Estamos na segunda maior cidade da Grécia, depois de Atenas. Longe das ilhas gregas, Thessaloniki — traduzida como Tessalônica ou somente Salônica em português — talvez seja mais conhecida dos brasileiros por menções bíblicas que através do turismo. Ou talvez por ser a terra de origem dos Abravanel, família de Silvio Santos.
Não é de se espantar. Tessaloniki está longe das rotas habituais, e tem mais tamanho que charme. É uma cidade que transpira a Grécia balcânica, essa Grécia contemporânea pouco conhecida entre aqueles de nós presos à Grécia Antiga, como se nada tivesse ocorrido entre lá e cá. Como ocorre com o Egito, há um enorme deslocamento entre a realidade atual do lugar e aquilo que as pessoas de fora geralmente imaginam, parados como ficamos na História Antiga como se 2.000 anos ou mais não tivessem se passado.


O que estou chamando de “Grécia balcânica” é o que você vê no mapa, aquilo que na Antiguidade constituía o miolo do mundo helênico e que hoje corresponde ao país moderno na península dos Bálcãs. (Na Antiguidade, a “Grécia” era um território muito mais amplo, que incluía partes da atual Turquia, sul da Itália, etc.) Também estou usando o termo para realçar os aspectos da Grécia moderna que a assemelham aos países vizinhos, e que a inserem naquela região da Europa.
Estamos tão habituados a imaginar a Grécia como uma entidade própria, distinta, sozinha, que raramente lembramos que pela maior parte dos últimos 600 anos os gregos viveram como parte do Império Otomano. Estavam misturados com os turcos e muitas outras etnias com quem um caldo cultural comum se desenvolveu — comidas parecidas, músicas e danças muito semelhantes etc., ainda que falem línguas diferentes.

Era uma tarde de fim de março quando eu cheguei a Thessaloniki. Embora tivesse deixado na Suécia um início de primavera ainda totalmente com cara de inverno, aqui na Grécia o sol já era total e o calor aos poucos se ensaiava. Era uma sensação agradável depois dos meses de inverno europeu.
Eu não vinha a turismo (não conheço ninguém que tenha vindo a Thessaloniki a turismo), mas para reencontrar umas amigas de longa data que aconteciam de estar aqui. De quebra, eu daria umas voltas na cidade.
Na larga calçada acimentada fora do saguão de desembarques, comprei um café preto. Algumas pessoas fumavam e muitas se aglomeravam, como nos pontos de ônibus do Brasil. Na lanchonete, o rapaz simpático — como os jovens gregos normalmente são — não me matou quando eu paguei lhe um café com uma nota de 50 euros. Precisava trocar dinheiro.
Pus-me a tomar o café enquanto esperava o ônibus, que passa de meia em meia hora. É a linha X1, que o leva por dois euros do aeroporto ao centro da cidade. O bilhete de papel se compra numa casinha de metal onde fica uma pessoa no escuro. Há todo um certo ar decrépito e suburbano no ambiente. (Sugiro já comprar o bilhete de volta, pois na cidade é difícil de encontrar. Não se esqueça de validá-lo nas máquinas cor laranja dentro do ônibus. Um táxi, se você preferir, custa 20 euros.)
São apenas 15Km de distância, mas é uma jornada de 50 minutos com bastante tráfego, que me fez lembrar as “viagens” de ônibus nas cidades brasileiras. Tive que ir em pé com a minha mochila no ônibus lotado. Adolescentes se empoleiravam por todas as partes, inclusive numa área dedicada a bagagens. Grudados nos smartphones como se estes fossem partes do corpo, flertavam uns com os outros enquanto faziam chamadas de vídeo com terceiros. Na falta do que fazer, fiquei ali fazendo trabalho de campo de etologia.
As moças gregas em geral são femininas e doces (embora às vezes isso signifique “fazer doce”). Eu, na Suécia habituado às jovens moças nórdicas de semblante impassível, aqui as via mascar chiclete com a boca aberta e lançar aquele ar de sedução juvenil pra cima dos rapazes.
Os rapazes gregos são bem semelhantes aos brasileiros, mas me parecem mais cordatos — sem tanto daquele sangue quente que às vezes nos sobe à cabeça. Um pobre rapaz de seus 16 anos ia sentado ao meu lado com as pernas abertas na área elevada para bagagens, ar rebelde, fone de ouvido e a cara vidrada no celular. A cada dois minutos uma das garotas, de seus 15, o chamava pelo nome e lhe tirava uma foto. “Criiiistoooos!“. De fato tiravam o menino pra Cristo, mas é um nome grego até comum.
Cheguei finalmente ao centro quase à hora do pôr do sol, depois do que me pareceu uma jornada mais longa do que o voo que havia me trazido aqui. (Aliás, aproveito para contar que acabara de fazer a conexão mais curta de toda a minha carreira: 30min em Viena. Uma loucura; não sei porque permitem isso. Tive de correr no aeroporto feito um lunático. Barbudo como sou, na Europa sempre acho que vão me alvejar com um fuzil enquanto eu corro com a mochila.)
A rodoviária de Thessaloniki não é digna de nota. A avenida principal (Monastiriou) tampouco, embora ampla. O que há de bonito estava a algumas quadras dali.

