
A Armênia é aquele país conhecido (de nome) por muitos, mas visitado por bem poucos. Localizado entre a Turquia e a Rússia na região do Cáucaso, ele está naquele confim da Europa aonde poucos ocidentais vão.
Europa? Sim, ou não, a depender da definição de Europa que você usar — mas saiba que este é um assunto precioso e sensível para os armênios, que gostam de se destacar como o primeiro povo a abraçar o cristianismo como religião oficial (em 301 d.C.), e que prefere se identificar culturalmente com os (outros) europeus que com o Oriente Médio muçulmano.
É um país do tamanho do Estado de Alagoas, mas um povo de projeção mundial. Quem no Brasil não se recorda da Dona Armênia, a personagem interpretada pela atriz (de verdadeira origem armênia) Aracy Balabanian? É uma de milhões de armênios espalhados mundo afora, como o também ator Stepan Nercessian, ou o famoso cantor armênio-francês Charles Aznavour (que na realidade se chama Aznavourian), e praticamente todo mundo de quem você já ouviu falar e cujo sobrenome termina em “ian”. (Sim, isso inclui as Kardashian.)
Vir aqui foi fascinante.

Estamos no calor de agosto, verão no hemisfério norte e mês particularmente tórrido aqui no Cáucaso. Os dias são de 40ºC, assim como os invernos são de temperaturas abaixo de zero. A Armênia tem um clima continental de estações muito bem pronunciadas.
No aeroporto ao desembarcar, nunca vi tamanha inabilidade em formar fila. Viajar em meio aos armênios é tipo “Férias com a Família Buscapé”, coisa assim. A própria imigração parece Black Friday às portas do Magazine Luiza. Mesmo com o divisor de fluxos, que força você a seguir em fila, as pessoas pareciam mais uma boiada. Todo mundo segue embolado, com alguns ativamente tentando se espremer pelo lado e ir passando à frente. Como 90% das pessoas estão na mesma, resta apenas seguir em frente tentando acotovelar-se à frente dos outros.
(Eu já havia experimentado isso há alguns anos, quando cheguei a Moscou pela primeira vez e, por azar, ao mesmo tempo em que um voo vindo da Armênia. Não havia fila para a imigração: havia um bolo de gente disputando espaço. Eu e meus amigos brasileiro e italiana, inábeis, fomos os últimos a ser atendidos, 45min depois. Mas agora desta vez eles estavam lidando com alguém mais experiente.)
O oficial de imigração era um frescão, um homem de seus 35 anos com ar de tédio, mascando chiclete. Brasileiros desde 2015 já não precisam de visto para visitar a Armênia, mas ele olhava o meu carimbado passaporte de frente pra trás, de trás pra frente, e me perguntava por que eu vim para a Armênia. “Pra conhecer, ô turrão!”, deu vontade de dizer. Queria ver passagem de ida e volta pro Brasil, só que eu nem estava vindo nem indo para o Brasil. Ele levantou-se e chamou dois outros homens, que pareciam mais atentos e me cumprimentaram. Depois de circularem e olharem múltiplas vezes para o meu passaporte, como se a decisão dependesse do irem com a minha cara ou não, deram-me um “welcome” finalmente.
Do aeroporto para a cidade, você tem a opção cara e a barata. Eu, naturalmente, sempre opto pela segunda. A cara é um táxi pré-pago (o décuplo do preço do coletivo) ou negociado com os taxistas ladinos daqui. Já a opção barata é a van coletiva, o airport express, a coisa mais prática do mundo e que deixa você na Praça da República (coração da cidade) pela migalha de 300 drams, o equivalente a menos de um dólar. Só se certifique de primeiro tirar ou trocar dinheiro no aeroporto e comprar algo para adquirir miúdo, caso contrário o motorista pode não ter troco. Comprei um café e lá fui eu a Erevan.







O centro de Erevan é um brinco. Todo ele foi desenhado — há um século atrás — pelo arquiteto armênio Alexander Tamanian, que projetou uma cidade de amplos bulevares, avenidas de contorno ao redor do centro, e muitas áreas verdes. (Assemelha-se ao miolo de Beirute, no Líbano, só que sem a guerra civil, o terrorismo e a má governança de lá.)
Embora a Armênia esteja longe de ser um país rico, algumas avenidas no centro chegam mesmo a ser glamurosas, com lojas de marcas internacionais (Swarovski, L’Occitane, Ermenegildo Zegna, etc.) em plenas calçadas — coisa que no Brasil precisa ficar escondido em andar alto de shopping.





