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Cazaquistão

Almaty (Alma-Ata), “pai das maçãs”, a maior cidade do Cazaquistão

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Cazaquistão, independente da União Soviética em 1991. Nono maior país do mundo.

Alma-Ata, literalmente “Pai das Maçãs”, é a região de origem desse fruto. Hoje a cidade se chama Almaty, foi capital até 1997, mas continua como coração econômico da maior das ex-repúblicas soviéticas afora a Rússia. Bem vindos à Ásia Central.

PRÓLOGO: VINDO CONHECER A ÁSIA CENTRAL

Sem fila ao portão de embarque — no bom e velho bolo — e por debaixo de chuva até o avião embarcamos em Riga rumo a Almaty, no Cazaquistão. No avião, turistas europeus com caras óbvias de turistas, casais de várias idades. Entre vários russos de cara fechada, passavam muitos cazaques de cara asiática desfilando seus belos passaportes de capa azul-turquesa — dos mais mais bonitos que já vi. No rosto, seus olhos bem puxados e suas maçãs protuberantes os diferenciam fácil dos asiáticos de outras regiões. Os centro-asiáticos ficam fáceis de identificar depois que você aprende as diferenças. Além disso, elas exalam a aura de que manifestam relações humanas mais calorosas e abertas que seus parentes mais a oriente — está dito na linguagem corporal. Por outro lado, como dizia o radialista Carro Velho em Quixeramobim (CE): é também “aomildade” que demonstram que os destaca.

Nesta viagem, vamos conhecer mais da Ásia Central, uma das regiões mais historicamente nevrálgicas da saga humana pelo planeta. Ainda assim, uma sobre a qual nada ou quase nada nos ensinam. Falamos nos “stão” de modo grosseiro como se fosse a área mais remota do mundo, quando na verdade se tratam se lugares culturalmente ricos e bem diversos. A Ásia Central é um elo-chave de ligação entre as culturas da Europa e da Ásia, o miolo que mostra como elas são relacionadas, em vez de coisas totalmente à parte como frequentemente pensamos.

Central Asia com Mongólia
Ásia Central em amarelo, com os “stão” no miolo ali mais escuros.

Fala-se muito em Rotas da Seda, mas a verdade é que por aqui sempre passou muito mais que seda. Passaram religiões, exércitos, migrações humanas, frutos que se disseminaram (como a maçã) e culturas. Grosso modo, a Ásia Central é a encruzilhada onde as culturas russa, mongol, persa e túrquica se encontram.

Túrquico não é um termo que se encontre com frequência em português, mas é um termo importante. (Em inglês, é a diferença entre Turkic e Turkish.) A estranheza se deve ao quanto estamos alheios à região. Como você talvez saiba, os turcos que estão na atual Turquia são imigrantes centro-asiáticos que nos idos de 1000-1400 migraram para oeste até em 1453 conquistar o Império Bizantino, o que era o Império Romano do Oriente, falante de grego. No entanto, nem todos os povos túrquicos migraram; muitos primos ficaram para trás e constituem o que são hoje o Turcomenistão, o Cazaquistão, o Quirguistão e o Uzbequistão, além de populações de outras etnias túrquicas no interior da Rússia. É curioso, porque se você os ouvir falar, soa parecido com turco. Os sons são semelhantes, e eles dizem conseguir entender muito do que o outro diz — talvez um pouco como entre o português e o italiano.

Os persas nunca estiveram longe, como você nota pela proximidade do Irã ali. Desde os tempos de Ciro, o Grande (601-530 a.C.), os persas expandem-se ao norte Ásia Central adentro difundindo a sua cultura — traços da qual permanecem até hoje. O Tajiquistão, ao contrário dos demais, é predominantemente persa e fala um dialeto da mesma língua farsi do Irã.

Os mongóis, por sua vez, vieram do leste no século XIII com Gêngis Khan e conquistaram tudo pelo caminho até a Ucrânia (chegaram mesmo a atacar Cracóvia, na Polônia!). Difundiram muito de sua cultura pastoril e nômade, que até hoje você encontra lá na Mongólia como aqui no Cazaquistão. Eles admitem que, pela cara, sequer sabem dizer se a pessoa é cazaque ou mongol.

