Bem vindos a Punta Arenas, uma das cidades mais meridionais do mundo. Estamos a 53º de latitude sul, o que significa dizer que a Antártida está logo ali, mais próxima que Buenos Aires ou Santiago. Eis a Patagônia, o fim do mundo — e a última região continental da Terra a ser colonizada por humanos, caso você ainda não soubesse.

Quem deu o nome “Patagônia” foi o explorador português Fernão de Magalhães, que passou por aqui a serviço da coroa espanhola em 1520, na primeira circumnavegação da Terra. Notem no mapa que há um estreito antes da ponta da América do Sul, e que hoje recebe o nome do navegador.
Magalhães teria aqui avistado “gigantes”, um povo “patagão” (de patas grandes), no seu português da época. As primeiras crônicas europeias relatavam gente de mais de 3m de altura, com desenhos mostrando os navegadores europeus pequeninos diante dos nativos. “Eram tão altos que não lhes chegávamos na cintura“, escreveu o cronista italiano de Magalhães, Antonio Pigafetta.
Estudos posteriores mostraram que, de fato, a gente daqui era enorme para os padrões europeus da época — nativos com 1,90m ou mais —, o que impressionou os europeus, ainda que não se tratasse de gigantes. O nome patagón em espanhol pegou, e daí Patagônia.

Esse povo nativo que os europeus encontraram eram, tudo indica, os Tehuelches, dos quais restam apenas alguns poucos milhares, quase todos já mesclados com os descendentes de espanhóis e/ou de outros grupos indígenas vindos de mais do norte, como os Mapuche. Há uma diversidade indígena local aqui na Patagônia da qual hoje resta pouco.
Muitos desses, segundo os europeus, vestiam-se com peles e comiam carne crua — como o bruto personagem chamado “Patagón” num romance espanhol de 1512, do escritor Francisco Vásquez, e que foi lido por Magalhães. A outra tese, portanto, é que o navegador deu esse nome aos nativos daqui por achá-los semelhantes ao personagem do livro.
Não dá, contudo, para tomar apenas o ponto de vista europeu.


Eram muitos os povos nativos, que como todos os outros habitantes antigos das Américas, chegaram ou por via do Estreito de Bering (ligando Alaska e Rússia) ou via navegação, oriundos da Polinésia. (Leia mais sobre isso neste outro post aqui.) Há inclusive quem diga que o primeiro descobridor da Antártida foi um polinésio, o navegador Ui-te-Rangiora, que por volta do ano 650 d.C. lançou-se no oceano rumo ao sul até encontrar o que descreveu para seu povo como “rochas que crescem do mar” (icebergs).
O que se sabe é nativos migraram rumo ao sul e instalaram-se na Patagônia desde pelo menos 10.000 a.C. Soa bastante tempo, mas tudo indica que tenha sido a colonização mais tardia de todas nas Américas. Efetivamente, a última região continental da Terra a ser ocupada pelo ser humano.
Pois bem. Muito depois dos nativos, e também algum tempo depois de Magalhães, era a minha vez.


Punta Arenas é uma cidade de médio porte, 150 mil habitantes, e nem de longe aquele ar turístico vibrante que eu deixara em San Pedro de Atacama, no outro extremo do país. Por outro lado, adorei deixar para trás o sol queimante de Atacama e os males da elevação. Estar novamente ao nível do mar foi um deleite — apesar do constante vento forte que sopra aqui na Patagônia. Cada qual com seu cada qual. Cheguei em dois voos: um de Calama a Santiago e outro de Santiago até aqui, no mesmo dia, para então pôr a jaqueta e sair ao que me aguardava nos 10ºC em Punta Arenas.



Eu aqui na Patagônia chilena seria hospedado por dois Samuéis. O primeiro foi aqui em Punta Arenas.
Cheguei de transfer do aeroporto à cidade; a agência Fin del Mundo o faz por 5.000 pesos por trajeto. Na pousada, o dono Samuel (um daqueles coroas mui calvos mas que mantém o cabelo comprido sobre os ombros) apareceria depois. Quem me atendeu foi a filha, uma simpática chilena de seus 25 anos chamada Nirvana (um pedaço de mau caminho: quem disse que Nirvana era caminho bom?). Não sei se a inspiração para o nome foi a banda ou a iluminação budista.
Embora Punta Arenas não seja a cidade mais badalada do universo — nem eu tivesse muito tempo aqui —, há algumas coisas para ver e conferir.
Quem vem aqui pode experimentar centolla (caranguejo gigante) no Mercado Municipal, visitar a bela mansão de época da Dona Sara Braun, o Museu Salesiano com muito sobre a história da região, ou simplesmente ir ver o mar e tomar um vento patagônico na cara enquanto observa as aves de arribação.
Há também uma série de grafites interessantes pela rua, que mostram a história do lugar.


Tal como a Califórnia, a Patagônia também experimentou uma “febre do ouro” no século XIX. A daqui, no entanto, foi mais tardia. Ela se deu em 1879, quando um expedicionário chileno identificou jazidas sobretudo na Terra do Fogo — as ilhas na ponta da América do Sul que ficam para lá do Estreito de Magalhães.