Por aquelas ruas eu caminhei com minhas mochilas até chegar à acomodação. O albergue, na prática, era um apartamento extra no andar de cima, no prédio onde moravam o dono, Aram, e sua família. Aram era um sujeito engraçado, embora não o soubesse. Tinha olhos grandes, com os quais fazia um olhar sério, mas era dado a fazer caras e bocas enquanto explicava as coisas. Tenho certeza de que as crianças devem adorá-lo.
O lugar era um forno. Dois ventiladores ficavam ligados permanentemente, na sala do apartamento e no quarto onde me instalei, mas o prédio de concreto naquele verão não ajudava. Eu não estava sozinho: no quarto-dormitório ao lado havia uma garota chinesa, que atendia pelo inesquecível nome de Bimbim, e uma filipina cujo nome eu esqueci. Eram simpáticas, mas como nas culturas asiáticas impera a segregação de gênero, elas acharam que dar uma volta comigo na cidade seria comprometedor. Saí eu.

Essa escultura e outras ficam numa das partes mais simpáticas da cidade: as Cascatas (cascades), um jardim algo babilônico com fontes, plantas e obras de arte por entre os prédios cor-de-areia que marcam Erevan.



Naquela tarde, três pessoas achariam que eu era iraniano. Não é de se admirar — embora eu tenha ficado admirado —, já que o Irã está aqui vizinho e, quando fui lá, poucos diziam mesmo que eu era estrangeiro. Não me consta ter ancestrais persas, mas nunca se sabe.
Por mais que a Armênia goste de ressaltar a sua singularidade étnico-linguística e não se dê muito bem com metade dos seus vizinhos (o Irã, para a minha sorte, é um dos “amigos”), a cultura social aqui até onde posso ver se parece muito com a dos outros países da região (Irã, Azerbaijão, Turquia, Líbano…).
Os homens com seus paletós abertos e calças compridas sociais, aquela pose tradicional de “pai de família”, e olhar atento às malandragens nos arredores. Você os identifica facilmente pelo nariz bem pronunciado, à là Luciano Huck (embora nem sempre tão corvino). Os rapazes parecem algo fãs de camisas apertadas, e aquele andar de “dono do pedaço” que tem tudo sob controle. Já as mulheres são elegantes, tão refinadas quanto as russas, embora de biotipo bem diferente: cabelos escuros, pele morena, e também seus característicos narizes pronunciados (nunca haja de dizer isso a elas!).
Nenhuma dessas semelhanças é acidental, todas elas são históricas. Permitam-me uma breve digressão para dar o pano de fundo, antes de mostrar o que mais vi em Erevan.
Os armênios, embora sejam um povo de grande apego à sua identidade nacional, nem sempre tiveram seu próprio país. Eles são citados desde os tempos de Ptolomeu na Grécia Antiga, e tiveram seus próprios reinos na antiguidade, mas passaram a maior parte da História dominados por impérios vizinhos — fossem os persas (iranianos), os turcos, ou os russos.

Não vou repassar a história inteira dos armênios; basta saber que seus reis abraçaram oficialmente o cristianismo em 301 d.C. (antes mesmo do Império Romano, que o faria em 323 d.C.), fundaram a Igreja Apostólica da Armênia, a instituição cristã mais antiga do mundo; em 405 d.C., elaboraram esse curioso alfabeto que só eles usam; e essas particularidades os ajudaram a preservar uma identidade própria ao longo dos séculos. Eles se preocupam muito pouco com o lugar onde você nasceu — ser armênio é o sangue, a língua, e a religião.
À altura do século XVI, os armênios acabam divididos entre o Império Turco Otomano de um lado, e o Império Persa Safávida (a dinastia que construiu a bela cidade de Isfahan) do outro. Assim seria até o século XIX, portanto por 300 anos os armênios estiveram misturados aos persas, turcos e outros. Não é à toa que seus costumes e maneiras sejam parecidos.
Quem ilustra muito bem isso é a gastronomia.






Em 1920, os armênios obtêm pela primeira vez a soberania na época moderna, mas não sem antes um banho de sangue. O quiprocó se deu quando, em 1914, o Império Turco Otomano entra na Primeira Guerra Mundial ao lado dos alemães e austríacos. Como eu já frisei antes, até o século XIX os impérios eram quase todos multi-étnicos e multi-nacionais — neste caso, armênios, turcos, gregos e outros viviam lado a lado. Só nesse momento da História é que os sentimentos nacionais surgem e levam os povos a querer cada um ter o seu pedaço de chão separado.
A França e a Inglaterra atacaram os turcos, prometendo aos gregos e outros restaurar-lhes os territórios que queriam no então Império Otomano. Os turcos otomanos defenderam-se, só que os armênios — do lado de dentro — eram a favor dos invasores. O que se seguiu aí foi um genocídio de armênios por parte dos turcos otomanos como resposta em 1915. O uso da palavra “genocídio” é controverso, pois o termo não existia até ser cunhado para os judeus na Segunda Guerra Mundial em 1944, mas o que tivemos em 1915 foi, de fato, uma limpeza étnica e matança generalizada de armênios. Eles lembram-se disso até hoje, e não se dão com os turcos.
Se você tiver interesse em conhecer esse episódio da História, vá ao Museu do Genocídio em Erevan. Claro que aqui você verá apenas a versão dos armênios (com, a meu ver, certo exagero de atribuições malignas aos turcos), mas mesmo assim vale a pena.