Já a Rússia é a última a chegar, mas avança imperialmente a partir do século XVI até o Oceano Pacífico, adquirindo as imensas dimensões territoriais atuais e nesse processo assimilando (ao menos politicamente, mas sem deixar de realizar também trocas culturais) povos da Ásia Central. A União Soviética (1922-1991), que os forçou a aprender russo e a escrever no alfabeto cirílico, nada mais foi que uma continuação do domínio russo sobre esses povos.

Agora eles finalmente retomam sua soberania na luz do mundo, e ganharão cada vez mais destaque nos próximos anos. Anotem o que digo.

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Cartaz promocional de cultura tradicional cazaque que encontrei em Almaty.
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A modernidade aqui é assim.

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Eu cheguei cedo numa manhã de verão depois do voo noturno, o dia de sol prometendo calor. A imigração no Cazaquistão é tranquila, acho que só passei 10 minutos na fila do controle de passaporte. Brasileiros e portugueses não necessitam de visto. O aeroporto de Almaty (de longe o melhor aonde voar, por ter dos voos mais baratos à Ásia Central a partir de várias cidades europeias) é pequeno, mas arrumadinho e funcional. 

À saída, taxistas estão de prontidão para avançar sobre turistas que desembarcam. Ofertas não-requisitadas abundam, e há histórias de malandragem como noutras partes do mundo. A opção sempre mais segura é solicitar traslado à acomodação. O meu saiu pelo equivalente a 9 USD, mais barato que táxi no Brasil. (Os pagamentos, contudo, são praticamente todos em tenge [KZT], a moeda do Cazaquistão. 1 USD = 380 KZT, 1 EUR = 430 KZT. Verifique as cotações atualizadas antes de viajar.) É fácil trocar qualquer moeda forte no centro de Almaty. Se você quiser economizar, pode tomar um dos vários ônibus que saem daqui até o centro por 150 KZT, mas aí precisará de dinheiro trocado para pagar direto ao motorista ou ao cobrador dentro do ônibus.

Aguardava-me com um papel com meu nome Konish, o motorista. Konish era uma espécie de Otaviano Costa asiático: moreno alto, magro, de risada fácil e cabelo precocemente grisalho. (Ele tinha a minha idade, eu depois descobri, e eu nem sonho com cabelo branco.) Viríamos conversando, ele a me dizer que a maior parte das macieiras já eram, e que agora é só apartamento e mais apartamento. (Restam apenas algumas áreas de macieiras selvagens nas montanhas perto daqui.)

Os cazaques costumam falar melhor inglês que os russos — ou que os italianos e espanhóis, diga-se de passagem —, e em geral são simpáticos e sociáveis. Sorriem para estranhos, ao contrário dos seus vizinhos russos ou chineses. Eu e Konish nos reencontraríamos no dia seguinte para ir ao Grande Lago de Almaty (Big Almaty Lake), uma das principais atrações daqui.

No hotel, uma linda estética túrquica de tapetes, enfeites coloridos e lampiões. A decoração toda evocava um ar de caravanas na Ásia Central, aquela coisa meio As Mil e Uma Noites, com lustres metálicos a decorar o teto como se vê na Turquia.

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Aquelas montanhas no horizonte são as Tian Shan, que fazem a fronteira do Cazaquistão com o Quirguistão e a China. Falaremos — e veremos — mais delas depois. De Almaty é possível avistá-las.
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As coisas aqui são assim, com almofadas, tapetes e lustres metálicos.
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Esses mosaicos de vidros coloridos são típicos das culturas túrquicas e persa na Ásia Central.
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Estética túrquica de decoração, que nos evoca muito a Turquia. Mas neste caso é dos seus primos aqui do Cazaquistão.

Como não me conheciam, perguntaram se eu queria dormir de manhã quando cheguei. Duas moças simpáticas atendiam-me à recepção. Circulava no hotel uma mistura curiosa de turcos, árabes, russos, e cazaques de olhos puxados, além de uns poucos raros ocidentais. Respondi-lhes que meu negócio era tomar um café e sair. Após uma fartura de buffet com coisas doces europeias e comidas salgadas russas e turcas, fui logo visitar a cidade.