E tal como na Califórnia, foi quando os nativos foram quase todos extirpados. Da mesma forma que nos EUA, o contato entre nativos e europeus existiu desde os idos de 1500. Muitos indígenas morreram de doenças para as quais não tinham imunidade, mas a matança, expansão e domínio de território foi mesmo no século XIX. Quando o ouro acabou em 1909, os Selk’nam da Terra do Fogo já estavam praticamente dizimados.
O Brasil não foi o único a querer embranquecer sua população em fins do século XIX. Também o fez o Chile, estimulando imigrantes europeus a virem povoar especialmente o remoto sul do país. Assim foi, e dentre os muitos croatas, germânicos e outros que vieram estava a distinta Sara Braun Hamburger (sim, o nome era esse).
A mansão dessa senhora daquela virada de século XIX para o XX é hoje um museu aberto ao público, onde você pode ver um pouco do que era a vida das famílias ricas da época e conhecer mais da História da Patagônia. Fica bem na praça principal e eu recomendo.







Hora de almoço, eu recomendo caminhar até o Mercado Municipal de Punta Arenas. É algo movimentado, embora você aqui encontre relativamente poucos turistas (e a maior parte deles, chilenos de outras partes do país). Lá há vários restaurantes simples com muitos pratos de frutos do mar, e pela metade do preço que você paga nos restaurantes mais finos da cidade (provavelmente pela mesma centolla).



Eu na cidade ainda visitaria o Museu Salesiano, e iria ver o mar.
O Museu Salesiano — que fecha para almoço e reabre às 15h — tem talvez a melhor coleção histórica da cidade, com muitos detalhes e peças sobre a história patagônica. Vale a pena se você quiser aprender mais sobre esta região. Há desde muita coisa sobre os indígenas até a cruz original erguida para o finado Capitão Pringle (nada a ver com as batatas), de nada menos que o H.M.S Beagle, o navio que levou Darwin até as Ilhas Galápagos no Oceano Pacífico. Darwin pararia em Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro antes de vir tão ao sul.
Ele teria escrito em 1832: “Ninguém seria capaz de imaginar nada tão belo quanto a antiga cidade da Bahia; ela fica docemente aconchegada num bosque exuberante de lindas árvores e, situando-se sobre uma colina íngreme, descortina as águas calmas da grande Baía de Todos os Santos. As casas são brancas e altivas… Os conventos, os pórticos e os prédios públicos quebram a uniformidade das casas; a baía é repleta de grandes navios. Em suma, e o que mais se poderá dizer? Ela é uma das paisagens mais lindas dos Brasis… Creio que os afetos, assim como as coisas boas, florescem e aumentam nestas regiões tropicais… A convicção de estar andando pelo novo mundo ainda é espantosa a meus próprios olhos…”. (Coitada da Salvador de hoje em comparação. Darwin teria visto favelas e o podre Rio das Tripas em lugar de bosques.)
Ele, no entanto, também havia notado estupefato seu primeiro contato direto com a escravidão.
“Até hoje, se eu ouço um grito ao longe, lembro-me, com dolorosa e clara memória, de quando passei numa casa em Pernambuco e ouvi os urros mais terríveis. Logo entendi que era algum pobre escravo que estava sendo torturado. Eu me senti impotente como uma criança diante daquilo, incapaz de fazer a mínima objeção.”
“Espero nunca mais voltar a um país escravagista. O estado da enorme população escrava deve preocupar todos que chegam ao Brasil. Os senhores de escravos querem ver o negro como outra espécie, mas temos todos a mesma origem num ancestral comum. O meu sangue ferve ao pensar nos ingleses e americanos, com seus ‘gritos’ por liberdade, tão culpados de tudo isso.”
Com o falecimento do Capitão Pringle, ascenderia ao comando o então tenente Robert FitzRoy. O famoso monte na Argentina receberia esse nome mais tarde em sua homenagem.


Entre escravos e índios mortos, esta América do Sul já viu foi coisa.
E eu, literalmente a ver navios no Estreito de Magalhães, tentava não me deprimir como o Capitão Pringle.



Para quem quer realmente ver pinguins, é possível tomar um ferry até a Isla Magdalena, 2h de uma viagem famosamente sacolejante neste que é um dos mares mais turbulentos do planeta. Custa 100 USD. Eu não pude ir porque as saídas nem sempre ocorrem; não saem todos os dias e muitas vezes são canceladas pelo mau tempo, mas vale verificar se você estiver disposto a pagar.
Fiquei eu aqui a tomar o vento patagônico na cara antes de rumar, no dia seguinte, até Puerto Natales, de onde eu visitaria o famoso Parque Nacional Torres del Paine. Aí, sim, veríamos toda a beleza da Patagônia chilena no seu esplendor.
Linda a postagem. Amei a cidade. Achei-a lindinha, com seus calçadões bonitos, seus telhadinhos vermelhos, sua bela arquitetura, bela Plaza de Armas, bem arborizada, com banquinhos e seus belos murais… Belíssima. E que casa charmosa, rica e de bom gosto. Nada sabia da cidade nem da sua história tao interessante nem dos grandalhões que habitavam a região.No muito, que tinham pés enormes.
Muito bonita e informativa a postagem sempre de ótimo nível. Parabéns viajante brasileiro.
E que emoção sobrevoar essa magnifica Cordilheira, com sua energia viva. Maravilha.Lindos os bichinhos.