a chamada no bobalhão do Sergio Buarque de Holanda com suas ideias desconectadas com a realidade. É o que dá falar sem fundamento, e inventar o que lhe dá na telha. O pior foi que com essas baboseira terminou criando uma falseta do brasileiro cordial etc e ta que até hoje é tida como verdadeira. hahahal. Balela pura hahah
Amei as crianças, as estatuas nas praças, acho lindas, as belas construções, as lindas e coloridas igrejas o charmoso museu, os parques gostosos e verdes, e a história da cidade de nome enorme haha, Mas o ponto alto alem da recepção familiar, das experiencias e da natureza, foi a orla linda do rio, Belissima. Um pouco parecida com parte da orla de Istambul no lindo Bósforo, embora mais florida.Amei e gostei muito da família e do seu jeitinho de ser. A partida é sempre dolorida. Mas faz parte do show. Linda postagem e bela região. Acho que moraria no leste distante hahahah
E *
russa*
nuvens *
romântica*
etc e tal*
Gosto muito do blog.
Mas não cometa uma injustiça tamanha com SBH. O argumento do homem cordial não é esse. Não é nenhuma “baboseira”. Por cordialidade ele falava de uma das facetas do nosso privatismo enquanto sociedade e do uso dos afetos para permitir a mistura entre público e privado. Simples assim.
Olá, Daniel! Obrigado, e bem vindo!
Perdoe a minha forma algo “atravessada” de discordar de SBH. Sua síntese foi boa. Eu apenas discordo do autor quando ele fala em “privatismo”, ou nessa mistura do público com o privado através das relações pessoais e afetivas, como algo particularmente característico da nossa sociedade. Na verdade, ele no mundo me parece ser mais a regra que a exceção.