Almaty é uma cidade ampla, são 2 milhões de pessoas (dos 18 milhões que habitam o Cazaquistão), mas suas avenidas são agradáveis, arborizadas, têm boas calçadas. Só não se surpreenda com as distâncias. Dá para fazer as coisas a pé para quem gosta de caminhar; no mais, há o metrô.

Os centro-asiáticos hoje tendem a ser muçulmanos, e o primeiro monumento que vi foi exatamente a mesquita da cidade, a Mesquita Central de Almaty. Uma mesquita até bonita com azulejos e um jardim por fora, embora eu depois fosse ver outras bem mais resplendorosas nesta viagem. Entrei, já que estava de calças compridas e, com minha cara de árabe, tomam-me fácil por muçulmano.

Camaleão global, eu dali a pouco estaria na igreja, mas por ora ouvia em árabe o funcionário da mesquita ler versos sagrados do Alcorão. Lia ao microfone num salão interno onde acomodavam-se tanto homens quanto mulheres em assentos rentes à parede como numa repartição pública onde você aguarda sua vez de ser chamado. Ninguém nos chamou, todavia. As pessoas assentavam-se ali, escutavam seus versos, faziam suas orações, e partiam. É a versão islâmica da “passadinha na igreja” que os cristãos às vezes fazem.

Eu, a seguir, faria exatamente isso. Deixando para trás aquela bela casa de Alá, fui à também bela Igreja russa de Santa Sofia. Também com jardins, como parece ser parte da estética e do esmero desta região do mundo. Eles prezam pelo asseio dos ambientes públicos muito mais que nós no Brasil.

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Almaty se caracteriza por avenidas bastante largas, arborizadas, e com vastas calçadas.
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O movimento no centro de Almaty. Se você olhar com bastante atenção acima do prédio, verá o cume de uma montanha das Tian Shan no horizonte.
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A Mesquita Central de Almaty, na maior cidade do Cazaquistão. Ela foi completada em 1999. Agora que não há mais União Soviética, os “stão” têm manifestado mais claramente seu islamismo, em contraste ao cristianismo ortodoxo russo. No entanto, os islâmicos daqui são bem liberais. A maioria não faz as 5 orações diárias nem jejua no Ramadã. As mulheres não usam véu, e há uma razoável equidade de gênero.
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A Mesquita Central de Almaty.
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A Igreja de Santa Sofia, em Almaty. Foi construída em 1895, quando o Império Russo já dominava estas terras. Os russos seguem sendo 1/4 da população do Cazaquistão, em geral os mais ricos.
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O interior da igreja ortodoxa de Santa Sofia. É habitual que as mulheres cubram a cabeça dentro das igrejas no cristianismo ortodoxo.
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A Catedral da Ascensão, também no centro de Almaty, completada em 1907, antes da revolução bolchevique. Ela é também conhecida como Catedral Zenkov, pelo nome do seu hábil arquiteto Andrei Zenkov. A catedral é toda feita em madeira e não contém nenhum prego. Além disso, foi desenhada para resistir a terremotos, o que ela fez muito bem em 1911 quando um sismo desabou boa parte do centro de Almaty.
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A Catedral da Ascensão vista de lado. Os domos coloridos são característicos das igrejas ortodoxas russas.
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Seu interior, com ilustrações bíblicas.
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Ali a iconostasis, aquele painel com as imagens sacras. Nas igrejas ortodoxas, o altar propriamente dito fica por detrás de uma portinhola que só se abre durante as celebrações.

O calor estava grande. Faz fácil 35-38 graus ou mais durante as tardes de verão aqui pelo sul do Cazaquistão. Como eu havia visto uma banquinha vendendo kvas e queria matar a saudade dos meus tempos na Rússia, voltei pelo mesmo caminho em busca de um. Kvas é uma bebida de pão fermentado que mais parece um refrigerante. Típico por toda a ex-União Soviética, é uma ótima opção popular para refrescar-se na rua.