A cidade é antiga como o rascunho da Bíblia, mas esqueça quaisquer pretensões de visitar uma cidadezinha histórica pitoresca aqui. Não há. Há algumas ruelas mais antigas, mas mesmo assim de poucos séculos atrás. O que há de mais antigo são algumas ruínas, as igrejas bizantinas, e a Torre Branca, construída pelos turcos otomanos após eles capturarem a cidade em 1430.

O que há de mais bonito em Thessaloniki é sua orla. Há uma longa avenida de mais de 10Km de extensão, com uma calçada repleta de bares no centro. É onde rola bastante da noite da cidade. Após me instalar, foi aonde eu iria.
Cheguei e o AirBnB que uma das minhas amigas havia alugado ficava no alto de um daqueles prédios de cor clara meio encardida, quase todos iguais, no centro de Thessaloniki. Algumas quadras da Av. Monastiriou e você chega à Praça Artistóteles, esta sim uma beleza. É a praça principal da cidade, com suas arcadas e cafés, como era moda no início do século XX quando foi desenhada pelo arquiteto francês Ernest Hébrard. Eu a visitei à noitinha, quando a juventude da cidade começa a entrar em polvorosa.



A minha única real queixa aos jovens tessalonicenses (vou escrever uma carta aos tessalonicenses) é que eles fumam demais. Coisas que nem Paulo previu lá nas suas epístolas. As leis da União Europeia ou da própria Grécia proibindo fumar em ambientes públicos internos são mera decoração — é praticamente impossível encontrar aqui um bar ou restaurante sem nicotina. (Nada muito diferente de Belgrado na Sérvia ou outras cidades desta região da Europa.)
Não sei até que horas ali ficamos. Sei que num dado momento saímos para comprar bolo, pois era o aniversário de uma das minhas amigas. Achamos uma malvadeza de chocolate numa das lojas que estavam para fechar — onde, de quebra, trocando sorrisos de confidência com uma das funcionárias, comprei uma spanakopita (lê-se “espanagóbita”, e não tem nada a ver com espanador; é um quitute folhado de espinafre; é maravilhoso; eu conhecia, a moça conhecia, e trocamos uma concordância não-verbal ali.) Nada como aquele lanche de fim do expediente na vitrine da padaria à noite.
No dia seguinte, iríamos a Ladadika, o distrito histórico com casas do século XIX que chegou a ser “distrito da luz vermelha” antes da 2ª Guerra Mundial. Hoje, tornou-se patrimônio cultural da cidade e conta com muitos restaurantes típicos. É uma área graciosa, se algo pequena.




(Uma curiosidade grega — que surpreende até outros europeus — é o costume de dar sobremesa de cortesia. Não, não foi o caso desse sorvete; o sorvete foi extra, gulodice minha. A sobremesa foi um prato de halva, um doce de semolina.)
Dali fomos dar umas voltas. Mas como eu disse, a Tessalônica de hoje é uma “cidade normal”, pouco afeita ao turismo. É essa Grécia balcânica, que guarda suas semelhanças com a Grécia de antigamente, mas talvez mais ainda com os países vizinhos. É que a fantasia do nacionalismo às vezes nos faz pensar que as fronteiras são mais importantes do que são. Para a cultura, valem pouco.
Hoje, o que muito se vê aqui são refugiados do Oriente Médio. Lembra de toda aquela migração síria de 2015? Uma caminhada no centro me chamou a atenção pelo tanto de homens morenos de jaqueta, parados pela rua aparentemente a fazer nada a não ser olhar o movimento.



