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Romênia

Sighisoara, a pitoresca cidade medieval da Transilvânia onde teria nascido o Drácula

Bem vindos ao interior da Romênia no leste europeu; à Transilvânia, esta terra de natureza e heranças medievais bem conservadas, e que muitos creem nem existir de verdade. Existe, é composta por vales entre as Montanhas dos Cárpatos, colinas verdes, e belas cidades históricas. Delas, Sighisoara é talvez a mais pitoresca de todas.

Eu chegava aqui vindo de Brasov, naqueles dias mágicos entre o Natal e o Ano Novo. Um inverno de zero grau pairava no ar, sob um céu nublado e uma névoa que dão certa magia à região.

Inevitavelmente, quando se menciona “Transilvânia”, quase todo mundo a associa imediatamente ao Conde Drácula, personagem vampírico do escritor irlandês Bram Stoker. Sua inspiração? Um cruel governante da Idade Média que nasceu aqui em Sighisoara. Desde o livro de 1897, Hollywood, a Globo, e muitos outros romancistas trataram de popularizar as histórias do conde sugador de sangue com seu castelo na Transilvânia. Segundo o Guinness, livro dos recordes, ele é o vilão fictício com maior número de menções e aparições na mídia.

Eu admito, porém, que por muito tempo achei que o lugar também fosse mítico, como a Terra do Nunca do Peter Pan. Nem me passava pela cabeça que a Transilvânia fosse esta pitoresca região europeia, nem eu nunca a havia associado à Romênia. Mas o que descobri foi uma região linda e culturalmente muito rica.

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A vista por sobre os telhados de Sighisoara numa manhã de inverno, com vista para as colinas da Transilvânia mais ao longe.
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Antiga igreja com árvores desfolhadas no inverno. Você compreende como o lugar dá asas aos contos de horror da imaginação.
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Ali adiante a simbólica Torre do Relógio de Sighisoara, e aqui à direita, bem nessa casa amarela, dizem que teria nascido o Drácula.

Eu quero contar das lendas do lugar, mas também vou mostrar a vocês que a Transilvânia — e Sighisoara em especial — têm muito mais a apreciar, e muita História com H maiúsculo na bagagem.

Sighisoara data do século XII. Seu centro histórico, Patrimônio Mundial da UNESCO, tem uma das últimas cidadelas medievais continuamente habitadas da Europa. Suas muralhas seguem nos seus lugares de séculos, assim como elevadas torres de pedra e seus grandes relógios de ponteiro.

Eu viera aqui há mais de 7 anos, num longínquo verão em que pude ver toda a cidadela florida e sob um céu azul, com sol por sobre as suas casas coloridas. Desta vez, eu a via sob as brumas de inverno e ainda com um restinho de decorações natalinas — uma ótima época para visitar, se querem uma sugestão.

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A entrada para a cidadela de Sighisoara, à noite.
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Ruas com o casario antigo no centro medieval. Por séculos, até 1918, a Transilvânia pertenceu a reinos da Europa Central e até hoje preserva essa influência.

Transilvânia quer dizer “para além da floresta” (Ultrasilvania ou Transilvania em latim). O nome, porém, não advém nem dos romenos nem dos antigos romanos, mas dos húngaros.

Os húngaros, etnicamente distintos de todos os seus vizinhos, chegaram à Europa vindos da Ásia no fim do século IX, como cheguei a relatar em detalhes no meu post em Budapeste, sua capital. Vindos do oriente, eles se depararam com as matas nas montanhas dos Cárpatos e apelidaram as terras além dali de Erdély, que em húngaro quer dizer “para além da floresta”. Daí é que os letrados da Idade Média, que usavam o latim, traduzem o termo. Seu primeiro registro escrito data de 1075.

Os húngaros dominariam por séculos toda esta região, e no século XII levariam à fundação de Segesvár (“Forte de Sege” em húngaro, Sege sendo o rio que passa aqui e vár forte ou fortaleza), que os romenos depois adaptariam para Sighisoara [lê-se Sighishoára]. A cidade, no entanto, foi erigida por colonos alemães, mercadores e artesãos germânicos vindos a convite do rei húngaro para ajudá-lo a guardar as fronteiras do reino. Já viu que salada? Aguarde que tem mais.