Atendia na banquinha um dueto caricaturesco de mãe e filho, um menino meio emburrado de seus 11 anos e uma senhora gorda conversadeira que dava uns tapas no menino mandando-lhe fazer as coisas. Pareciam ciganos, embora provavelmente não o fossem. Pedi um grande à senhora, o que sai pela bagatela de 150 KZT (R$ 1,50). “Ah, o senhor conhece kvas”, disse-me ela animada, no que consegui entender com meu russo básico, enquanto tomava minhas moedas e o garoto punha da bebida pra mim no copo.

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Refrescando-me do calor com um copo de kvas nas ruas de Almaty. “Que gosto tem?“. É difícil explicar gosto, mas pense num refrigerante pouco doce e ligeiramente fermentado, quase como um híbrido entre refrigerante e cerveja.

Tomei e segui rumo ao Bazar Verde (Zelionyj Bazar em russo, Green Bazar em inglês).

O Bazar Verde é cantado em verso e prosa na internet como um lugar que você precisa visitar em Almaty. Algumas descrições fazem até parecer um lugar de fábulas, das caravanas antigas. Na prática, é um mercadão coberto como tantos outros, com vendedores a tagarelar de suas bancas, com — aí sim, muitas coisas típicas aqui desta região — frutas secas, frutas frescas que nos são exóticas (framboesas, damascos, amoras) a preço de banana (que por sinal eu não vi aqui), peixes que não sei de onde trazem, e uma grotesca seção de carnes cuja especialidade cazaque é carne de cavalo em diversos cortes. Há salsichas de cavalo, etc. Não é a minha praia — é a deles aqui.

Ah! Já que estamos nos equinos, tão importantes historicamente aos povos desta região do planeta, não nos esqueçamos do leite fermentado de égua (kumis), bebido aqui como na Mongólia, além do leite de camela (shubat) e dos queijos artesanais vários feitos com esse ou outros leites. Eles fazem umas bolas de queijo branco caseiro que você aqui também encontra. (Todos são horrivelmente azedos, mas eles aqui adoram.)

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Interior do Bazar Verde (o prédio é verde por fora).
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Os deliciosos (sic) leites de égua e camela fermentados. Você acha no mercado mais próximo de você, aqui no Cazaquistão.
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Vendedor de toda sorte de frutos secos. (Tenho quase certeza de que ele era uzbeque, aos que estiverem avaliando a fisionomia do rapaz.)

Os vendedores aqui não o perturbam tanto quanto na Turquia, nos países árabes ou na Índia, mas volta e meia haverá o chamado gracejoso de algum vendedor (quase sempre os rapazes, pois as moças são um pouco mais recatadas) querendo que você venha experimentar algo na banca dele.

Esse daí na foto acima veio me oferecer abricós (damascos) secos para experimentar, e fez o muque do Popeye, como quem recomenda comer aquilo para que eu ficasse forte. Nunca tinha ouvido falar que abricó seco deixasse ninguém forte, mas vai ver faz parte do repertório do que dizem as avós cazaques e eu não sei. Perguntou de onde eu era e começou a falar de Neymar e outros jogadores de futebol. Moças risonhas que passavam, outras vendedoras, riam-se da tentativa de comunicação do rapaz comigo no meu russo quebrado e no inglês inexistente dele.

Acabou por me cobrar os abricós um tanto salgados; tenho certeza de que paguei mais que os cazaques, mas o equivalente a R$5 por um pacote de abricós secos ainda assim me saiu interessante. Quando desembolsei uma nota de 500 KZT (o equivalente a R$ 5), o rapaz ficou algo desapontado. Fez com a mão para que eu tirasse mais notas do bolso, o que não fiz. Eu disse que aquilo ali bastava. (Ele certamente queria que eu torrasse tudo em abricós.) Quando dei a nota, ele ainda olhou pro meu relógio de pulso e perguntou quanto custou. Esse povo aqui é assim. O raciocínio é dizer que você tem dinheiro o bastante pra poder comprar mais e pagar mais. Então menti dizendo que foi presente da minha mãe.

