A trovoada caia lá fora enquanto eu tomava uma ducha no meu banheiro com luz azul. Eu estava num bom hotel, o Ramada Plaza, após uma noite no avião. Eu chegara de manhã para ficar apenas até a manhã seguinte — uma breve passagem, a coisa mais típica a se fazer no Panamá.
“Vai passar logo“, disseram-me na formal recepção sobre a trovoada quando entrei.
Um táxi havia me trazido aqui por 30 dólares, o salgado preço fixo para quem vem à Ciudad de Panamá (a capital) do Aeroporto Internacional de Tocumen, o qual às vezes me lembra um shopping de eletrônicos algo melhor que os de Ciudad del Este no Paraguai. Ele é uma verdadeira Miami de letreiros coloridos, vendedores às portas das lojas, e aquele bafafá de entra e sai de passageiros-clientes como se fosse Black Friday todos os dias.
Tudo vai em dólares, já que na prática o Panamá não tem moeda própria. Aliás, tem, mas só as moedas mesmo: as notas são de dólar americano. O máximo que o Panamá conseguiu fazer até agora — meretriz que fora dos Estados Unidos, ainda tentando libertar-se economicamente — foi usar atualmente o seu Balboa pareado ao dólar nas moedas de centavos.
Terminado o meu banho, terminava também a trovoada. Aceitei o café da manhã do hotel e saí para bordejar, a conhecer a cidade e, principalmente, o famoso Canal do Panamá. Hoje há um centro de visitas lá.


A Cidade do Panamá é uma cidade péssima pra se explorar a pé, o que junto a um péssimo transporte público cria a situação maravilhosa em que você depende dos adoráveis e trambiqueiros táxis (loucos pelos seus dólares) para se locomover. (Não se usa taxímetro, então pra todas as corridas você precisa negociar o preço, o que é um prato cheio para as malandragens com turistas.)
Trata-se de uma cidade espalhada, com prédios altos no centro e bairros pobres (e violentos) na periferia. A típica desigualdade latino-americana. São 1 milhão de pessoas aqui, um quarto dos 4 milhões do Panamá, que como os demais países da América Central é um país pequeno (menor que o estado de Santa Catarina; ver no mapa abaixo).

Não deixem de perceber a localização estratégica desse lugar para a navegação comercial — que antes, para ir do Atlântico ao Pacífico, necessitava contornar toda a extensão da América do Sul, dando a volta pela Patagônia e aportando em Valparaíso na costa chilena.

A sacada de fazer um canal que atravessasse o Panamá ligando os dois oceanos já existia ao menos desde 1534, quando a ideia foi mencionada por Carlos V, o então imperador espanhol. O pontapé inicial para sua construção, no entanto, partiu dos franceses em 1881. A inspiração e o know how vinham do Canal de Suez, feito em 1869 também pelos franceses ligando os mares Vermelho e Mediterrâneo no Egito, o que tornou desnecessária a circunavegação da África.
O que os franceses não imaginaram aqui, porém, foi ver 200 trabalhadores em média morrendo por mês de malária ou febre amarela (o nosso grande amigo Aedes aegypti é celebridade desde essa época). O projeto teve que ser abandonado, mas uma ideia valiosa assim não fica abandonada por muito tempo (pense em quanto de combustível naval a ser economizado, e quanto de dinheiro a ser ganho cobrando pedágio por essa passagem).
Foi aí que os Estados Unidos entraram em cena.
A maioria das pessoas não sabe que nessa época o território panamenho fazia parte da Colômbia, desde que esta obteve sua independência da Espanha em 1821. Em 1903, os Estados Unidos então fazem um acordo para construir o canal e controlá-lo “em perpetuidade”, como se aquela área fosse território seu. O senado colombiano nega-se a ratificar tal acordo, e o que os EUA fazem? Enviam a sua marinha de guerra, apóiam uma elite local interessada nas suas fortunas pessoais, e asseguram a secessão daquele pedaço da Colômbia agora sob o novo nome de Panamá.
Eu, não tendo outra forma de chegar ao Canal do Panamá que não fosse um táxi (pois a oligarquia local que controla o país continua com o coração em Miami e sem interesse o bastante para construir um transporte público que preste para as pessoas), pedi ao hotel que me chamasse um.



Há um pequeno museu sobre a história do canal, restaurantes, cafés, lojas de souvenirs, e a área de onde você pode ficar assistindo ao trânsito de embarcações. Não vou lhe dizer que é a coisa mais empolgante do mundo, mas tem seu significado.
Não me demorei mais que o necessário. Havia mais (e lugares mais bonitos) da Cidade do Panamá para conhecer, incluso um centro histórico colonial simpático: Casco Viejo.
Quando eu vim do centro da cidade até o canal, paguei 10 dólares ao curioso motorista, um rapaz escutador de reggaeton — um motorista gordo, daqueles bem barrigudos que se sentam de tal maneira na direção do carro, parecendo tão bem encaixados ali no assento, que você imagina que ele jamais sairá dali.
Já a saída foi muito mais complicada, pois os taxistas já ficam salivando à saída de turistas no local. A dificuldade de barganhar um bom preço foi muito maior. Acabei indo com Seu Francisco, um senhor quase-idoso que era tipo pai do Oséas — aquele ex-jogador do Palmeiras com seu cabelo de macarrão parafuso — só que o desse tio era grisalho. Velho safado, primeiro quis me enrolar no preço da corrida, depois veio me oferecendo “unas chicas“. Taxistas eu acho que no mundo todo são dos maiores agenciadores desse tipo de coisa. (Na Indonésia, um certa vez me perguntou se eu não tinha interesse em “massagem com final feliz”).
Diante do meu desinteresse nas chicas que ele pensou em agenciar, ele veio me dizer o que eu devia ver no Panamá. Eu vi a hora de ele querer me levar até a Costa Rica e voltar. Acabamos passando em Casco Viejo, o centro histórico da Cidade do Panamá. O lugar é mais bonitinho do que as descrições e fotos da internet haviam me feito crer.




