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Romênia

O subestimado centro histórico de Bucareste, Romênia

Voltar à Romênia é sempre divertido. Seu jeito bagunçado, que lembra em certa maneira o Brasil, junto com seu aroma balcânico, lhe dão um tempero especial nem sempre encontrado noutras partes da Europa.

Bucareste, sua capital, está longe de ser a mais cotada da Europa. Em verdade, poucos europeus lhe fazem caso — a maioria acha a capital romena horrível, dotada como é com seus prédios cinzentos de inspiração soviética, e quase desprovida da beleza encontrada em outras capitais do leste europeu como Praga ou Budapeste.

O que a maioria não se dá conta, contudo, é que Bucareste tem, sim, um centro histórico ainda preservado e que mostra algo da história do país.

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O Mosteiro Stavropoleos, de 1724, no centro histórico de Bucareste.

Era noite de Natal quando eu retornei à Romênia. Não a noite da véspera, mas a do próprio dia 25. Seria minha terceira vez no país, a primeira fora do verão.

O aeroporto Otopeni estava razoavelmente vazio, afora por alguns passageiros que chegavam e os onipresentes senhores taxistas, com seus gorros ou boinas de inverno, a observar e abordar turistas que chegavam. “Taxi?

Como adquiri ojeriza de taxistas, que são semelhantes na sua ladinagem em qualquer lugar do mundo, informo-me sempre sobre a maneira de chegar ao centro usando o transporte coletivo. Aqui em Bucareste é o útil ônibus 783 que leva ao centro — só que eu esqueci que estava na Romênia. Como no Brasil, aqui as coisas nem sempre são como deveriam ser. É uma delícia.

Descobri que o ônibus parte do andar inferior ao desembarque, após me consultar no quiosque de informações com uma moça loura, pesada e de olhos grandes, que os suspendeu do celular para me responder brevemente. Só que não dá para passagem no ônibus, o guichê de bilhetes já estava fechado, e a máquina automática dizia que a venda de novos cartões de transporte estava “indisponível”. Perguntei ao motorista, que descia para fumar já com o cigarro ainda apagado na boca, como fazer. De braços abertos e encolhendo os ombros, com aquele ar de motorista nervoso, fez uma cara de “Quer que eu faça o que?”.

Vou pular uma treta com uma senhora latino-americana que falava nada além de espanhol, e que queria recarregar um cartão já existente mas não tinha dinheiro. Tentei lhe pagar o recarregamento para que pudesse inserir crédito também para mim, mas ela por fim iria noutro ônibus. Voltei à mulher da informação para perguntar o que fazer, se ela vendia tickets, já que eu estava reticente em ceder a um dos treteiros taxistas, ainda mais na ladina Romênia, e ainda mais àquela hora.

— “A bilheteria está fechada, e a máquina não funciona”, disse eu em inglês. “Você aqui vende bilhetes?
— Não”, suspendeu-me novamente a vista ela para me responder.
— E aí, como é que eu faço para ir à cidade?
— De ônibus”, disse ela com a maior naturalidade do mundo.
— Como, se não tem como comprar passagem?
— Sem passagem”, disse me olhando como se eu fosse retardado.
— E se os fiscais me pegarem?”, inquiri.
— É Natal! Eles não estão trabalhando”, esclareceu ela com aquela cara de “dã!”

Feliz Natal. Você que achou que eu deveria ter ido de Uber, minha solução foi ainda mais em conta.

O motorista fumante ainda estava lá, e não quis nem saber se eu tinha passagem comprada ou não. Passamos pelo Arco do Triunfo de Bucareste, feito à imagem e semelhança do de Paris, todo iluminado, assim como os amplos boulevares da cidade. Perto da meia-noite eu desembarcaria na Piata 21 de Dezembro de 1989, dia-chave da Revolução Romena, e chegaria gratuitamente ao meu hotel. (Normalmente, um ticket teria custado 4 lei, o equivalente a uns R$4, com direito a dois usos, seja pra uma pessoa em duas ocasiões ou para duas pessoas juntas numa ocasião.)

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Bucareste com as largas ruas que a caracterizam, toda iluminada para o fim do ano. Pelo arco do triunfo desta vez passei só de ônibus, mas cheguei a mostrá-lo num post anterior.

Na manhã seguinte, antes de sair à rua, tomei café na cobertura do prédio — um quadrado com teto e paredes de vidro que me lembrava uma estufa. O dia ensolarado, poucos funcionários e quase nenhum hóspede na tranquilidade parada que ainda é o 26 de dezembro na Romênia. Na maioria dos países europeus, dia 26 também é feriado, pois as celebrações natalinas se alongam mais que no Brasil. (Depois as pessoas inventam estereótipos de que só no Brasil as pessoas fazem festa ou têm muitos feriados.)

