Neste fevereiro, celebrou-se o Ano Novo Chinês, nome popular para o que é o Ano Novo Lunar, celebrado por muitas culturas na Ásia — a chinesa só acontece de ser a maior delas. Vietnamitas, butaneses e outros asiáticos juntam-se a 1,5 bilhão de chineses para comer bastante, reunir-se em família, e olhar suas previsões astrológicas. Há uma série de tradições que pude experimentar em primeira-mão neste ano, uma festa muito diferente do réveillon ocidental.
A quem estiver a se perguntar, o Ano Novo Lunar cai na segunda lua nova após o solstício de inverno no hemisfério norte (21/22 de dezembro, quando no hemisfério sul começa o verão). Isso costuma resultar em alguma data entre o fim de janeiro e fevereiro. Os chineses na real o chamam de “Festival da Primavera”. É a sua maior festividade no ano, e embora ainda haja meses de frio pela frente, é a perspectiva da primavera chegando.
Hong Kong é, segundo meus amigos chineses, um dos melhores lugares onde celebrar a ocasião. É uma cidade onde as tradições se mantêm melhor que na China continental, onde o Partido Comunista impôs décadas de revisão cultural e pouca atenção às tradições chinesas. Uma pedida facílima pra mim, uma razão a mais para retornar a esta que é uma das minhas cidades favoritas no mundo. (Eu já relatei uma vinda à cidade anteriormente aqui.)
(Ao contrário da China continental, Hong Kong não exige visto. É, como eles próprios dizem, “Um país, dois sistemas”. Culturalmente, HK está na área de influência da histórica cidade de Cantão, hoje Guangzhou, a 2h daqui. É a região da China que fala cantonês em vez de mandarim.)



Ponha de lado a sua noção habitual de Ano Novo centrada na “virada”, com fogos à meia-noite. Não há isso no Ano Novo Chinês, mas todo um período de 15 dias de festa. Do ponto de vista do visitante, há três eventos principais a conferir:
- A Feira das Flores, na real um grande feirão com tudo que você possa imaginar — desde flores a manifestações políticas, passando por muita comida. Ela se inicia uma semana antes do ano novo, funciona todos os dias e vira a noite na véspera, terminando no primeiro dia de Ano Novo.
- A parada carnavalesca de Ano Novo Chinês, um desfile cultural no primeiro dia do Ano Novo.
- Os fogos no segundo dia de Ano Novo, em geral às 20h, não à meia-noite.
De quebra, eu participaria um pouco também das tradições entre os próprios chineses, sobretudo com uma amiga daqui que eu reencontraria, a senhorita Fong.
Vem ni mim, Hong Kong!



Estranhamente, toda vez que eu volto a Hong Kong parece que eu nunca saí daqui. Vai ver fui cantonês noutra vida, ou talvez sejam as memórias da infância. O reluzir dos grandes prédios modernos contrasta com o ar decadente dos prédios de bairro, aquela cara de Ásia dos anos 70/80, tempo dos filmes de Bruce Lee e dos cenários de luta de Chun Li. (Lembra algo também das filmagens de Jaspion no Japão daqueles anos 80).
Hoje, há também os letreiros mega-coloridos das lojas a oferecer bubble tea, comidas chinesas, e pelas ruas o ar prático e reservado das pessoas, como formiguinhas chinesas no seu labor diário enquanto você passa.





A cultura chinesa inclui um forte hábito de socialização em torno das refeições. Se no Ocidente as pessoas frequentemente se reúnem para beber ou dançar, aqui na China elas se reúnem essencialmente para comer. (Muito mais legal.) Em vez de barzinhos, restaurantes.
Nunca, em nenhum outro lugar do mundo, vi restaurantes tão cheios, por toda parte, de sol a sol. Exceto pelas altas horas da madrugada — quando há apenas os estabelecimentos 24h e algumas opções de comida de rua — os muitos restaurantes estão sempre lotados, para café da manhã, almoço, chá da tarde, janta, ceia… o que for. Famílias inteiras, casais, e gente sozinha que assiste a vídeo no celular enquanto come.
Quando eu vinha fazer minhas refeições, meu entorno era de idosos, berros de crianças, e muito zum-zum-zum que alguns de vocês talvez creiam só existir no Brasil e outros países latinos. Os chineses são notoriamente ruidosos, e isso se faz muito claro nos restaurantes. É um ambiente meio muvuca, com garçons práticos que frequentemente batem pratos para lá e para cá, rearrumando mesas, gritando a clientes que venham, quando não passando a passo rápido carregados de coisas para lá e cá.
Sabe aquela fama do rápido cortador de temperos chinês, com seu cutelo e seu chapéu branco de mestre-cuca? Pois todos os funcionários do restaurante trabalham naquela velocidade, não é só o cozinheiro. Vai desde ele até os funcionários do caixa.


