Fogueiras acesas, ervas prontas, e famílias — espera-se que também prontas — para queimar o corpo do seu ente querido na beira do rio. O rio, que dantes devia ser um corpo caudaloso de água limpa, hoje é um riacho escuro sofrido com os males da industrialização sem consciência e da urbanização desgovernada. O ritual, todavia, persiste o mesmo.
Cachorros de rua passeiam no recinto enquanto um sacerdote organiza as toras de madeira para queimar. Faz-se uma fogueira na plataforma justo à margem, algo elevada, enquanto as mulheres descem as escadarias (os ghats) que vão até as águas para banhar ou benzer algo. Há resíduos por toda parte — restos de embalagens plásticas misturam-se às oferendas de flores e cestinhas com velas. As pessoas parecem naturalizadas àquilo tudo.
O morto, já envolto num tecido branco como uma múmia, é trazido e posto na fogueira para cremar até que sobre pouco do que foi a sua carne. Fumaças de incenso, posto também a queimar, dominarão o ar e o aroma do ambiente.
Ver tantas famílias levando a cabo o ritual com seus entes queridos em meio a tantos outros é assistir a um dos fenômenos mais carnais da experiência humana. É uma lembrança ensobriante da nossa mortalidade — e, quiçá, do quanto os nossos corpos são mundanos. Nada da assepsia nem do caráter privado e recluso dos rituais fúnebres ocidentais. Aqui você é lembrado de que é um dentre muitos, e que seu corpo veio do pó e volta para o pó.




O Ganges é o rio mais famoso do Hinduísmo, mas ele corta apenas uma parte do norte da Índia. As pessoas não viajam para lá: há ghats e rituais fúnebres em rios vários pelo mundo hindu. Todos eles são vistos com propriedades da fluidez e da renovação. No caso de Katmandu, estes rituais ocorrem aqui no Rio Bagmati, que corta a cidade, especificamente no templo shivaíta de Pashupatinath.
Da mesma forma que dentro do cristianismo você pode ter grupos redentoristas, jesuítas, entre outras variações — e no islamismo também —, no hinduísmo há variações regionais e correntes que, dentro dessa cosmologia hindu, reverenciam um deus mais que o outro. Shiva é dos mais populares, e essas correntes recebem o nome de shivaítas.
O Templo Pashupatinath é visita obrigatória em Katmandu. E a melhor hora de fazê-lo é ao fim do dia, umas 17:30 para pegar ainda o restinho de luz solar e assistir à cerimônia diária de aarti às 18:30. Aarti, um dos muitos rituais hindus, consiste em uma celebração com fogo, água e incenso em honra às divindades. Normalmente, sacerdotes circulam incensários e lampiões no ar, cuja chama é depois compartilhada com os fiéis, que cantam, entoam e batem palmas.
Enquanto o budismo tem uma aura monástica e ênfase introspectiva, o hinduísmo é cheio de festejos.

No vídeo abaixo você pega um pouco melhor a atmosfera do lugar, com sua música e o tom da cerimônia aarti.
A cerimônia toda dura uns 45 minutos, e seus tons iniciais de reverência recolhida soltam-se logo no que vira quase um forró. (Eu disse que o hinduísmo tende a ser festivo.) Veja o vídeo abaixo, com a sequência.
A congregação ganhou ainda mais energia. Afora algumas adolescentes alegres (uma diante de mim saltitava feito uma cabrita), dançavam as mendigas e uma ocidental trajada de hindu. Elegante, a moça. Já uma das nepalesas fez a alegria dos que a filmavam com celular. Num traje cor-de-rosa, ela dançava em rápidos movimentos bruscos — um para cada batida do tambor — como quem está com um caboclo arisco no corpo.
(As supracitadas não estão em foco, mas você pode ver a menina cabrita lá do outro lado diante de mim, e os braços da que está com o caboclo no corpo no canto inferior direito do vídeo. É uma folia só.)
Antes de visitar os ghats aqui de Katmandu, eu havia lido relatos de turistas que se sensibilizaram e acharam “forte” ou “pesada” a experiência de presenciar a cremação. Eu preciso dizer que, se você não se der ao trabalho de empatizar, será simplesmente fogo queimando. (Não há nenhum cheiro diferente de uma fogueira qualquer, exceto às vezes o incenso.)
No entanto, na hora que o corpo envolvido em tecido branco chega e você se dá ao trabalho de imaginar o sentimento da família, o cuidado e a atenção de pôr ali as flores ao lado, ajeitar as toras de madeira onde o fogo vai queimar… na hora que você se põe ali no lugar deles, dentro do que é possível ter de empatia humana mesmo através de diferentes culturas, você se sensibiliza.
Quanto a “choque”, não tive. Aliás, tive. Meu choque não foi a cremação, mas ver as pessoas atirarem garrafas plásticas e outros tipos de lixo no rio supostamente sagrado sem a menor cerimônia. Achei aterrador.
Ao fim do aarti, as pessoas descem as escadas do ghat para derramar na cabeça algo daquela mesma água do rio aonde atiram o lixo. Acham que o rio é eternamente o limpador de impurezas — mas precisam atualizar isso com uns conhecimentos de ecologia, tipo limites na capacidade de regeneração do ecossistema, pra entender que o rio não aguenta dejetos urbanos e lixos de todas as formas de uma cidade com milhões de pessoas. O vídeo abaixo mostra.
Dei umas boas voltas no templo, cruzei com os muitos macacos que habitam o lugar, e senti aquela atmosfera de “fim de tarde na praça” entre os muitos hindus que aqui frequentam. Os recintos do templo principal são vedados a não-hindus (você pode tentar argumentar com o guardinha, caso essa seja a sua fé), mas do alto é possível vê-lo e ter a dimensão deste esplendor. O rio passa ali no meio relativamente tímido, apequenado, ainda que fundamental a tudo que aqui se passa.
Deixo vocês com algumas fotos do lugar. Eu encerrava aqui esta minha estadia no Nepal, e rumava agora a outros recantos destes Himalaias.









No post seguinte, eu apresento como de costume as dicas e informações a quem pretende visitar o Nepal, antes de dar seguimento nas viagens.
Nossa, que cerimonial!… impressionante!…solene.. belo e triste. A partida não é fácil para ninguém. Muito significativo. Mas coitado do rio que recebe tantos dejetos, e restos humanos alem dos plásticos flores etc. Com certeza não tem essas visão ecológica. Estão todos no pensamento mágico-religioso.
Amei essas fotos do conjunto com m finalzinho de dia e com a noite. Lindas merecem um belo poster.
O cachorrinho está la de boa. E a menina dança muito mesmo.
Valeu viajante.