Os armênios mal viram a cor da independência e, poucos meses após declararem sua soberania em 1920, caíram vítimas dos russos soviéticos. A Armênia foi engolfada como uma das repúblicas socialistas, e efetivamente virou parte da União Soviética. O uso da língua armênia foi suprimido, e a religião só sobreviveu por teimosia dos armênios.
É nesse período soviético que se constrói muito do centro de Erevan. (É devido a variações de transliteração do russo para o alfabeto latino que você encontra a cidade também com o nome de Yerevan, já que é com esse som que os russos leem o “E”. O mesmo ocorre com Ekaterimburgo/Yekaterimburgo. Em inglês, ao contrário do português, você verá mais as versões com Y.)



Só em 1991 os armênios recobraram sua soberania. Mas como isso é História recente e o país continua a ter laços econômicos fortes com os russos, praticamente todos os armênios sabem russo. (Compartilham com os russos também o gosto por sair sempre bem vestidos e elegantes. As pessoas daqui da ex-União Soviética às vezes criticam os europeus ocidentais por sua moda mais casual básica.)
Só que, ao contrário dos russos, a minha impressão é que os armênios interagem mais com você — o nível de indiferença diminui, há mais trocas de olhares, dirigem a palavra, às vezes puxam conversa, e há no geral um interesse maior em engajar-se socialmente. Ainda que não sejam fluentes em inglês, quebram o galho, e dá pra trocar informações com a maior parte das pessoas.
A economia daqui é fraquíssima, então prepare os seus drams e pelo menos aproveite os preços baixos. Tudo aqui é muito, muito em conta. O melhor de tudo, claro, é prosear com os armênios por aí.

Eu ainda veria muito mais da Armênia, seu legado histórico e suas tradições.
Por ora, deixem-me encerrar o post com aquele que provavelmente foi o lugar que achei mais interessante na capital. Matenadaran é uma espécie de museu que coleciona manuscritos antigos, pergaminhos e livros históricos ilustrados. É um mergulho no passado de obras bem preservadas nos mosteiros armênios ao longo dos séculos, e hoje agregados aqui. A qualquer um que goste de materiais históricos, é fascinante.
Recomendo muito pagar o adicional para ter um guia que possa explicar-lhe os detalhes e mostrar as principais obras do lugar. No meu caso, fui acompanhado por Lilith, uma armênia sorridente e baixinha de seus 45 anos. Era uma simpatia.









Garanto que a maioria de vocês, como eu, não imagina que Erevan — uma cidade de que, até alguns anos atrás, eu nunca sequer havia ouvido falar — pudesse ter tanto charme e coisas interessantes. Eu volto com mais da Armênia a seguir.


Ihhh que cidade bonita. Bela praça, lindos jardins, belos monumentos, os boullevares cheios de verde, belas construções, arquitetura portentosa, lindo jogo de luz, e que históricos documentos/livros//pergaminhos feitos à mão, de forma deslumbrante. Que beleza!… Importantíssimos esses assentamentos feitos pelo grande Avicenas e pelo não menos importante Copérnico; Ambos cada um por seu turno entraram para a História da Humanidade pelos seus feitos e legados. Não sabia que tinham documentos na Armênia.. Sei que Copérnico era polonês e tive o prazer de ver uma estatua sua em Warsaw. E que charmoso esse Museu /Biblioteca!… Uma beleza por dentro e por fora. e que tesouros guarda!… emocionante ver documentos grafados por Avicenas e Copérnico. Maravilhosos.
Coitados dos Armênios!… que história de lutas. Fazem muito bem em comemorarem a liberdade.
Gostei do estilo do metro. Lembra um pouco os russos.
A cidade tem um astral agradável. Em algumas partes, como no centro comercial, lembra Viena, embora sem aquele requinte da capital da Áustria.
Muito interessante essa lã in natura.
Adorei a pracinha linda com o chafariz, a opera da cidade e a graça ajardinada com o zigurate, ou à semelhança dele. Lindas .
Essa praça da Republica é magnifica. Os banquinhos decorados e o jardim enchem os olhos. Linda cidade.
Bela regiao. Surpresa por encontrar uma cidade bela assim numa regiao que imaginei simplies e rural.
O lado feio é a arquitetura soviética. E a parte a lamentar é a pobreza que se percebe nas periferias.
Quanto à bagunça, por aqui de vez em quando temos um mini Birkenau.
Parabéns viajante por nos mostrar mais uma bela cidade nesse mundão de Deus.
a praça*
Incrível post! Muito bem detalhado e cheio de dados históricos! Eu sou fascinado pelo Leste Europeu/Oeste Asiático e ver uma publicação como essa me dá orgulho! Vai, Brasil!
Super interessante e completo o teu post sobre a Armenia. Estive um mês no Irã e agora estou pensando por que raios não aproveitei para visitar a Armenia também. Vai ficar para a próxima viagem 🙂