Foi nessa pegada que vieram os tios agregar aos ânimos com a distribuição de envelopes. Não existe Ano Novo Chinês sem envelopes vermelhos. É o equivalente ao amigo secreto do Natal no Ocidente.
A tradição é que os familiares mais velhos (já casados) deem envelopes vermelhos com dinheiro aos mais novos (ainda solteiros). Esses jovens, por sua vez, devem ir visitar os parentes — tios, avós, primos mais velhos e outros, além é claro dos próprios pais — durante os dias de festa e levar-lhes biscoitos, chocolates, frutas, ou outros agrados comestíveis.
Não é exatamente uma bolada o que vem dentro. A gerente do albergue onde fiquei, uma moça de seus trinta e poucos, contou que recebia 20 Hong Kong dollars (HKG, uns R$10) dos amigos casados e 100 HKG (uns R$50) de cada um dos pais. Casais dão sempre dois, por ser mais auspicioso do que um. Acaba sendo mais ou menos uma troca. “Eu acho que gastei mais dinheiro comprando chocolate e biscoito pra levar pros meus parentes do que recebi de dinheiro“, declarou-me a moça franzindo as sobrancelhas naquele jeito reservado asiático.
Como você há de imaginar, a moda atual de algumas pessoas nunca se casarem está bagunçando as tradições de trocas de presentes dos chineses. Pessoas solteiras recebem, não importa a idade. E não é sempre que morar junto é levado em consideração. Já ouvi causos de treta quando se tratam de casais que vivem no Ocidente e vivem juntos sem se casar. Os parentes tradicionais continuam a dar-lhes dinheiro como se fossem solteiros.
Você vai acumulando envelopes, e o mais comum é abri-los no 15º dia do Ano Novo Chinês, o último do período de festa. Mas há até quem só os abra no ano seguinte.
Apesar desse longo período de festas, somente os três primeiros dias são realmente feriados. Celebram-se sobretudo a véspera, o dia 1 e o dia 2. O dia 2 é conhecido como aquele em que o Ano Novo começa a aflorar. Nesses primeiros dias, as pessoas tentam estar disponíveis à família e aos encontros. Cada família tem sua tradição própria de quando quem se encontra na casa de quem, mas é sempre muita, muita comida. Já o terceiro dia é apelidado — ao menos aqui em Hong Kong — de “o dia da briga”, certamente por já se ter passado muito tempo junto com os parentes. Então já se evita ir ver os familiares, e em vez disso as pessoas vão aos templos. (Olha que sabedoria milenar?)
Até a noite da véspera, virando até a manhã do primeiro dia do ano novo, há a tal Feira das Flores, que eu fui conferir. O nome de Feira das Flores é um eufemismo, porque as flores — consideradas decoração auspiciosa para o ano novo, assim como pés de tangerina em vasos de planta — são apenas uma parte da muvuca.






Porcos de pelúcia eram agarrados com gosto debaixo dos braços pelas moças que se esforçavam para segurar as coisas e tirar suas fotos sem derrubá-las. Fofos, gordos e cor-de-rosa, os porcos com sua cara risonha (e até de olhinho um pouco apertado, à chinesa) estavam por toda parte dando o tom do festival este ano. É um sabor diferente, este de que nesta celebração do Ano Novo daqui um nunca é igual ao outro, mas só a cada 12 anos se repete.



E, é claro, não falta comida. As barracas de comida de rua pululam de gente, rodeadas de fumaça, odor de fritura e outros vários.
Uma amiga romena escreveu-me nesse dia perguntando se os chineses estavam se acabando de comer porco, devido ao animal do ano. Não sei. Acho que não mais que o habitual. Foi pauleira eu achar algo que não fosse carne, mas ao fim das contas achei o que os cantoneses apelidaram de “tofu fedido” (stinky tofu), um cubo de tofu frito que — por razões que eu não compreendo — fede à distância, mas que, com um bom molho de pimenta, veio a calhar.