Em termos de segurança, finja que está no Brasil, portanto olho vivo. As desigualdades sociais aqui são muito semelhanças às que temos, e a criminalidade também.
Pedi ao taxista “pai de Oséas” que me deixasse na requintada (e bela) Avenida Balboa, talvez a principal da cidade. Dali eu seguiria a pé.



“Si no le gusta, no lo paga!“, me anunciou animada a mulher, dizendo que se eu não gostasse da manga não precisava pagar. Fiquei sem saber se era verdade, pois a manga estava boa.
É bem aquele programa domingo-em-família-no-parque, embora aqui com certa influência dos EUA maior que no Brasil. Em meio à pipoca, muffins e donuts, próximos a cachorro-quente e picolé daqueles de 50 centavos (de dólar, neste caso), de procedência duvidosa. (Chupei dois. Estavam até bons).



Eu prometi falar do chapéu-panamá. Esse tipo de chapéu (o que o fulano de azul aí na foto acima está usando), que você provavelmente crê ser original do Panamá, não é. Ele é original do Equador, tradicionalmente feito com uma fibra vegetal de lá.
O que ocorreu foi que Theodore Roosevelt, presidente dos EUA entre 1901-1909 (e primo distante de Franklin D. Roosevelt, que viria a governar os EUA no início da Segunda Guerra Mundial) foi fotografado pela mídia usando um desses chapéus numa visita que fez ao Panamá em 1904, no início da construção do canal. Daí se começou a chamar esse chapéu de “chapéu-panamá”.
O canal começou a operar em 1914, com o tal acordo “em perpetuidade” que os EUA obtiveram do então recém-criado governo panamenho. Somente em 1977, com o democrata Jimmy Carter, é que os EUA admitiram restituir esse pedaço do território — e, crucialmente, o controle do canal — ao Panamá em 1999. Graças a isso é que as receitas com o tráfego naval pelo canal hoje vão para o Panamá: 1 bilhão de dólares ao ano.
Provavelmente não lhe ensinaram isso na escola, mas os EUA chegaram mesmo a invadir militarmente o Panamá em 1989, quando acharam que seus bens no canal estavam ameaçados por um conflito civil fruto da ditadura militar que os próprios EUA haviam ajudado a instalar em 1968 — após os panamenhos elegerem democraticamente o candidato “errado”, alguém disposto a confrontar a dominância da oligarquia comercial que sempre governou o Panamá.
O país segue sendo usado como covil de especuladores financeiros, evasores de divisas, e toda aquela gente bonita que apareceu nos Panama Papers (uma série de documentos que vazaram revelando crimes financeiros de toda sorte, feita por empresários e políticos de todo o mundo, incluso do Brasil.) Há quatro advogados para cada médico no país, muitos deles especializados em abrir empresas de fachada para investidores internacionais querendo se beneficiar deste paraíso fiscal. O povo que se dane.

O sol ia caindo, e eu a imaginar como voltaria para o hotel. Sendo atrevido como sou, me dispus a retornar a pé. (Ideia de sabedoria duvidosa, pois o centro são pistas, viadutos e prédios, tudo claramente feito para automóveis e hostil aos pedestres.)
Parei num shopping pra comer, e o que mais há é fast food daqueles bem vagabundos. (Esqueça Giraffas ou os restaurantes a quilo com comida de verdade que você encontra nos shoppings brasileiros.) Como diz um amigo meu colombiano, na América Central, bem mais que na América do Sul ou mesmo no México, tudo é muito americanizado, no sentido de ser imitado dos EUA. A minha escolha foi um fast food chinês, só pra contrariar (mentira, é porque é mais gostoso mesmo).


Depois de muito suor para queimar as calorias do molho chinês e de muitas travessias à noite em pistas sem faixa de pedestre (pra que, se não há pedestres?), acertei chegar ao hotel pedindo informação em posto de gasolina e a seguranças de lojas de conveniências.
No dia seguinte, aguardava-me um dos mais belos (e menos comentados entre os brasileiros) destinos de toda a América do Sul. Fazendo o caminho reverso do famoso chapéu-panamá, eu iria agora ao Equador.
Panamá viejo não fica muito distante da cidade e tem ainda o biomuseu que é simpático e arquitetonicamente interessante.
E à época, 3 anos atrás, conseguimos chegar ao canal do Panamá de ônibus. O que sai muito mais em conta.
Por fim, tem ainda o território dos Kuna Yale, na região cara bengala, com artesanato e ilhas sobre um mar azul belíssimo.
Concordo que o Panamá é problemático, mas ele é mais do que a desigualdade gritante de “Panama City”.
Gostaria de conhecer este famoso e histórico Canal do Panamá.
Essas artimanhas norte americanas e sua imensa disposição para dominar e ganhar dinheiro às custas dos outros países são históricas e bastante conhecidas. Lamentável.
Tambem lamentável essa realidade latino-americana das desigualdades/violência/criminalidade/corrupção, acrescida em alguns lugares, como ai pelo problema em ser paraíso fiscal. Contexto difícil de resolver a curto prazo, a meu ver.
Gostei da Avenida Balboa e do Pacifico. Bela homenagem ao Vasco Nunes Balboa.
Fiquei também muito contente em ver o canal. Estava curiosa.