Uma moça russa ainda em roupas de dormir e ares de celebridade mal-dormida circulava pelo buffet olhando para o celular, onde teve uma duradoura conversa em russo. Tomei meu café da manhã romeno, aqui repleto de saladas frias saborosas e de carne de porco processada (presuntos caseiros, salsichas, etc.) que dispensei, e rumei à rua. Era uma estadia breve em Bucareste.

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Mistura de neo-renascentismo do fim do século XIX, com algo de modernismo do início do século XX, e tradição cristã ortodoxa no que sobrou de centro histórico em Bucareste.

O centro histórico de Bucareste é praticamente a única área da cidade que não foi derrubada e substituída por “lindos” prédios cinzentos, todos iguais, de inspiração soviética durante o regime Ceausescu. Nicolae Ceausescu “reinou” entre 1965 e 1989 como ditador romeno aliado a Moscou durante a Guerra Fria. Foi executado no dia de Natal de 1989, após a derrubada do Muro de Berlim e a queda dos regimes comunistas na Europa oriental um a um.

Somente no centro resta algo dos tempos em que Bucareste era uma das cidades apelidadas de “Paris do Leste”, devido às influências francesas do tempo da belle-époque, final do século XIX. Como ficou independente dos turcos otomanos em 1878, época de auge da cultura francesa, houve muita influência da França sobre a nação romena, e não é raro ainda hoje encontrar romenos que falam francês (em vez de inglês) como segunda língua.

Aos poucos eu vou contando da História romena.

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Ruas no centro histórico de Bucareste.
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Pra quem gosta de arquitetura e de ver o casario antigo, é um prato cheio.
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O Banco da Romênia, fundado em 1888, pouco após a independência. Este prédio neoclássico é de 1904.
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Muitas inspirações parisienses aqui.
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Grandes colunas ainda preservadas.
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Calçadão com muitos bares e restaurantes no centro histórico de Bucareste.
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E muitos becos e ruelas onde dar voltas e encontrar algum recanto escondido.

O mais antigo do centro histórico de Bucareste são suas igrejas ortodoxas. A Romênia, como a Rússia, a Bulgária e quase todo o leste da Europa, segue dominantemente o cristianismo de teologia grega, não romana. Eu já falei mais sobre o cristianismo ortodoxo num post anterior.

Ao espectador, a diferença fica na arquitetura de inspiração bizantina, os espaços mais escuros no interior, pinturas sacras em vez de imagens esculpidas, e celebrações feitas todas em pé — caso você entre durante alguma missa.

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Basílica Ortodoxa de Santo Antão, chamada também de basílica da Corte Velha (Curtea Veche), a qual estava em reforma quando eu visitei. Trata-se de uma área histórica onde ficava a corte dos reis da Valáquia, esta região sudeste da Romênia. Era na verdade aqui, não na Transilvânia, que reinou Vlad III, o empalador, que deu origem à lenda do Conde Drácula. Esta basílica data de 1554, e foi renovada.
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Em meio àqueles outros prédios relativamente novos, o mosteiro ortodoxo Stavropoleos, um dos mais belos da Romênia.
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Se as igrejas católicas (e protestantes) são muitas vezes imensas, as ortodoxas tendem a ser bem modestas e mais tradicionais neste sentido, relembrando o aspecto mais rústico do cristianismo original.
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Teto decorado na entrada do mosteiro. (O interior eles em geral não deixam fotografar, então você terá que vir se quiser ver.)

As atrações do centro dão um bom passeio de uma manhã ou tarde — talvez melhor à tarde, quando você já pode engatar pela noite num dos bares ou restaurantes da área. 

Neste caso, era uma quieta manhã de Natal no centro histórico, e as pessoas pareciam estar todas em outro lugar. Eu logo as acharia.

É pertinho do centro histórico que fica o imenso Palácio do Parlamento, mais conhecido pelo seu nome original de “Casa do Povo”, Casa Poporului em romeno, o maior prédio civil do mundo em área. Trata-se de um imenso palácio com muitas escadarias de mármore e salões amplos, construído por ordem do ditador Nicolae Ceausescu com materiais exclusivamente romenos. Eu cheguei a fazer e mostrar uma visita ao interior dele num outro post.

Ele fica perto do centro histórico porque foi erigido sobre uma imensa área devastada, por onde o centro histórico de Bucareste continuava, mas não mais. Diante dele agora havia uma árvore, e é onde acontece a principal feirinha de Natal de Bucareste, com vista para os seus amplos bulevares.

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Diante da imensa Casa Poporului naquela manhã de inverno.
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Casa Poporului em tempo natalino.
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Presépio montado na praça.
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Feirinha de Natal. Embora seja uma tradição mais da Europa Central que aqui deste leste, é algo que tem se difundido pelo continente nos últimos anos.
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Como estamos na Romênia, e feirinha de Natal é muito sobre coisas típicas, temos aqui um apanhado de carnes (quase sempre de porco) nas mais diversas formas. É um algo cultural comer carnes processadas, quase sempre de modo tradicional, sobretudo para o inverno. Há uma cultura gastronômica muito forte de outras conservas também, como picles de legumes, geleias de frutas, etc. A Romênia tem uma cultura gastronômica em geral bem campesina.
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Feirinha de Natal de Bucareste, no seu contexto de grandes prédios.