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Mairon pelo bazar.
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Framboesas a rodo, além de outras frutas temperadas características daqui.

Eu dali ainda seguiria a uma série de outros lugares de interesse na cidade. Às vezes não compreendo como podem as pessoas do Brasil — o país recorde de violência urbana — terem receios de suposta insegurança nestes países asiáticos. Talvez sejam os preconceitos ocidentais com as ex-repúblicas soviéticas, ou talvez seja a crença (errônea) de que estes “stão” são o fim do mundo. Pois suas ruas são mais civilizadas que as brasileiras. Abaixo uma palhinha de 1 min que gravei nas ruas de Almaty à tarde.

Caminhando por essas largas avenidas você vê todo o monumentalismo da arquitetura soviética ainda presente nas universidades e prédios públicos do Cazaquistão.

As distâncias às vezes são longas, e algumas ruas são tão imensas que você leva quase um minuto inteiro para atravessar (!), mas faz parte do passeio. Se cansarem as pernas, use o metrô, que também no estilo soviético é bem monumentalista com suas estações em mármore ricamente decoradas. A noção era que tais riquezas estivessem onde o povo está, e não encasteladas em palácios particulares ou igrejas.

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Calçada em Almaty.
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País perigoso, o Cazaquistão.
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Prédio da universidade.
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Num daqueles fins de tarde em Almaty.
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Estação de metrô em Almaty.
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Usam-se estas fichas amarelas, como costumava ser o caso em Moscou até alguns anos atrás. Custa uma pechincha.
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Parque do Primeiro Presidente da República, Nursultan Nazarbayev.

Para conhecer mais da história do Cazaquistão e entender sua cultura, há alguns museus interessantes que você pode visitar na cidade.

O Museu Nacional em Almaty é razoavelmente interessante. Quase todos os painéis estão apenas em cazaque ou russo, mas é possível solicitar tours guiados em inglês de um dos funcionários. O mais interessante, a meu ver, é a coleção de itens tradicionais cazaques dos séculos passados — itens de vestuário, vestimentas tradicionais, armas, utensílios, e até um yurt (tenda nômade) inteiro montado e decorado por dentro.

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Hall de entrada do Museu Nacional, em Almaty, com o mapa do Cazaquistão ali.
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Um yurt, o que os mongóis chamam de ger, essa tenda redonda típica dos povos nômades das estepes asiáticas. Trata-se de uma estrutura de madeira revestida com tapetes e peles.
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O interior. Esse é um yurt bem requintado, bem ornamentado. A maioria é bem menos luxuoso por dentro.
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Trajes típicos.

Os cazaques aparecem como nação a partir do século XV, quando nos idos de 1456-1465 funda-se o Khanato Cazaque, uma espécie de confederação de tribos. O termo kazakh ou qazaq quer dizer “andarilho”, e era usado genericamente durante a Idade Média para caracterizar esses grupos nômades independentes que circulavam pelas estepes.

O mongol Gêngis Khan (1161-1227 d.C.) e seus descendentes haviam criado um vasto império e difundindo sua cultura pastoril de cavaleiros desde a Coreia à Europa. A maioria dos povos túrquicos nele foi absorvida e passaria a integrar esse gigante império multicultural — o maior império contíguo da História —, mas que no entanto se fragmentaria depois de um tempo.

No território onde hoje são o Cazaquistão e a parte europeia da Rússia, passou a existir o ainda-imenso Khanato da Horda Dourada (1259-1466), fundado por Batu Khan, neto de Gêngis Khan. Ele aos poucos vai se islamizando, abraçando essa religião da maioria da população túrquica dessa região. É desse bojo que se forma mais tarde o Khanato Cazaque. Nômades originalmente xamanistas que abraçam o islã mas mantêm seus costumes e organização tribal.

Os vídeos musicais abaixo dão uma noção boa desse passado nacional cazaque que agora tem experimentado uma ressurgência após o fim do domínio russo. (Eles aqui são islâmicos, mas sinta como o toque de misticismo xamânico das estepes é o que domina nessa estética tradicional cazaque.)