O meu segundo dia de celebrações, primeiro do Ano Novo, seria mais civilizado. Eu me encontraria com a senhorita Fong para almoçarmos e, dali, iríamos ao fim do dia ver a parada (New Year Parade).
Qual foi a minha surpresa ao ver a Srta. Fong munida de um envelopinho vermelho pra mim. “Minha mãe mandou pra você.” Como manda a cortesia chinesa, guardei para abri-lo ao fim das festividades do Ano Novo.
A nossa pedida — por solicitação minha e respeito cultural — foi um restaurante de dim sum, os tradicionais restaurantes cantoneses de petiscos sobre os quais já escrevi anteriormente. Dizem que Hong Kong tem os melhores.
“Sua família não encrencou de você os deixar pra sair comigo no Ano Novo?“, indaguei eu um pouco tarde.
“Não. Lá em casa o encontro principal é sempre na hora do jantar na véspera do Ano Novo. E eles entenderam que você veio de longe“, respondeu-me no seu tom “sob controle” costumeiro.
Nossa refeição levou horas, como bem acontece tantas vezes aqui na China. Após preencher a lápis na comanda o que desejávamos, doce vem junto com salgado — não há aqui o conceito de “sobremesa” como algo que vem depois —, e conforme os pratinhos vão chegando você nem sabe por onde começar e até se esquece de tudo o que pediu. É um frenesi gostoso.
Dali ainda fomos tomar um café e depois rumamos para o centro de Kowloon, onde a parada aqui tem lugar. Ela ocorre entre Nathan Road e Canton Road, na área de Tsim Sha Tsui, normalmente às 20h.






Ao contrário do que eu imaginava, lidar com as multidões de chineses e turistas para ver a parada de Ano Novo não foi tão complicado. Apesar de haver muita gente, não é exatamente o Cordão da Bola Preta. Réveillon ou Carnaval no Brasil é muito pior (e mais perigoso). Aqui as pessoas são relativamente cordatas, e como o trajeto da parada se estende por quilômetros, a multidão fica diluída. (Além do mais, a maioria dos chineses têm menos de 1,70m, então bastou-me evitar os gringos. Meu campo de visão logo seria tomado por celulares e bastões coloridos, mas esta é outra questão.)


No vídeo abaixo você confere alguns momentos da parada.
O desfile não foi exatamente o que eu imaginei, preciso dizer. Muita propaganda e muito internacionalizada pro meu gosto (e da senhorita Fong também, que se desapontou ao ver pouca coisa realmente tradicional chinesa).
Após grupos de crianças simplesmente animadas por estar ali — uma coisa meio Xou da Xuxa) —, veio um abre-alas dos funcionários da Cathay Pacific (companhia aérea sediada em Hong Kong e principal patrocinadora do evento). Aquele bando de pessoas dando tchauzinho. Depois outra da Disneylândia em Hong Kong, e assim ia, com alas de grandes hotéis e outros patrocinadores. (É como seria o Carnaval carioca e paulistano se caísse nas mãos de algum empresário sem raiz…). Achei pouco autêntico.
Se houvesse jurados, também tomariam nota baixa nos quesitos harmonia e evolução. Cada ala era uma entidade própria (com sua própria música!), e às vezes passava com minutos de espaço entre uma e outra, fazendo todo mundo esperar avistando o que vinha lá. Ao meu lado, uma adolescente chinesa jogava no celular enquanto esperava.
Houve grupo de equilibristas austríacos, ala de líderes de torcida de Atlanta (USA), dançarinas negras do carnaval da Cidade do Cabo (África do Sul), e por aí ia. As alas mais tradicionais eram de organizações de artes marciais chinesas, que vinham com seus dragões e tamborilo típico, mas era esparsado, diluído num pot-pourri por demais internacional e que tinha mais cara de “feira mundial” que de Ano Novo tradicional chinês.
“Foi OK“, vaticinou a minha amiga cantonesa ao final, ela que já não vinha ver a parada desde criança e não pareceu muito encantada a retornar.
Melhor do que o desfile em si é o frisson de estar ali. Terminamos a festa, eu e a senhorita Fong, ao fim da noite de Ano Novo comendo bolinhos de peixe (siu mai) apimentados na rua.
Não há um foco na chegada da meia-noite como ocorre no réveillon de 31 de dezembro. Aqui o que importa é a folia diurna e a parada à noitinha. Tudo o mais tem a sensação de depois, de “após-o-fato”. Após este fato, no entanto, eu ainda teria o show de fogos na noite seguinte. (É uma celebração extensa, que faz a nossa parecer curta e rápida em comparação.)


