Do alto de um castelo antigo nas montanhas alpinas governa ainda um príncipe soberano, em plena Europa do século XXI. Estamos em Liechtenstein, um principado independente encravado nos Alpes entre as mais remotas partes da Suíça e da Áustria.

Estamos falando de um país de apenas 160Km², isto é, menor que a cidade de Aracaju, capital de Sergipe. Na prática, como eu pude conferir, se trata de uma estreita faixa de terra (de uns 2Km de largura) entre altas montanhas nos Alpes e o Rio Reno, que oficialmente divide Liechtenstein da Suíça.
Como pode esse lugarejo permanecer independente? Isso foi parte do que eu quis descobrir vindo aqui pessoalmente. E descobri.
Acompanhem-me na jornada até lá, que se faz facilmente num bate-e-volta desde a Suíça.

Era uma manhã chuvosa de domingo em Zurique, Suíça. A cidade fica ainda mais quieta do que já é, os suíços — tremendamente conservadores — reclusos em suas famílias, roças, ou sabe-se lá onde aos domingos. Embora seja a maior cidade do país, Zurique está longe de ser um pólo de badalação.
Eu cheguei a me questionar se faria mesmo essa viagem bate-e-volta num dia molhado como este, mas resolvi ir assim mesmo. Nunca se sabe quando haverá outra oportunidade. Uma breve jornada de 1h30 separa Zurique de Vaduz [lê-se Vadúts], a capital de Liechtenstein (sim, o país é miúdo mas tem mais de uma cidadezinha, e tem uma capital). Primeiro, toma-se um trem até Sargans, uma cidade suíça quase na fronteira, de onde é possível tomar um ônibus até Vaduz. Não há estações de trem em Liechtenstein, embora as vias férreas que ligam a Suíça à Áustria atravessem o país.

“Bom dia, este é o trem que vai para Sargans?“, perguntei eu polidamente e em inglês na estação de Zurique, ao me aproximar de um dos condutores do trem ainda do lado de fora.
“Sargãns“, corrigiu-me ele com ar de professor, pondo a ênfase na segunda sílaba que eu talvez não tenha posto. Confirmou o que eu queria e pôs-se a adicionar observações desnecessárias em alemão que eu não entendi.
Os suíços são um povo por vezes escabriado e não necessariamente famoso por sua acolhida a estranhos, especialmente aqui no leste do país, onde se fala alemão e até os alemães da Alemanha são mal-vindos.
Lembre-se de pronunciar corretamente.
Acabei esbarrando na esposa do meu chefe, seguida depois do próprio, uma dessas coincidências da vida, e seguimos animadamente conversando num dos compartimentos naquele domingo de manhã pelos 55 minutos que separam Zurique de Sargãããns.
Sente-se voltado face ao norte e verá das mais belas paisagens da região, especialmente às margens do Lago Walensee.


Em Sargans, atualmente é a linha de ônibus número 11 que o leva até Vaduz, tendo como destino final a cidade austríaca de Feldkirch. Ele sai da própria estação de trens; não é difícil de achar. O ônibus, então, é facilmente avistável com sua cor verde-limão de marca-texto.
Você pode pagar em francos suíços ou em euros (o que é uma desvantagem, já que o euro normalmente vale mais e ele aqui vai cobrar a cotação de 1 euro = 1 franco, quando na realidade é em torno de 1 Eur = 1,13 francos [CHF]). Não é possível pagar com cartão, então venha preparado. Você compra as passagens diretamente com o motorista. Custa 6,50 CHF cada trecho entre Sargans e Vaduz. Você pode comprar logo a ida e a volta, se quiser.
(Liechtenstein não tem moeda própria, usa o franco suíço. O principado está desde 1921 numa união alfandegária com a Suíça e beneficia-se também dos serviços diplomáticos suíços no exterior. Diz a lenda que o franco de Liechtenstein existe, mas é coisa de colecionador, você dificilmente o verá.)


Não há muita diferença paisagística de quando você deixa a Suíça e adentra Liechtenstein. Afinal, a separação é uma mera convenção humana e a natureza nada tem a ver com isso. Por toda parte estamos numa linda paisagem cercados de montanhas, pastos ao lado das casas, um ar rural e algo bucólico.
Logo após cruzar o Reno, você logo tem à sua esquerda a vista para o Castelo Gutenberg no vilarejo de Balzers. É um castelo que está ali desde o século XII, apesar de haver renovações mais recentes.




Vaduz são praticamente duas ruas: uma pequena avenida onde passam carros e um calçadão em paralelo, ambos no sentido norte-sul. Numa breve caminhada você visita a Catedral de São Florin, avista a bela prefeitura de estilo medieval germânico, e pode adentrar o pequeno Museu Nacional para conhecer mais da história de Liechtenstein. É coisa algumas horas no todo, não ocupará sequer um dia inteiro.





Liechtenstein tem uma história curiosa. Veem aquele 1719 na foto acima? Foi o ano de formalização de Liechtenstein como país, que em 2019 celebrou 300 anos de existência.
Aqui eram terras do Sacro-Império Romano-Germânico durante a Idade Média. Esse império, fundado por Carlos Magno em 800, agregava centenas de pequenas unidades administrativas semi-autônomas sob um imperador que às vezes tinha mais ou menos poder. Eram muitos ducados, condados, etc. (Foi só quando Napoleão passou a vassoura em todos eles em 1800 que eles se perceberam fracos, divididos dessa forma, e abraçaram a noção de “nação germânica”, de que todos pertenciam juntos, e então foi inventada a Alemanha.)