Quando visitei o Museu Nacional, uma guia explicou como os badulaques metálicos usados como ornamentos pelas mulheres serviam também como indicador de fineza. Eles fazem barulho quando a pessoa caminha, então o ritmo desse som também servia de indicador da compostura da mulher. Questões de equidade de gênero podem ser levantadas, mas percebam isso também como parte do sentimento de elegância da própria mulher (tipo o saber andar de salto alto), ou ao menos foi isso que a guia cazaque deu a entender.

No Museu Cazaque de Instrumentos Musicais Populares você também fica conhecendo bastante coisa do Cazaquistão histórico. Ele é possivelmente o melhor museu da cidade. Em 1h você vê tudo em detalhes, a variedade de instrumentos musicais típicos da região — desde flautas elaboradas, a tambores e instrumentos de corda semelhantes a um violino feitos com fios de pêlo de cavalo como corda. Com trilha sonora, você pode sentar e ficar lá ouvindo. Climatizado, ele tem uma ótima e pacata atmosfera.

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O Museu Cazaque de Instrumentos Musicais Populares, nesse harmônico edifício de madeira inaugurado em 1908. (Os soviéticos depois construiriam aquele mondrongo de cimento ali atrás.)
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Foto de época no interior do museu, que mostra as pessoas com trajes e instrumentos musicais tradicionais cazaques.

Os russos viriam no século XVIII, expandindo seu império por sobre as estepes dos cazaques. A história da expansão da Rússia para leste tem semelhanças com a expansão dos Estados Unidos para oeste por sobre os indígenas norte-americanos, no mesmo período. Com uma série de documentos falsos e força militar, além do “dividir para conquistar”, os russos foram aos poucos se consolidando como suseranos de todas estas terras — embora vários fossem capturados e depois vendidos como escravos na Ásia Central. Era um Wild East, o “leste selvagem”.

À altura de 1847 já não havia mais Khanato Cazaque, os russos é que mandavam. A União Soviética a partir de 1922 apenas foi a substituição da Rússia imperial pela Rússia comunista como mandatária. Dessa época é que vêm muitas das edificações e monumentos da cidade.

Por exemplo, talvez o mais nome recorrente em Almaty seja Panfilov, general que deu nome a uma divisão militar do Exército Vermelho soviético, e que hoje dá nome a ruas e parques na cidade. Mais notáveis são os chamados 28 de Panfilov, episódio que teria ocorrido na Segunda Guerra Mundial quando supostamente 28 homens da infantaria soviética teriam se sacrificado para — com sucesso — destruir 18 tanques alemães nazistas a caminho de Moscou. Praticamente, uma versão moderna dos 300 de Esparta.

O parque onde ficam a Catedral da Ascensão e o museu de instrumentos musicais chama-se Parque Panfilov por esses homens, e têm uma honrosa estátua soviética em sua homenagem. O embaraço foi quando em 2015 arquivos até então secretos foram tornados públicos mostrando que o drama nunca ocorreu, e que alguns dos supostos sacrificados estavam até vivos ainda.

Coisas da propaganda soviética. Quando vir o nome Panfilov em Almaty, já sabe que é em referência àquela divisão militar.

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Monumento soviético no Parque Panfilov, em Almaty, com uma “chama eterna” aos mortos durante a Segunda Guerra.
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Estátua de bronze dos 28 de Panfilov, a divisão de infantaria que teria detido o avanço dos tanques alemães na Segunda Guerra. Depois se descobriu que tudo não passou de uma invenção para reforçar o patriotismo soviético.

Tornando-se independente novamente em 1991, o Cazaquistão busca agora um lugar ao sol com sua cara própria.

O curioso é como, embora seja um povo eminentemente asiático, os cazaques gostam de se apresentar hoje em dia como “Eurásia“. Claro, querem ter um pé comercial aqui e outro lá, além de gozar do prestígio ou da imaginação que pode advir de ser considerado Europa e também Ásia. De fato, embora a cultura tradicional cazaque seja inquestionavelmente da Ásia, Almaty lembra cidades do leste europeu com seus cafés e restaurantes — ainda que a fronteira com a China esteja a meros 200Km daqui.