Como eu não vim a turismo, acabei não indo ver o Museu de Cultura Bizantina ou o Museu Arqueológico de Thessaloniki. Mas são recomendados, caso você esteja a buscar as memórias do que a cidade já foi. No mais, você encontrará disso nas igrejas. A religião, sim, esta continua mui viva. Os gregos continuam cristãos ortodoxos como há séculos atrás. Isso pouco mudou.



Estamos numa parte da Europa onde encontros e trocas sociais sempre caracterizaram a História. Podem ser encontros pequenos, como este entre eu e meus amigos; podem ser encontros grandes, como o dos judeus ancestrais de Silvio Santos e outros que viveram aqui em grandes números noutros tempos. Podem ser as mudanças atuais, com o influxo de sírios que vêm se agregar à sopa cultural deste lugar. Thessaloniki foi encruzilhada e continua sendo. À maneira de cada tempo, segue se prestando a esse papel.

Ai, Lindinha, A Grécia é sempre apaixonante seja ontem seja hoje. Adorei o clima da cidade. Amei seu casario seu jeitinho de ser, suas avenidas, templos e monumentos. E que lindo o entardecer..
Que linda aquela ampla praça em homenagem ao grande Aristóteles. Adoro essa forma arredondada cheia de arcos e com mesinhas lojinhas e cafés,. Um encanto.
Belíssima essa igreja!.. E que lindo interior. Um espetáculo de luz e de arte .Belíssimas iluminuras. Amo esses interiores ortodoxos. Cheios de arte.
Lindíssima essa magnifica Rotunda. Um espetáculo de História e arte, Linda.
Interessantes os diversos ‘donos’ da região e suas disputas por marcas suas presenças culturais. .
Que diferente esse clima da Grécia atual, do que se idealiza a partir da Grécia histórica!… é a mudança do tempo… Está diferente, mas há algo de comum com a Grécia moderna, e em relação ao Mediterrâneo.
E que interessante essa reflexão sobre o não acompanhar o tempo e ficar na ilusão de que o passado ainda existe e será encontrado ali esperando por você. Ocorre.
Outra reflexão importante é sobre a falta de bases históricas, muitas vezes antropológicas e/ou sócio-culturais para as divisões e cisões nacionalistas. Preocupante perceber a quantos conflitos levaram e levam essa ideia e sentimento de nacionalismo, muitas vezes esdrúxulo diante do passado histórico/cultural das regiões.
Muito interessante essa postagem, meu jovem amigo. Linda região. Mesmo moderna respira muito da antiguidade dos Bálcãs. Valeu.
Olá, Mairon. Eu tb. estive em Tessalônica, em novembro/2019. Concordo com tudo que você publicou sobre a cidade. Faltou dizer uma curiosidade que acho que vc também observou: o número de cachorros andando tranquilos pelas ruas, ou dormindo em todos os lugares do centro da cidade. Gatos também vi. Tb. faltou dizer se você passou a mão no dedão do mestre Aristóteles. Fomos de trem de Athenas até Tessalônica, que é uma viagem agradável, mas ao chegar na estação fiquei surpreso com pouca gente na estação, agravado pelo fato de sairmos pelos fundos. Outra surpresa. E tb. com a rapidez com que nossa amiga encontrou um apartamento muito bom e barato, na Rua Tsimiki, no centro. Era para seguirmos até Estambul, mas o terrorismo no aeroporto turco vez voltarmos para Athenas. Abração.
Bem-vindo, Raymundo! E que contente que fico sabendo que você também esteve em Tessalônica e teve essas experiências.
Grande abraço.
Oi, Marion.
Era o meu projeto de viagem em 2020, mas……em tempos de corona, não deu. Estive em Atenas em 2018 e 2019.Tessalonick é uma paixão antiga…está nas terras do Alexandre e do Felipe….Prefiro conhcer cidades em seus cotidianos. As vezes, em cidades turísticas o comum da vida e das pessoas ficam sufocados.Suas impressões e informações ão me ajudar.