Nem todos se juntaram, todavia. A Áustria permanece Áustria, embora seja germânica. Hitler a anexou em 1938, e os Aliados ao fim da Segunda Guerra Mundial trataram de desanexá-la, pois não queriam uma entidade germânica muito grande que pudesse ressurgir.
A Suíça fala majoritariamente alemão (com alguns cantões que falam francês ou italiano), mas preserva a sua independência desde a Idade Média. Resistiu às tentativas austríacas dos Habsburgo de anexá-la. E isso é motivo de orgulho até hoje para os suíços, que aprendem até hoje na escola sobre como seu herói Guilherme Tell — quase um Robin Hood suíço com sua destreza com as flechas — ajudou-os a rechaçar os austríacos.
E temos Liechtenstein, este principado deveras germânico, minúsculo, surgido de um toma-lá-dá-cá de terras. A família Liechtenstein é austríaca, rica desde o século XII, mas não possuía terras diretamente sob a suserania do imperador, e portanto não tinha assento no Reichstag, o conselho de nobres que periodicamente elegia o novo imperador do sacro-império. Havia jurisdição dentro de jurisdição naquele tempo: você podia ser barão X, mas que devia fidelidade ao conde Y, dentro do ducado do duque Z, e todos sob o imperador. Mas só participava do conselho quem fosse imediatamente súdito do imperador, sem intermediários.
Os Liechtenstein na Áustria eram ricos, tinham amplas terras no que são hoje a Suíça, a própria Áustria, a Tchéquia e a Eslováquia, mas nenhuma delas com jurisdição imediatamente abaixo do imperador. Portanto não adiantava para o poder político que eles queriam. Já quando uma família falida quis vender estas pequenitas mas poderosas terras, os Liechtenstein de pronto as compraram: a parte norte (Schellenberg) em 1699 e o Condado de Vaduz em 1712. Embora minúsculas, estas eram terras sob a suserania direta do imperador, e dava aos Liechtenstein o assento no colégio eleitoral imperial.
O curioso é que nenhum Liechtenstein se deu sequer ao trabalho de vir pôr os pés aqui: só em 1818, mais de um século depois, é que resolveram fazer uma visita. (E a segunda só ocorreria em 1842, pois os Liechtenstein viviam confortavelmente na Áustria, perto do centro de poder que era Viena.) Pra você ver como ser “povo” naquele tempo era absolutamente sem relevância; você era uma mercadoria sem poder político, que passava das mãos de um para do outro como cabeças de gado.
Em 1719 o então imperador, Carlos VI, decretou aqueles dois pedaços de terra como um principado, e deu-lhe o nome de Liechtenstein, o da família que era dona. Essa família segue governando até hoje. Napoleão desmanchou o Sacro-Império Romano Germânico em 1808, mas o Congresso de Viena — após a derrota napoleônica — reafirmaria a soberania de Liechtenstein.
(Calma que agora é que vai ficar interessante.)




Liechtenstein produz alguma coisa? Nada de relevância. Pelo contrário, importa 85% da sua energia e muito mais dos vizinhos. Onde arranja dinheiro? Cof cof. Muamba, lavagem de dinheiro, e serviços como paraíso fiscal. Liechtenstein, senhoras e senhores, é na prática um puxadinho da Suíça que faz as vezes de camelô nos Alpes. Daí a sua soberania ser tão conveniente aos ricaços de países vizinhos e alhures.
Quando desembarquei em Vaduz naquela manhã chuvosa de domingo, eu não fui o único. Veio um quarteto de estudantes intercambistas no ônibus comigo, mas a dominância mesmo eram dos ônibus e mais ônibus de turistas chineses e indianos ávidos por compras duty free. (Neste sentido, algo semelhante a muitos turistas brasileiros.) São quem hoje tem disposição e dinheiro para injetar aqui.
Há certamente alguma coisa no ar quando até os materiais das banquinhas das onipresentes Testemunhas de Jeová são em chinês, não em alemão. Esses turistas não estão nos museus e igrejas, mas nas galerias de relógio de marca vendidos sem imposto aqui em Liechtenstein. Não havia uma sem ter uma vendedora chinesa atrás do balcão, e até mesmo o Centro de Informações Turísticas da cidade tinha uma funcionária de origem chinesa. Inusitado, não?
Achei curioso, aqueles casais de coroas indianos — senhoras com seus pontinhos de “terceiro olho” na testa —, chineses com capas plásticas de chuva breguíssimas e outros apetrechos que os fazem esteticamente deprimentes aos olhos dos europeus (sei porque vivo na Europa há mais de 10 anos e escuto o que os europeus dizem), mas cujo dinheiro é mui bem vindo. Destas curiosidades do mundo.



Naturalmente, há também os restaurantes asiáticos para acolher esses turistas. Eu em geral até prefiro as comidas asiáticas às europeias, mas neste dia preferi contemplar uma lasanha de verduras numa padaria que me pareceu mais autêntica. Esbanjei e peguei um espumante para tomar no almoço. (Às vezes a gente se sente assim mão-aberta e decide aproveitar a vida.)

Comi, relaxei, discuti com uma amiga no Whatsapp, e dei um bordejo final — agora sob o sol, que tirou a chuva — antes de retornar a Zurique.





Uaaauuu, nossa… surpreendente embora interessante. Diferente do que eu imaginava. Um pouco estranho!… Males do mundo moderno com suas discrepâncias, fissuras, seus contra valores. Facilidades e permissividades do sistema econômico vigente toleradas por serem convenientes.
Deixando esse aspecto de lado, são impressionantes na sua beleza os magníficos e eternamente nevados Alpes, um primor de montanhas, lindas, alem dos belos e verdejantes campos e o Reno surpreendente na sua reduzida vazão. Lindo também esse lago de águas azuladas. Belíssima região. De um bucolismo que mais parece saída da sétima arte.
Muito bom conhecer a região e sua história. Eu o julgava diferente.