Há tantos cafés que eu ficava a me perguntar se tinha alguma lavagem de dinheiro por trás daquilo. À tarde eles ficam meio desérticos, com seus barrufadores aplacando o calor de verão para mesas vazias, mas à noite eles enchem. Um restaurante em especial que eu recomendo é o Navat, sobretudo se você quer algo em estilo tradicional e com belo ambiente.

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O restaurante Navat, com sua ambientação (e cardápio) tradicional em Almaty.
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Horse mignon” e outros pratos com carne de cavalo são típicos na cozinha cazaque. Este menu não é do Navat, mas esse hiperfoco em carne é parte da realidade daqui. Como não como carne, foi dureza, mas a gente se vira nos 30.

Eu termino com outro lugar que visitei em Almaty no fim do dia, a área de Kok Tobe, aonde você sobe com um bondinho. É um ótimo lugar de onde ver o pôr do sol ou simplesmente ter vistas da cidade e das montanhas ali próximas.

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Fim de tarde com a luz do sol poente sobre Almaty, com as montanhas ao sul da cidade.
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Kok Tobe, a estação lá no alto que é um parque de diversão, zoológico, com lanchonetes e jardins onde as famílias de Almaty vão passear com as crianças.
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Sol se pondo. Aquela estrutura que você vê é uma espécie de estilingue gigante que atira você cidade abaixo, só que com você bem amarrado.
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Meio assim. Para os que gostam de pôr as adrenais em atividade.
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Com um mosaico tradicional cazaque lá no alto.
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Selfie da garota cazaque em Kok Tobe.
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O anoitecer sobre Almaty, Cazaquistão.

O pai das maçãs, que talvez seja mais conhecido no Brasil pela Declaração de Alma-Ata (quando em 1978 a Organização Mundial de Saúde realçou a vitalidade da atenção primária à saúde, inspirando a criação do SUS em 1988), segue à sua maneira inspirando outras coisas. As maçãs ficam como legado. Desde 1997 Almaty não é mais a capital, que eu visitaria a seguir. Mas segue sendo o coração econômico e cultural deste país. Estejam apresentados.

Mais estava por vir nestas minhas andanças pelo Cazaquistão.

Mairon Giovani
Cidadão do mundo e viajante independente. Gosta de cultura, risadas, e comida bem feita. Não acha que viajar sozinho seja tão assustador quanto costumam imaginar, e se joga com frequência em novos ambientes. Crê que um país deixa de ser um mero lugar no mapa a partir do momento em que você o conhece e vive experiências com as pessoas de lá.

7 thoughts on “Almaty (Alma-Ata), “pai das maçãs”, a maior cidade do Cazaquistão

  1. Adorei tudo….estou organizando minha viagem para os tão da Ásia,e suas informações são muito pertinentes… Aguardo os próximos relatos.

  2. Que maravilha!… estou encantada com a cidade a cultura, a civilização, os monumentos, as histórias, as maravilhosas frutas secas que lembram bem a Turquia e o Marrocco, suas magnificas igrejas ortodoxas, suas lindas mesquitas, seu povo alegre e de bem com a vida, mesmo uma vida nem sempre agradável e boa, suas belas avenidas, sua limpeza, sua arborização e suas magnificas montanhas. Amo a Ásia e essa região, meio Ásia meio Eurásia é magnifica. Apaixonei-me por Almaty ou Alma -Ata como é conhecida aqui no Ocidente/Brasil. Obrigada pela citação. De fato esta cidade foi um marco para a construção em muitas partes do mundo de uma nova Saúde Pública, com enfoque na prevenção, com novo conceito de saude, abrangendo a Promoção e a Prevenção de doenças, o Bem Estar, físico mental e social. Uma verdadeira Revolução para a época. Muitos países, inclusive o Brasil embarcaram nesses novos conceitos e diretrizes e criaram Sistemas de Saúde Pública universais e gratuitos. Histórica a cidade. Marco de desenvolvimento em Saúde Publica/Coletiva de vários povos. No Brasil, como bem disse o jovem viajante foi criando o Sistema Único de Saúde(SUS) que , apesar das dificuldades é um exemplo para o mundo inteiro.Hoje sofre o risco de desaparecer diante dos ataques privativistas do novo governo do país.
    Belíssima região. Lindíssimas e imponentes montanhas. Um primor. Uma postagem magnifica de uma simbólica, bela e histórica região. Congratulations.