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Quadro no meu hotel mostrando a Sighisoara antiga.
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As ruas da cidadela medieval, uma das últimas cidadelas habitadas da Europa. As casas em tons pastéis revelam a influência centro-europeia, trazida pelos húngaros e germânicos.

Permitam-me dar o contexto para vocês entenderem tanto a salada étnica de Sighisoara quanto o papel do Drácula histórico que levou à sua fama — e, em última análise, à criação do personagem.

No século XV, todo este sudeste da Europa vivia sob ameaça de invasão dos turcos otomanos. Estes, desde os idos de 1370, antes mesmo da conquista de Constantinopla (1453), já conquistavam terras europeias como a Bósnia e a Sérvia. O Reino da Hungria era o próximo da fila, junto com os pequenos principados vizinhos. Como os turcos eram muçulmanos, assombravam duplamente a cristandade europeia: era uma guerra tanto política quanto “santa”, religiosa.

Assim, em 1408 o rei Sigismundo da Hungria criou a Ordem do Dragão, uma ordem religiosa de cavaleiros semelhante àquelas constituídas anteriormente durante as Cruzadas, como os famosos templários e os cavaleiros hospitalários da cruz de Malta. A Ordem do Dragão teria São Jorge como patrono, daí seu nome. E um dos seus membros foi ninguém menos que Vlad II, apelidado de Dracul por pertencer à ordem draconiana. Ele era príncipe da Valáquia, hoje a região sul da Romênia, onde fica a capital Bucareste

Um mapa da época ajuda a entender a situação da Europa naquele tempo.

Mapa da Europa em 1500
Mapa da Europa no ano 1500. Os turcos otomanos, no sudeste europeu, já haviam conquistado todos os Bálcãs (Grécia, Bósnia, Sérvia, Albânia, Bulgária). Ainda não havia o conceito de “Romênia” naquele tempo: suas regiões pertenciam a reinos diferentes, entre eles o principado da Valáquia (Wallachia), que séculos mais tarde lideraria a formação da Romênia. Em 1471, ele foi conquistado e virou um principado vassalo dos turcos. Percebam como o Reino da Hungria fazia fronteira com as terras conquistadas pelos turcos, e quem estava na linha de frente de expansão destes era precisamente a Transilvânia (aquela pontinha do que eram os domínios húngaros).

O Drácula não foi Vlad II Dracul, mas Vlad III, o filho dele. Em romeno, essa terminação com “a” sugere filiação. Como os romenos até hoje usam a palavra Dracul para designar não só “dragão” como também “diabo”, muita gente interpreta Drácula como significando “filho do diabo”, mas na realidade quer dizer filho do Dracul, seu pai, cavaleiro da Ordem do Dragão, de São Jorge. Longe de ser diabólico, algo muito pio e sacro.

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Vlad III, o empalador (1428-1477). Pintura a óleo de 1560, no Palácio de Ambras em Innsbruck, Áustria. Seria uma cópia de um retrato original do empalador.

A fama de sanguinolento do Drácula deveu-se ao seu comportamento. Ele nasceu no bojo da tensão entre turcos e húngaros. Ainda pequeno, foi refém na corte dos turcos para garantir que seu pai os obedeceria. Pode ter tomado lá o gosto pelo empalamento, que os turcos usavam como castigo sobretudo para os hereges. Vlad o utilizaria ao extremo.

“Quando o sultão continuou a avançar deparou-se com 23.844 turcos empalados, no que foi apelidado de Floresta dos Mortos”

Oportunista, Vlad associava-se a húngaros ou turcos como lhe parecesse politicamente vantajoso. Quando logrou ser príncipe da Valáquia, deu logo cabo dos seus inimigos na nobreza local pondo-lhes na estaca. Depois desentendeu-se com as comunidades alemãs trazidas pelo rei húngaro, e deu-lhes o mesmo destino.