Carne de porco está longe de ser a minha praia, então optei pelo vin fiert, que é como eles aqui na Romênia chamam o quentão (vinho quente com especiarias, glühwein em alemão, o nome mais comum dele na Europa).

Era uma manhã tranquila, fresca, fria. Zero grau apesar do sol, mas sem neve. Pessoas circulavam vagarosamente pela feirinha vendendo guloseimas e artesanato do interior do país, assim como pelas longas avenidas de árvores secas pelo inverno. A Casa Poporului resplandecia logo ali.

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A fechada da Casa Poporului, Palácio do Parlamento romeno, o maior prédio civil do mundo. (No cômputo geral, apenas o centro militar do Pentágono, nos EUA, é mais largo.) Vale a visita.
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Os amplos bulevares característicos de Bucareste.

Eu gosto das amplas calçadas e a arborização desse urbanismo comunista, embora ache os prédios feios e lamente o arraso do legado histórico e arquitetônico da cidade. (Nunca confie em análises maniqueístas, que falam que tudo de algo é ruim ou que tudo é bom.)

Ao se libertar do jugo turco em 1878, o então formado Reino da Romênia misturava influências turcas otomanas, russas ortodoxas, e modernistas francesas. Emulando Paris, a principal estação de trens de Bucareste ainda é chamada Gara de Nord, como a Gare du Nord parisiense.

É pra lá que eu iria. Bucareste havia sido uma passagem rápida — visita de médico para rever e tomar um café (neste caso, um vin fiert). Suas principais atrações eu havia mostrado antes. Meu destino agora era o interior da Romênia para passar o réveillon na Transilvânia, conhecer cidades novas e ir de trem até o outro lado do país.

Era o começo de mais uma jornada na Romênia, país europeu bem mais interessante do que se comumente imagina, sobretudo seu interior. Mas passando aqui por Bucareste, não deixe de dar uma espiadela no seu centro histórico. Uma visita de médico que seja.

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Gara de Nord, a principal estação de trens de Bucareste, a capital romena.
Mairon Giovani
Cidadão do mundo e viajante independente. Gosta de cultura, risadas, e comida bem feita. Não acha que viajar sozinho seja tão assustador quanto costumam imaginar, e se joga com frequência em novos ambientes. Crê que um país deixa de ser um mero lugar no mapa a partir do momento em que você o conhece e vive experiências com as pessoas de lá.

6 thoughts on “O subestimado centro histórico de Bucareste, Romênia

  1. Hahahaha nossa que atrapalhada essa da passagem . Se fosse no Brasil estavam dizendo que era falta de organização. Ainda bem que foi resolvida.
    Bela cidade e muito bonito centro histórico. Adoro essas feirinhas do Natal europeu e gosto muito do quentão como é chamado por aqui.
    Bela arquitetura, belos boullevares. Gosto tambem desses espaços arborizados e dos seus calçadões onde se pode passear. Acho horríveis as construções soviéticas, pobres e feias. Lamentável a destruição de belezas antigas por bobagens ideológicas. Ao meu ver equívocos de interpretação da arte e da cultura dos povos, alem de violência desnecessária.
    Mas muito bonitas essas avenidas e que belo conjunto arquitetônico. Gostei. Gosto muito desse astral da Europa do Leste.

  2. Esse mosteiro é lindo. As igrejas ortodoxas são muito bonitas. gosto muito desse estilo. Recortado delicado e rico em detalhes. Os interiores sao muito charmosos.
    Essa Gare é muito agradável e parece bem diversa. Muito interessante.
    As barraquinhas de Natal, cheias de luzes e de coisas típicas são uma delicia. Tornam a época aconchegante e muito significativa, Muito diferente do Natal em países tropicais como o Brasil, com verões muito quentes e um clima de festa muito para fora, para as praias. Amo o Natal na Europa. Adoro esse clima de aconchego, recolhimento, amizade, de interiores, luzes e frio. É emocionante.

    1. Estou contente o que voces estao a costat eu sou romeno e sempre foi a si e esta a si de natal tambai ou Cluj e bonito nao so Timișoara.Tenho pena o que nao vizitaste maramures para ver mais tradicao

      1. Obrigado pelo comentário, Marius! Multumesc!
        Maramures está na minha lista de destinos ainda por conhecer na Romênia 😉

  3. Parabéns pelo blog. Estou indo para a Romênia agora em outubro. Vou passar uns dias na Transilvânia e vou conhecer Bucareste. Farei todo o caminho por trem, espero que dê tudo certo.

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