  3. Meu jovem, que interiores magnificos… Parecem dos filmes de Aladim haha. adoro essas decorações asiáticas mas mescladas com as influencias árabes e do resto do Oriente.
    Amei o Clip. Lindas as danças os gestos a musica dos rituais antigos. Que bom que estão sendo revividos. Sao riquíssimos.
    Chamam-me a atenção também as cores vivas ativas e quentes dessa Asia Mistica e deslumbrante. Adoro.
    Belissimos e bem cuidados jardins, charmosos museus. O metrô parece com o de Moscow. Muito charmoso.
    Adoro essa tapecaria. Rica de bom gosto, bem elaborada e gostosa para os olhos.
    So nao apreciaria os leites de equinos e camelideos e a carne. Tambem não gosto de carnes. Esquivo-me de saborear a carne dos pobres e tao bonitos animais.
    Linda postagem. Ansiosa por ver mais belezas. Vamos que vamos. Sou tiete dessas viagens. Adoro viajar e conhecer lugares e culturas.
    Ha partes da natureza parecidas com Hong Kong.

  4. Importante e estratégica essa região.
    Adorei ”aomildade” , hahaha. Eita povo interessante criativo e rico esses nordestinos brasileiros.
    Vilgen que horror em Riga hahah
    As noções de Historia e Geografia aqui no Brasil são paupérrimas e se centram na Europa e um pouco nas demais regiões e ‘en passant’.
    Muito interessantes esse esforço e este prognóstico. Liberdade e autonomia não se negociam.
    Hhahahaha, os seres humanos são muito semelhantes Ladinos há em todos os lugares, independente de onde estão ou provêm; Lembro de uma ocasião em que um taxista levou sabe la quanto tempo para me levar de Copacabana ao Flamengo no Rio de Janeiro e só parou de dar voltas quando eu comecei a reclamar. Detalhe, um é pertinho do outro. Hahah. Ahh seres humanos!…
    Belíssimos o interior e a decoração do hotel.
    As áreas verdes são um refresco para os olhos.
    Adoro essas cúpulas e essa arte muçulmana, tanto na arquitetura quanto na decoração e colorido.Magnificas.
    Esses recortes coloridos e as linhas arquitetônicas dessas igrejas ortodoxas, são um encanto. Tenho paixão por elas.
    Belíssima essa pintura de vaso. Adoro essas cores e motivos.
    Meu jovem, que curiosa esse construção em madeira sem prego. Uaaaauuu. Os nossos engenheiros modernos estão tomando uma surra hahah. Uma obra de arte e de beleza esse templo.
    Adorei o mercado seu colorido e produtos. Amo essas frutas.
    Eita criatividade…hahah adorei o abricó do Popeye. Chi lo sa?
    Este estilo soviético é bastante conhecido em varias cidades da Europa sobretudo do Leste. Em Warsóvia ha avenidas assim compridas e me pavimentadas.
    Hahahah, interessante a história do fato que nunca ocorreu.. Do lado de cá também ha estorietas para valorizar certos pseudo-heróis, inclusive está na moda hoje no pais hahaha. Criação de fatos inexistentes e distorção dos existentes. haha Coisas dos diversos tempos e motivações nos jogos de mando.
    Belíssimos crepúsculo e belvedere. Salve a Ásia misteriosa, rica e indomada.

  5. Estou acompanhando sua viagem pela Ásia Central e enfim sempre dou uma olhada no seu blog.

    Curiosamente, no fds seguinte que esse post saiu, fui pro Rio e no hostel conheci uma garota do Cazaquistão, de Almaty ainda, que estava dando um rolê pela América do Sul e que adorava ouvir a língua portuguesa.

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