O sultão turco Mehmet II, um dos mais famosos (entre outras por ter liderado a conquista de Constantinopla em 1453), ordenou-lhe que viesse lhe jurar fidelidade — e Vlad mandou empalar os emissários. A resposta turca foi uma invasão armada à Valáquia, que culminou na Batalha de Targoviste (1462). Vlad, traiçoeiro, atacou o acampamento otomano à noite para tentar assassinar o sultão, mas sem sucesso. Retirou-se, mas quando o sultão continuou a avançar deparou-se com 23.844 turcos empalados, no que foi apelidado de Floresta dos Mortos.

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Gravura medieval mostrando Vlad assistindo a pessoas serem empaladas. O empalamento, algo de que se tem registro desde a antiga Babilônia, consiste em atravessar a pessoa com uma longa estaca e deixá-la morrer.

A cifra foi citada a punho do próprio Vlad numa carta ao rei húngaro solicitando ajuda. O Rei Matthias Corvinus (1443-1490), no entanto, era tudo menos tolo. Um dos mais famosos reis da Hungria, ele hoje tem uma universidade e uma igreja com o seu nome em Budapeste. Quando Vlad veio ter com ele, o rei mandou trancafiar o empalador na fortaleza medieval de Visegrad, às margens do rio Danúbio.

Lá, Vlad apodreceu no cárcere por 12 anos, entre 1463 e 1475, quando foi solto para combater novamente os turcos. Nessa época, lembrem-se, a Europa teve suas primeiras publicações impressas, e entre os germânicos de Gutenberg alguns dos livros mais populares eram contos da crueldade de Vlad. Ele, no entanto, morreria em batalha contra os turcos otomanos em 1477, deixando os conflitos destes com os húngaros por resolver.      

Sempre que eu venho à Transilvânia, perguntam-me se eu fui ao Castelo do Drácula. Como vocês já entenderam, no entanto, Vlad nunca reinou aqui na Transilvânia, mas na Valáquia mais ao sul. O Castelo de Bran, propagandeado como sendo o “Castelo do Drácula”, na verdade nunca foi sua residência. Ele é tomado apenas pelo aspecto medievalesco e algo soturno.

Esse mesmo ar “transilvânico” você encontra em Sighisoara.

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Sighisoara no inverno. É preciso subir vários degraus até aceder ao que era a cidade fortificada da Idade Média, no alto.
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Por este portão medieval entra-se na cidadela.
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Vista lá do alto, com direito a algumas árvores sombrias.
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Uma das praças principais da cidadela, lá no alto.
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O casario colorido, característico da Europa Central, é por influência dos húngaros e germânicos aqui na Transilvânia.
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No caso de Sighisoara, não faltam ruelas algo lúgubres.
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Ruela em Sighisoara, no nebuloso inverno daqui.
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Igreja de influência húngara em Sighisoara. (Se você foi a Budapeste, pode notar a semelhança do telhado com a Igreja de Matthias em Buda.)
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Por esta secular escadaria coberta, toda em madeira, você chega à parte mais alta da cidadela, onde há um colégio, uma igreja, e um cemitério.
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Lá em cima o ambiente é ainda mais brumoso.
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Com uma imagem da cabeça de Vlad III, o empalador.
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A casa onde Vlad teria nascido, em Sighisoara.
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Um dos portões medievais da cidadela de Sighisoara à noite.

É autêntico e ao mesmo tempo soturno, eu reconheço. Mas Sighisoara também pode ser aconchegante de forma surpreendente. Se este inverno não teve as flores ou o brilho da minha visita anterior durante o verão, teve o aconchego gostoso de muitos ambientes internos deliciosos escondidos pela cidade antiga.

Uma visita aqui não deve se limitar ao aspecto da cidade: procure conhecer também as muitas tavernas subterrâneas, os restaurantes com comida típica romena a experimentar, e o artesanato transilvânico na forma de cerâmicas, roupas tradicionais, e esculturas em madeira. Há muita coisa bonita. (Alguns lugares que eu recomendo são a Casa Medievala, o Cafe Krauss, e a Casa Cositorarului. Você passa horas naquele aconchego, sobretudo se estiver em boa companhia.) 

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Uma das muitas lojas com quinquilharias e preciosidades em Sighisoara. Às vezes a Transilvânia parece um lugar mágico.
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Trajes tradicionais da Transilvânia e outras formas de artesanato em Sighisoara.
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Uma das muitas casas cheias de segredos na cidadela de Sighisoara. Se você gosta dessas coisas, procure-as todas.