Os fogos na noite do segundo dia fecham o que eu chamaria de período interessante ao turista no Ano Novo Chinês. São 23 minutos de explosões coloridas por sobre o porto de Hong Kong, visível tanto do lado da ilha de Hong Kong propriamente dita quanto da área de Tsim Sha Tsui em Kowloon.
De onde melhor assistir? Como eles ocorrem às 20h, eu fui conferir o promenade de Tsim Sha Tsui à tardinha para ver como estava o movimento. É onde a maior parte das pessoas se concentra. Às 17h, já havia fotógrafos a postos e famílias no chão a jogar baralho e farofar para garantir lugar. Você fique aí achando que só brasileiro é que faz isso.



Se você não quer ter que ficar segurando lugar com horas de antecedência, ou se prefere multidões um pouco menores, melhor ir ver os fotos a partir do Tamar Park. (Lembre-se das tartarugas para recordar-se do nome.) Foi aonde eu fui e onde recomendo.


Às 20h, os céus de Hong Kong explodiriam em cores.

Houve quem filmasse os 23 minutos inteiros (pergunto-me quem realmente assiste a tudo outra vez). Não o fiz, mas gravei uma palhinha de dois minutos para mostrar a vocês.
Embora eu não tenha permanecido aqui todo este tempo, as celebrações se estendem até o 15º dia de Ano Novo. Esse, aqui na China, é entendido como um “Dia dos Namorados“, embora a comparação seja recente.
Tradicionalmente, completa-se o período celebratório com o lançar de lampiões acesos na água ou no ar, como os balões juninos. A Festa dos Lampiões (Lantern Festival) no último dia do Ano Novo Chinês ainda é bem celebrada em Taiwan e aqui Hong Kong. (A China continental ficou menos tradicional nesses sentidos, sobretudo após a Revolução Cultural.) Antigamente, era para as moças que ficavam em casa uma oportunidade de sair à rua para ver o evento e, quiçá num golpe de sorte, arrumar um marido. Assim, hoje em dia, a tradição ganhou esses contornos de Valentine’s Day chinês.
Não há troca de presentes, todavia. O comum é o casal sair para comer e tomar juntos um tang yuan, uma sopinha doce de bolinhos de arroz recheados, com gergelim, feijão vermelho, etc. Ela simboliza união, daí os dois tomarem juntos. Esse é o principal, mas as flores vendem como água, e os restaurantes põem menus especiais de Dia dos Namorados, etc. As lojas durante todo este período de Ano Novo Chinês, como vocês hão de imaginar, ficam a mil.
Ei-lo então, grosso modo, esta mistura de réveillon, Natal, Carnaval e Dia dos Namorados aqui na China — tudo num longo e festivo período de 15 dias com um animal diferente a cada ano. Foi uma delícia celebrá-lo com os chineses.
Bom Ano do Porco a todos!
Uuuuuuu que maravilha essa celebração de Ano Novo, diferente, por etapas, alegre, colorida, cheia de diversões e comilanças como os chineses sabem fazer muito bem, Com muitas luzes e tons vibrantes e alegres. Adorei todas as etapas mas como ocidental gostei muito dos fogos hahah deliciosos. Clima ótimo e muita diversão. Gostei da parada. Achei alegre e vistosa.
A cidade está lindamente iluminada. Essa orla é estupenda. Um charme. Seus edifícios modernos sob o jogo de luz geram um efeito surreal. Belíssimo. E o povo faz a festa hahahaha de boa… na descontração…. Parece mesmo carnaval aqui no NE.. hahaha
Para mim o que é demais é a multidão hahah mas na Ásia isso é o trivial, pelo visto. hahaha, Tudo isso diante dessa linda e pujante cidade que impressiona a quem chega pela beleza, pelo arrojado do seu centro financeiro, pela cultura e matizes do moderno e o tradicional. Concordo com o jovem viajante. É uma das que mais gosto e aprecio. Ela e Singapura. São espetaculares.
Linda postagem. Que o belo e simpático porquinho nos traga muita coisa boa para 2019 e que venha um novo ciclo mais feliz, . Valeu, viajante. Que venham mais histórias e belas viagens.