Muito há nas alcovas de Sighisoara.

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Numa taverna, a garçonete nos servia uma garrafa de Feteasca Neagra (“donzela negra” em romeno), um dos vinhos mais tradicionais do país. Aqui, ele é normalmente derramado num vasilhame maior para acentuar o sabor.
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Mesa cheia na taverna de Sighisoara. As comidas aqui na Transilvânia são das mais diversas, desde a habitual polenta romena (mamaliga) a pratos mais sofisticados com carnes, peixes, ou massas de estilo italiano. Aqui foi no Cafe Krauss.
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Torta quente de maçã, acompanhada por creme de baunilha.
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Ambientes internos muito aconchegantes em Sighisoara, ainda com decoração natalina. Como era inverno e fazia frio lá fora, dá vontade de passar tardes inteiras aqui dentro, saboreando coisas boas e de prosa em boa companhia. Esta aqui é a Casa Cositorarului.
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E foi numa dessas que apareceram os tradicionais cantores natalinos do interior da Transilvânia. Tradicionalmente, eles vão de porta em porta nos vilarejo cantar para as pessoas a boa nova do nascimento do Cristo, em troca de um trocado.
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Num desses interiores, com ilustrações medievais em letras góticas na parede.
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Num dos interiores de Sighisoara, representação da época da guerra medieval contra os turcos. (A partir dos idos de 1400, as batalhas já contavam com canhões. Já as palavras estão em alemão, pela comunidade germânica saxã de Sighisoara.)
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Cardápio na Casa Medievala, outro lugar que eu recomendo.

Como esta minha vinda aqui foi também um reencontro com a minha amiga Anna, filha aqui da Transilvânia com mãe romena e pai húngaro, fui chamado a um delicioso jantar caseiro com muitas guloseimas. 

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Há muitas saladas frias na culinária romena. À direita há vinete, uma pasta de beringela que pode levar ou não maionese caseira. Ali algumas azeitonas pretas, e à esquerda zacusca, um molho feito com pimentões defumados, tomates, pimentas e outros legumes. É coisa divina.
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Zacusca caseira no pão é coisa que você não pode sair da Romênia sem experimentar. É perturbadoramente gostoso.

Mesmo que você não tenha amigos daqui a visitar, não deixe de procurar por essas delícias nos recantos de Sighisoara. Vale a pena.

Como eu disse, Sighisoara e a Transilvânia podem assustar, mas o que tira seu fôlego mesmo são os encantos do lugar. 

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A Torre do Relógio à noite.
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Ruas de Sighisoara no inverno.
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E seu casario.
Mairon Giovani
Cidadão do mundo e viajante independente. Gosta de cultura, risadas, e comida bem feita. Não acha que viajar sozinho seja tão assustador quanto costumam imaginar, e se joga com frequência em novos ambientes. Crê que um país deixa de ser um mero lugar no mapa a partir do momento em que você o conhece e vive experiências com as pessoas de lá.

2 thoughts on “Sighisoara, a pitoresca cidade medieval da Transilvânia onde teria nascido o Drácula

  1. Uaaaauuu. Que cidadezinha interessante, parece que se entra na máquina do tempo e sai na idade media haha. Um tanto brumosa e soturna em alguns momentos e horas da noite mas muito bonitinha com essa ar antigo. Lindas ruelas e casinhas coloridas. Lindo casario. As ladeiras e sobes e desces parecem meio cansativas mas é parte da época em que era uma cidade importante.
    Que horror essa história do Vlad. Terrivel ele. Coitado de S Jorge metido nessas crueldades todas hahah.
    Deliciosas essas tavernas e esses esconderijos todos. Lindos. Lugares de sonho!… e essa decoração de Natal torna tudo muito mais bonito e aconchegante. Um primor essa cafeteria/delicatessen. E essa taverna então, um charme.
    Linda paisagem. Parece Nárnia. A torre do relógio é muito bonita e os telhados das casas com as montanhas nevadas ao longe. Bela cidadezinha e charmosa cidadela. Linda região.

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